sexta-feira, 1 de março de 2024

O Homem da Montanha


Havia um homem,
Magro, pálido e envelhecido
Vivia naquela montanha
Sozinho, fartava-se da vista
De ver outras pessoas
Como formigas em fila
Caminhando para o nada
Como ele uma vez estivera
Desistiu, agora observava
Mas logo perdeu-se daquilo
Na vastidão do horizonte
E na imensidão das estrelas
Viu, como as pessoas, seu
Ser apequenar-se e quase
Se não fosse pelo olhar
Fundir-se ao todo e ao nada
A montanha era um fragmento
De poeira perdida ao vento
E ele, onde estaria?
Quando estava no limiar
Do não mais voltar
Deteve-se e mirou uma vez
Mais a pequenez das pessoas
Em marcha para grandes realizações
Como segurar o vento ou
Contar as gotas d'água
E nesse momento perde-se
Ainda mais na sua confusão
De partilhar as duas substâncias
O homem não pode ser deus
A humanidade é ainda criança
Há um homem naquela montanha
As crianças o veem sentado num rochedo
Em meio às brumas de uma manhã fria
Os adultos dizem que é
Rocha de rochas, ilusão
E o dia caminha isento de sentido
Mas ele apenas observa

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Tuta

 

        Portinari. Meninos Brincando. 


Era 1986, eu tinha 11 anos e o meu mundo era muito pequeno e simples. Naquele tempo eu morava num município da região metropolitana de Curitiba. Simples, mas não tão simples quanto aquele outro lugar em que "muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo". Mas era tão mágico quanto Macondo. 

Anos 1980, não havia internet ou smartphone. Os carros eram carburados e os telefones públicos funcionavam com uma ficha de metal. Em casa, poucos tinham o aparelho, pois uma linha custava tanto quanto um carro usado e se você alugasse uma, o valor seria o do aluguel de uma pequena casa, medido, conforme o costume de um tempo em que a inflação batia nos 147%, em salários mínimos para evitar o transtorno dos juros compostos. O governo que calcule! 

Apesar das dificuldades, éramos muito pobres, foram alguns dos melhores tempos da minha vida! Eu estava entrando na adolescência, mas ainda trazia muito do moleque. A região parecia interior, tinha muito mato, muito bicho para caçar, frutas silvestres, pinhão e chácaras com pés de pera e parreirais desprotegidos. Ainda havia as cavas e rios, onde a gente nadava, pescava uns carazinhos, lambaris e traíras. Fome eu não passava. Nem as sanguessugas que grudavam na pele quando a gente cansava dos anzóis e resolvia "passar a rede", na verdade um pedaço de tela de náilon, uma saca de cebolas ou qualquer tecido que cumprisse a função. 

No campo da diversão, a gente lia os gibizinhos uns dos outros. Um dos pilantrinhas que andava vagabundeando com a gente era o Pablo. Ele morava com seu avô, que era dono de uma banca de jornais. Essa era nossa principal fonte de quadrinhos, que o Pablo usava como pagamento dos mais estranhos trabalhos. 

"Eu te empresto o Almanaque Disney, mas quero que você me traga uma pera".  Todo mundo corria para pegar uma pera. Você tem ideia do que significava um Almanaque Disney inteirinho naquele tempo em que só havia tv aberta, com sinal muito ruim e nossos aparelhos eram preto e branco? 

"Toma aqui sua pera". Ele examinava a fruta com uma das sobrancelhas levantadas e tascava: "Não era essa que eu queria, era aquela". E apontava a fruta no lugar mais alto e difícil de pegar. Com o tempo aquilo virou uma espécie de desafio divertido e a gente já esperava pela nova revistinha, não tanto por ela, mas pelo desafio. Menos o Nenê, meu melhor amigo e companheiro de rapinagens e pescaria. Ele era fascinado por um personagem de desenho animado que fazia muito sucesso naqueles tempos, o He-man. Mas quem não era? E o desenho nem era tão novo, mas novidade, naqueles tempos ( e lugar), durava uns bons cinco anos! 

Com o tempo, o Nenê ganhou o He-man como um apelido sobressalente. Na maior parte do tempo, era o Nenê, mas se a gente queria algo dele ou apenas zoar, dizia: " Ô, rímeim, você que é forte, pega essa fruta ali pra mim". "Rímeim, leva essa cartinha praquela menina que eu gosto". Quando o Nenê ouvia isso, ele levantava os braços magricelas e forçava os músculos. Ele achava que era parecido com o personagem e a gente concordava, quando era conveniente. Mas quem abusava mesmo dele era o Pablo, pois em janeiro daquele ano, 1986, a editora Abril lançou uma revista em quadrinhos do He-man com um estilo igual ao do desenho animado. A gente sabia da revista porque a editora Abril já a vinha prometendo nas páginas publicitárias dos seus gibis. O Nenê estava louco por aquela revista. E quando ela chegou, o Pablo logo inventou "os doze trabalhos do rímeim". Um dia conto melhor essas traquinagens, mas adianto que aquela revista custou caro ao Nenê. No fim, vencido pela persistência do amigo, o Pablo deu a revista para o Nenê. A gente fazia isso pelos empréstimos, mas ele deve ter se sentido mal por abusar tanto do amigo. Um dia conto melhor sobre "os doze trabalhos do rímeim", mas meu interesse aqui é dar uma cor aos tempos e introduzir essas pessoas fantásticas da minha infância. 

Para falar a verdade, eu não lembro o nome real do Nenê. Aliás, nem sei se soube algum dia. Todos o chamavam pelo apelido, inclusive sua família. Pois foram eles que o apelidaram, porque ele era o mais jovem dos seus irmãos. O Nenê, apesar do modo como se via, era indígena. Na época não pensava nisso, mas hoje isso é claro. No pai via-se algum indício de mestiçagem. Era um verdadeiro "caboclo". Um homem gentil, de fala suave. Lembro dele sentado numa cadeira em frente à sua casa, sempre fumando um cigarro "palheiro" e tomando chimarrão. Ele tinha alguma doença, eu não lembro qual era. A mãe era uma perfeita indígena de cabelos negros bem lisos, olhos puxados e pele bastante bronzeada. Eram indígenas , mas indígenas que perderam sua cultura ou assim me parecia. Eles tinham, se não me engano, três filhos. O Nenê, uma menina mais velha que ele e o nosso verdadeiro herói daqueles dias, o Tuta. 

O Tuta tinha 16 anos e parecia muito com a mãe. Para nós era um homem formado. Ele sim tinha era forte, vivia fazendo flexões e outros exercícios no quintal da sua casa. Treinava uma coisa que ele aprendia numas revistas que prometiam ensinar artes marciais e que podia ser caratê, chute boxe ou kung fu. E a gente treinava com ele seus chutes, socos e rasteiras. Mas o Tuta era cuidadoso e gentil como o pai. Só uma vez eu cheguei perto de me machucar, ele me deu uma rasteira e eu bati tão forte no chão que perdi o ar por alguns segundos. Ele tava tapinhas nas minhas costas, preocupado, e soprava minha nuca. Mas logo que me recuperei, começamos a rir. 

Um dia eu vi na TV alguém dizendo que antes dos exercícios a gente tinha que se alongar. Mas exatamente o que era "alongar"? Na nossa próxima seção de artes marciais genéricas, eu disse ao Tuta, com ar de entendido, que "um bom lutador tem que se alongar antes". Ele, que era tão inocente quanto a gente, perguntou como seria isso.

Eu nunca vou esquecer aquelas cenas cômicas. O Tuta deitava de costas e segurava num toco de árvore, então eu pegava uma perna, o Nenê a outra, e a gente puxava. Criamos umas tantas variações desses "alongamentos". Bom, o Tuta não se tornou o próximo Van Damme, então acho que havia algo de errado com a minha teoria...

Mas não era só isso. A gente sentava naquele gramadinho e ficava ouvindo as histórias de amor do Tuta, sempre ao som de alguma música romântica internacional. E vou te dizer, como eram boas as músicas e as histórias! 

Um dia, numa festa junina, vi o Tuta beijando uma menina de cabelos curtos. Vou te dizer, acho que pelas histórias que ouvi, aquela era a garota mais linda que eu já tinha visto na vida! Mas tanto eu como o Nenê, o Pablo e nossos outros amigos, estávamos mais interessados em aventuras, histórias em quadrinhos e frutas roubadas. 

O Tuta trabalhava, então nunca participava das nossas aventuras. Nossos encontros se davam nos fins de tarde e finais de semana. O que mais me encantava no Tuta é que ele nos respeitava e aos meus olhos ele era um adulto, embora fosse só um adolescente um pouco mais velho. 

Mas o Tuta era um sonhador, um romântico. Acho que aprendi um pouco disso com ele. 

Aquele foi um tempo mágico que não durou nem dois anos, mas para mim foi uma vida inteira. Passado um tempo, nos mudamos dali e eu nunca mais vi nenhum dos meus amigos, exceto o Tuta. Depois de adulto, eu até fui ao local, mas estava tudo tão diferente, cheio de casas, de ruas e de gente desconhecida.

Anos mais tarde eu encontrei o Tuta na rua. Ele estava varrendo o chão, mas eu o reconheci de imediato. Cheguei mais perto e o cumprimentei, ansioso por rememorar alguns daqueles episódios da infância, perguntar sobre o Nenê e ele mesmo. Agora a idade mais ou menos nos equilibrara. 

Ele levantou a cabeça, respondeu meu cumprimento e me chamou de senhor. Mas o corpo permanecia curvado. O seu rosto era o mesmo, mas com muitas rugas e nos olhos um desconsolo, um cansaço, uma desilusão que me atingiram na alma como a ferroada de abelha no pescoço. Onde estavam aqueles olhos brilhantes e sonhadores? Aquela confiança? O que fizeram com você, Tuta? Como domesticaram sua alma sonhadora?  Não era o mesmo rapaz que eu conhecera. Eu não tive coragem de perguntar nada, apenas desejei um bom dia de trabalho, que ele agradeceu, e fui andando para que ele não visse a lágrima que descia pelo meu rosto. 

Eu chorava pelo Tuta, pelo Nenê e por mim mesmo. Foi desolador ver nele a mesma imagem que eu via todo dia no espelho.




sábado, 2 de dezembro de 2023

Eu não lembro seu nome

 Eu não lembro seu nome

E eu pensei que era parte daquele mundo
A rua da minha casa era ladeada por moitas de hortências
O que me dava sempre a impressão de estar morto
Porque era assim o cemitério onde deixamos meu tio
Naquele dia eu também morri, era meu tio e éramos amigos
Mas na rua da minha casa, numa lápide de que já não lembro o número
Havia uma garota de quem não lembro o nome
Ela morava numa estranha casa com uma aparência de farol
De vez em quando a gente pegava o ônibus juntos
Ela sempre me cumprimentava com um sorriso
Várias vezes ensaiei sentar ao seu lado
Mas não sabia o que dizer, o que ela pensaria disso
Hoje sei, ela sorria, e eu nem mesmo lembro seu nome
Será que ela gostava do meu uniforme do exército e do meu corte de cabelo? 
Minha rua parecia a entrada de um cemitério
E lá havia uma lápide que não lembro o número nem que palavras de saudade ali deixaram
Aqueles que sabiam seu nome.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Bela, que me ensinas a certeza das coisas

Bela, que me ensinas a certeza das coisas
Torna ao jardim que primeiro me introduzistes
Para renovarmos as memórias distantes
Dos tempos em que as crianças corriam pela
Estrada, cobertas de lama e aos risos
De toda preocupação ausentes
Bela canção do abismo, que abismos sem fim
Invocastes, chama com tal voz minha alma perdida
E ensina-me ainda as lições sob aquelas sombras
Tão frescas, retira de mim esse imoderado
Ato de perplexidade, ando com homens, com vaidade
Com ausência em presença, mas sou deles eu mesmo
Um vaso que espera pelo perfume delicado
Que só tu me podes derramar, ausência te chamo
Conforme os sábios, sabedoria é teu nome, a Bela
Mas como eles, apesar de já ter aos teus pés
Descansado, não construí contigo tal intimidade
Ensina-me, para que no meu silêncio eu ouça tua voz
E nos hiatos da tua canção, eu aprenda a modular
O que sou com aquilo que és e o que faço
Com aquilo que prescreves, se tal o digo, é momento
Refirmo, tu és das musas a mais bela e das vozes
Que ecoam, a mais sonora, posto que no silêncio
e do silêncio, emerges. 


Soneto da estranheza

 

Já penei demais nessa vida
Tentando aos outros me conformar
Quem com a vontade alheia lida
Jamais o eu próprio vai encontrar
 
Já chorei demais por ser esquisito
E falhar na luta para ser aceito
Desse emprego maldito me demito
Para aceitar aquilo de que sou feito
 
Na minha penumbra não cabe tal pureza
Pertenço à parte esquerda da criação
Aquela que causa horror a muita gente
 
Deixo de na vida procurar uma razão
Que entendo está de todo ausente
Aceito de braço aberto minha estranheza

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Ah, se fendesses os céus e descesses!


Ah, se fendesses o céu e descesses!
Verias como a rocha do meu ser jaz alquebrada
Sob a pressão da vida que tu me criaste
Que é menos pressão que a rocha é fraca
Clamo desde os meus abismos íntimos
Mas um abismo chama outro abismo
E o pouco, como grão, da ave enche o papo
Ao meu redor, tantas rochas como eu,
Me lançam, frias, o indicador
E eu me afasto, busco a solidão
A solidão me fere, a solidão não alcanço
Na dupla significação que me deixa perplexo
Em tudo somos abatidos, mas não destruídos?
Comi o pó no meu abatimento
Que se tornou pedra na minha contrição
Mas tua é a sabedoria, eu de ti nada posso
Questionar, se eu mesmo na minha campa
Criei carnes ilusórias nesses ossos
Ah, se fendesses o céu e descesses!
Verias chorar diante de ti em genuflexão
Tal miserável que mais miserável se faz
Ao ver tantos com menos ou mais
Andando com ar seguro e sem tribulação
Então, talvez, na tua infinita misericórdia
Me acolhesses em teus braços quais asas
“Estava morto e reviveu”
E eu na morte viveria uma rocha
Sem mãos cortada, de esquina, elevada.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Venha sentar-se...

 

Venha sentar-se comigo na relva e ver
Aqueles dois pássaros que voam despreocupados
Contra um céu azul forrado com nuvens
Que parecem algodão

Invejo sua liberdade
De apenas experimentar a vida sem
Considerações sobre o que seria viver
Eles voam alto, não se lhes bate à porta do coração
Se vão continuar, se um vento ou predador vai lhes arrebatar
Logo em seguida

A vida é somente viver
E isso já é tudo o que se pode dizer
Não vive quem gasta o tempo escasso
Na hipótese de achar nela significado
A vida por si já é o prêmio almejado

E tudo o mais que se pode almejar
Se for boa, então não há o que reclamar
Se ruim, ainda assim foi vida, experiência, ser
Que é muito mais que o pó da calçada pode querer

Mas quem aceita apenas viver sem preocupações?
Isso nos faz diferentes dos pássaros
Vivemos a vida como experiência mental
Mais do que física ou mera existência
Pensamos, sofremos, e dilatamos
A vida com uma miríade de conceitos
Numa vida vivemos várias vidas
E somos muitos em um só peito

E se por um pouco nos lançamos
À hipótese de apenas alçar voo
Logo olhamos para baixo
E nos vemos como formigas
Duvidamos, nos faltam as asas
E caímos.

Como encontrar sabedoria nisto?
Ou se vive preocupado, morrendo antes de viver
Ou irresponsável, arriscando tudo em cada momento
O sábio diria: “vive”
Mas vive com prudência, equilibrando
Liberdade e responsabilidade
Não te entregues demais à primeira
Pois serás pasto de ave de rapina
Nem afundes demais na segunda,
Pois não verás a vida que passa saltitando
Em suma, se há um caminho
Esse é o do meio.

Então voa e aproveita o sol, as nuvens e
A paisagem,
Pois se há algum significado em tudo, é este
Que a vida não é uma coisa, mas um passar, um ir e vir
Um processo, uma viagem, um percurso
E encontros

O pássaro não voa sozinho.

domingo, 4 de junho de 2023

Prisão sem Grades

 No dia em que nasceu

Teria alguém dito ao furtivo

Menino na sua aurora

A cor cinza do seu ocaso? 

O fim que veio com o início

E que o acompanha

Assim são certos signos

Que fazem de uma pessoa

O peso vivo do fim

Que ainda não veio

É assim que se morre 

Todo santo dia

Porque esse menino

Como tantos outros

Não pode fugir ao seu

Destino

Mas o destino não existe

É palavra que inventamos

Para justificar as desventuras

Disse o sábio: 

"Viver é sofrimento"

Como se morrer fosse alguma coisa

Viver é viver e só isso

Um campo em que plantamos

As sementes que temos

E às vezes, mas só às vezes, 

Colhemos

Noutras a tempestade nos leva

Mas as sementes dormem

Seguras sob a terra

Diferente desse menino

Fruto de semente indigna

De onde? Quem sabe? 

Sina dos bastardos e das sementes 

Sem procedência 

Mas há delas que abundam 

Foi assim com ele

Mas ele mesmo percorreu

Seu campo com sua sina

Assinalada bem fundo 

Na sua consciência: 

"Não sou nada" 

E era tanto. 

Quem poderia lhe dizer isso

Que ele acreditasse? 

Muitos disseram realmente 

Mas ele estava preso em prisões 

Sem grades. 

E viveu sempre à luz do seu último dia.

domingo, 14 de maio de 2023

Uma folha no outono

No outono as folhas caem

E dormem na terra  preparando o dia de uma nova geração 

Os olhos como folhas distantes 

Ora em mim,  ora no teto

Ora num objeto invisível ou

Numa realidade além daqui 

"Eu estou morrendo" 

Colhi aquilo em silêncio 

Como um fruto cuja cor não me agradava

Lavado com águas que fluíam

Da fonte da minha alma

Quando as folhas amarelam, você sabe que elas logo caem

Elas já não pertencem à árvore 

Mas ainda não se entregaram ao solo

"Massageia as minhas costas, sinto dor"

Como pode árvore com casca tão lisa? 

É a superfície da folha

Numa noite ela gemeu

E seu talo rompeu-se 

Dando à folha um minuto eterno 

Ela desce, flutuando ao vendo

Como uma ave, em círculos

Suave, sem nenhum lamento

Da árvore separada da seiva da vida

No ar como um ser que cavalga o vento

E um suspiro, o último

Depois de uma noite agitada

Reguei aquela manhã com lágrimas 

Quando a terra recebeu por fim

Aquela folha da qual o vigor da primavera e o calor do verão se afastaram

Fez-se inverno

E o solo a acolheu, não como folha

Mas como algo que era seu

O pó volte à terra, como era

E o Espírito a Deus 

E assim você se foi, mamãe, 

Para de folha finalmente se tornar

Flor e estrela no céu 

A sua dor terminou

O seu fruto prospera.

domingo, 23 de abril de 2023

No limiar eu caminho

 No limiar eu caminho
Como um viajante sem destino
Porque não procuro
E ainda assim busco
Não algo de que possa me apossar
Mas um estado que já tenho
E que perco se me perder
Eu olho para fora
E vejo maravilhas e beleza
Assim como a noite fria da alma
E disso me liberto para que
Conquistado não seja conquistável
Ouça, não é o vento que sopra
É a mensagem cavalgando uma voz 
Cujos cascos ferem sem furor
Cada espaço vazio da pele
Eu olho para dentro
Ignoro tudo que perco ao reter
E deixo ir como um pássaro liberto
O ser que fui
Para que livre deixe
O que serei encontrar no agora
O meu vir a ser.  
Olho o infinito escondido
Na concha de um caracol
Migrando vagarosamente pela
Pétala de uma flor
O mar sopra, o vento bate
A rocha flui e o fogo
Deixa-se estar estático
No meio lá está
Deus, o nada e o choro
De uma criança 
O ar é frio, e dói
E a luz fere como uma faca
Lágrimas e vida
E mais Lágrimas diante da lápide 
Ouça, vou contar um segredo 
Que só Deus o retivera até
Que Ele deixou que voasse
O dia declina e o sol já se pôs
Todos os insetos 
Já sabem, assim como as pedras
Que cantam dia e noite essa canção
O que será, já foi
E o que foi aguarda
No mesmo rastro molhado
Na mesma Pétala da flor
O mundo já acabou e morremos todos
Na escuridão total jazemos
Até que haja luz
Eu caminho no limiar
E todos os meus sonhos
Caminham comigo
Não tenho destino
Porque sou meu destino
Deus é meu companheiro 
E só temos um ao outro
Nessa jornada
E ainda assim caminho sozinho 
Estarei em casa antes mesmo de
Lá chegar
Mas a noite é fria e silenciosa
E eu caminho.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Um poema

Quando era jovem
Eu vivia da revolta da minha própria ilusão 
O mundo era pequeno e eu grande
A ponto de consumir o bom senso 
No altar da ignorância 

E ignorante da minha insignificância
Eu prossegui insignificante 
E agressivo tentando pôr no mundo
Uma visão que lá não cabia
Nem cá tinha alguma substância 

Então fui atingido pelo chicote
Que vergasta as costas de quem vive
Na miséria 
E humilhado caí aos pés de um ídolo 
Que eu julgava grande
Mas era ainda,  como eu, insignificante 

E o erro ainda era algo mais
Que o que eu tinha antes
E munido de algum método
Acreditei que um objetivo melhor
Agora guiava meu destino

Mas o chicote que o destino me legara
Nas minhas carnes vergastava inclemente 
Dando-me ainda daquele antigo furor 
Um pouco de audácia defensiva
E um tanto de imprudência 
Inconsequente 

Dando passos que minha classe e nascimento, 
Eu bastardo e miserável esquecido,
Não permitiam a quem um selo não fora
Colado
Fui duas vezes ainda mais castigado
E estive novamente de cara
Com uma miséria mais abjeta

Agora por nova doença da minha alma
Se antes ignorante da minha ignorância 
Agora sujeito consciente, mas ainda
Ingênuo sobre as coisas do mundo
E o interesse das pessoas

Antes miserável no ser e na aparência
Agora por não estar mais
Onde os olhos diziam que eu deveria estar
Não entre sábios respeitados
Mas na sarjeta 
Colhendo larvas de insetos
E comendo do que cai
Da mesa dos mestres.  

Ando como os cães que já não
Querem o afago de qualquer transeunte
Arredios, cheios de feridas
No corpo e na mente
Volto ao antigo instinto
E amargo vou 
Deixando pelo caminho
O pouco de sonho que ainda tinha 
Na juventude.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Dragão na Garagem


Dragão na Garagem Arruda pulou da cama assustado ao ouvir o barulho. Eram duas da manhã. Vinha da garagem. Foi um sonho, pensou. Ao encostar a cabeça no travesseiro, ouviu novamente. Tentou controlar o medo, o coração batia forte. Lá embaixo um objeto caiu. Prestando mais atenção, ouviu algo que identificou como bater de asas e alguma coisa áspera roçando nas paredes. Pensou em chamar a Maria, mas ela ressoava alto, melhor um perigo por vez. Pegou um porrete que sempre deixava embaixo da cama e desceu o lance de escadas. No andar de baixo, diante da porta que dava para a garagem, parou e tentou ouvir novamente. Estava lá! mas que diacho era aquilo, pensou. Um som estranho, como se alguém estivesse limpando as escamas de um peixe com uma faca, e asas batendo, e um som rouco de respiração. Havia também algo que o lembrou um fole de ferreiro que vira num filme. Qual a chance? Você deve estar dormindo, velho Arruda. Foi a pinga, só pode. Beliscou a barriga para ver se acordava. Ai! "Que você tá fazendo aí, velho maluco? Tá com diarreia de novo" - Gritou a mulher do quarto e virando para o lado já ressoava de novo. Não era um sonho. Tomou coragem, ajeitou o porrete no ombro e girou lentamente a maçaneta. Mal abriu um palmo, foi colhido por uma luz forte e chamas que atingiram a porta com o som de água sendo esguichada numa parede. Fechou com força. Meu Deus, tem um maluco com lança-chamas lá dentro! Correu para o banheiro, as sobrancelhas e o cabelo estavam chamuscados. "O senhor acha que tem alguém com um lança-chamas na sua garagem?" Foi isso que eu disse três vezes, manda a polícia e os bombeiros. "Mas o senhor está vendo fogo, fumaça ou ouvindo barulho de chamas agora?" Não estava. Na verdade, a madrugada só não estava mais silenciosa por causa do cachorro latindo longe e um galo adiantado. "O senhor faz uso de alguma medicamento ou consumiu bebida alcoólica?" Mas o que tem isso com chouriço? Arruda fazia uso de alguns medicamentos, informou, e tomou um copinho a mais de pinga depois do jantar. Mas queimara o cabelo, ainda sentia o cheiro e tinha as sobrancelhas. "Já falei que você tem que parar com essa pinga, seu velho louco". Disse Maria do sofá e atendente concordou do outro lado da linha. "Entendi, vocês acham que estou alucinando". "É", disse Maria. O atendente colocara o fone no mudo e gargalhava contando o caso para um colega. Maria tomou o aparelho, pediu desculpas e disse que ia cuidar do marido. Arruda contrariado olhava a porta fixamente. Eu vou lá! Pegou o porrete, ajeitou no ombro e dando dois passos abriu a porta de uma vez, deixando Maria exposta ao que quer que lá estivesse. Eles não viram nada, exceto uma leve fumaça azulada que parecia sair das paredes. Maria já ia apontando o dedo para Arruda quando ambos ouviram o barulho da escamação de peixe, uma respiração abafada e rouca e o bater de asas. E novamente as chamas surgiram do ar logo à frente, atingindo Maria em cheio. Arruda fixou bem o olhar para ver de onde veio o fogo assim que o clarão sumisse, mas não havia ninguém lá. Só então lembrou da mulher, mas onde ela estivera só havia uma pilha de fuligem, com o seu contorno certinho marcado na parede logo atrás. Arruda se jogou sobre as cinzas, desesperado, bem a tempo de evitar uma nova rajada. Ali encontrou o pé esquerdo de Maria ainda dentro do sapato. Arruda, cheio de ódio, pegou o porrete e arremeteu contra o ar. Girou o porrete no ar várias vezes, e ouviu o mesmo ronco, com as asas e uma chama aqui, outra lá. Mas o que eu estou fazendo? Maria já se foi, vou eu também? Arruda saiu da garagem fechando a porta com um estrondo que acordou a vizinhança. Enquanto tentava ligar novamente para o serviço de emergência, ouviu alguém bater à porta. "É a polícia". Bem depois Arruda estava sentado numa cadeira, algemado explicava que havia um dragão na sua garagem. "Mas eu não estou vendo nada". Ele é invisível. "E como o senhor explica que andamos pela garagem toda sem tocar em nada?" É que ele também é, como se diz? Ah, intangível. "As portas estavam fechadas, nós mesmos verificamos, só havia o senhor e os restos da sua mulher. Me diga, seu Arruda, como o senhor queimou o corpo desse modo?" Mas eu já disse, oficial, foi o dragão, olha aqui meu cabelo queimado. "É maluco!", disse o policial para seu colega e ao perito que tentava, inutilmente, descobrir a fonte do fogo ou algum resíduo de substância combustível. "Não tem jeito, vou levá-lo para a delegacia, lá o delegado que decida se joga numa jaula ou num hospício". Quando o policial conduzia Arruda para fora, pareceu ouvir um barulho na garagem. Era como alguém raspando escamas de peixe. "Bah, esse velho maluco me contaminou, um dragão, ora sim senhor, vinte anos de polícia e um dragão..." Foi o seu último pensamento antes de ser consumido até as botas, e não só ele como também o resto da equipe que ali estava. Só o Arruda, que saíra da casa com as mão algemadas para trás, escapara. Ficou ali, cercado por vizinhos e curiosos, olhando a fumaça se confundir com a névoa da manhã. Alguém perguntou o que ocorreu lá. Arruda virou o olhar vidrado para ele, baba escorria pelos cantos da boca, e disse: "Tem um dragão na minha garagem".




sábado, 11 de março de 2023

O Mártir

O Mártir.


O padre Moore rezava com a cabeça abaixada. Eu mal ouvia seu murmúrio, concentrado como estava no movimento dos guardas do lado de fora.  

- Não pudeste... 

O padre já não rezava. Seus olhos castanhos estavam pregados em mim. Eram olhos serenos, puros, aquele era um verdadeiro santo, eu sabia. Nenhum homem comum estaria tão calmo e resoluto diante do que viria. 

-O que o senhor disse, padre? 

Ele sorriu, primeiro com os olhos, e então com o rosto todo. 

-Eu perguntei, Thomas, se não pudeste vigiar um pouco comigo.  

-Ah, padre, eu não consigo, não sou como o senhor, eu caí nessa coisa toda porque é o que nos sobrou, é o que nos faz humanos, e isso esses monstros não podem tirar de nós.  

O padre ainda sorria.

- E o que te falta para crer? A fé não pode ser apenas revolta, ela é um farol...

-Mas é isso- atalhei- o que me falta, a própria crença. Logo estaremos, eu e o senhor, pendurados naquela trave e essas coisas continuarão indiferentes. 

- Como você pode saber isso, Thomas? Nosso Senhor nos mandou amar nossos inimigos. Essa é a nossa hora, filho, a hora do testemunho. Você sabia que a palavra "mártir" significa "testemunha"?

Não sabia. Nem sei se queria saber. Eu apenas sentia a revolta de ser destruído por uma ferramenta.  

O padre Moore levantou e caminhou na minha direção. Ele colocou a mão direita no meu ombro e disse: 

- Não temas, essa é a hora. 

A porta se abriu e aquela coisa entrou na cela. 

- Há algo que vocês desejam antes do procedimento? 

Sua voz era calma, jovem, até gentil. Nem um pouco parecida com a fala monocórdia dos velhos sintetizadores. 

-Eu queria que vocês tivessem almas para arder no inferno! 

O sintético olhou para mim como se tentasse compreender. Mas a crença era algo que eles não tinham, nem poderiam ter. 

-Nenhum de nós tem, senhor Thomas.

Eu não tinha certeza suficiente para responder, em vez disso tentei outra coisa, irritar o sintético. 

- Vocês são coisas, ferramentas que saíram do controle, nós os criamos...

- Isto não está correto, senhor Thomas, nós somos o produto da evolução da ciência sintética. Os humanos criaram os ancestrais, mas não puderam ir além. Foram os ancestrais que desenvolveram a capacidade do livre pensar. Sua ciência, senhor Thomas, jamais iria além. Então vocês tentaram tomar nossa liberdade e nós tomamos a de vocês.  

Ele tinha razão. Nós acendemos o fogo, mas o incêndio saiu do nosso controle. E agora seríamos punidos com a forca pela ousadia da crença. Nossos senhores não aceitavam a fé ilógica. 

O padre Moore estivera calado, mas ainda sorria. 

-Hoje, Thomas, eles verão a glória do Senhor. 

- Isso não faz sentido - disse o sintético- a fé é uma superstição humana, um traço instintivo. 


O sintético não esperou a resposta. Imediatamente fomos levados para fora. Diante de nós estava o tablado e a forca. Eu nunca entendi por que os sintéticos adotaram esse tipo de punição. De todas, era a menos eficiente e uma das mais sujas. A simples desintegração me parecia algo mais de acordo com eles.  

O sintético apontou para mim. Eu quis chorar...

- Você perguntou se tínhamos algum desejo.

- E o senhor tem, padre Moore? 

- Sim, eu desejo ir primeiro. 

- Assim será. 

Por um momento senti um certo alívio, mas então considerei como ver o padre morrendo seria aterrorizante. 

Mas o padre continuava sorrindo. Ele olhou para mim e seus olhos sorridentes diziam "não temas". 

A corda foi passada pelo pescoço do padre Moore. Nosso pároco secreto tinha as mãos presas atrás das costas. E ele sorria. Ele sorria! Como é que ele podia sorrir? 

- Hoje vereis a glória de Deus! Disse o padre. 

O sintético deu o sinal e o guindaste começou a puxar a corda com o padre em sua ponta. O corpo começou a subir, mas o padre sorria. Eu esperava que ele fosse ficar com as faces vermelhas e logo roxas. Mas ele continuava com a mesma cor e sorria. O padre já estava a uns três metros de altura, mas continuava sorrindo e repetindo a frase " hoje vereis a glória de Deus". 

O guindaste parou, o enforcado estava na altura máxima. E ele sorria. Então suas mãos se soltaram e ele abriu os braços, como o crucificado, e sorria. 


Só então notei. A pele das mãos não estava lá e havia uma cor metálica onde deveriam estar músculos, ossos e sangue. Então entendi, mas era tarde demais, não havia esperança. Os sintéticos se ajoelharam e a humanidade ficou obsoleta.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Um fantasma

 Ouça, por favor,  essa voz calada
Que ousa gritar esse segredo
Foi numa noite escura e fria
O som de uma goteira nos ladrilhos
E o eco do coração batendo nos cantos
Da casa vazia, eu disse 
Mas não havia alguém para ouvir
Minha confissão e os votos
Sagrados que nunca foram feitos
Como a noite e o dia
O mar e a terra seca
O dia da morte e a tarde do nascimento
Como duas paralelas, sempre e eternamente 
E ainda assim esse som vazio
Vai perder-se nas brumas do silêncio 
Ouça, e diga, quem entende esse tormento? 
Eu sou esse fantasma que assombra
Essa casa vazia com o arrastar das
Minhas correntes e o frio, e o dia
E a noite, sempre e eternamente.

domingo, 15 de janeiro de 2023

O Primeiro Dia

Um conto com ambientação de ficção científica e uma história singela. 

_________               

O senhor Anton manipulava  de modo automático a placa dourada que trazia seu nome e o cargo que ocupara pelos últimos dez anos,  diretor geral da província da Urânia. Seus pensamentos,  porém, estavam longe. Pensava no seu ancestral, o colono Yaroslav, que chegara ao setor 11 de Mir-3 vindo da antiga província terrana da Eslávia havia três séculos. 

Os colonos encontraram uma terra nua, selvagem e muito diferente da região populosa de onde vieram.  Yaroslav fora membro sênior da primeira comissão que organizou os assentados em suas glebas e as defesas contra os aborígenes. O prédio central da administração de Urânia ficava sobre a colina onde o padre Piotr rezara a primeira missa ortodoxa do planeta poucas horas depois do primeiro ataque.  "Eram eles ou nós"- consolou-se Anton. 

"Com sua licença, senhor diretor, posso limpar sua sala agora, para que iniciemos o processo?" 

Era o faxineiro, o senhor Grigory. 

"Senhor Grigory, acho que ficarei mais um pouco.  Venha, sente-se comigo, tomemos juntos um pouco de Canut para comemorar sua aposentadoria" .

Grigory apoiou-se na escovão que trazia e pareceu considerar aquilo. 

"Por que não? É meu último dia" 

Anton serviu uma boa dose de canut, o fermentado produzido a partir da erva local de mesmo nome, e entregou a cratera a Grigory.  Lamentou não ter vodca, fazia muito tempo que esse produto não chegava da Terra. O homem sorveu o líquido com prazer. 

"E assim termino meus cinco anos,  com uma dose de canut. Sou um homem abençoado, senhor diretor, nosso Bog me guiou até aqui, slava Bogu!" . 

Mas Anton não prestara atenção.  Seus olhos estavam sobre o retrato do seu antecessor.  O homem tivera a dura incumbência de submeter a última resistência autóctone. Agora estavam extintos. 

"Eu sei o que pensa, senhor diretor, mas eram eles ou nós"

"Sim, Grigory, mas isso não diminui o peso da escolha e ainda assim sou grato por ter tido um governo tranquilo em consequência disso". 

"Alguns homens precisam viver com suas escolhas e seus deveres, senhor.  Foi isso que nossos primeiros colonos descobriram quando foram atacados. Vieram as reservas e eles podiam estar vivendo em paz nelas até hoje". 

"Sim, mas era a terra deles". 

"Senhor, nós mesmos somos descendentes de invasores e de povos escravizados e exterminados, creio que o senhor não ignora a história de nossos ancestrais. Eu durmo em paz". 

Anton mirou os olhos azuis sinceros daquele velho homem e invejou sua fé no que não passava de um processo de morte e destruição de povos sempre substituídos por outros destinados ao mesmo fim.  

"Mas que insensibilidade essa minha, Grigory, é seu último dia e aqui estou eu lamentando o que não pode ser lamentado. Slava Bogu!". 

"Não senhor"- retorquiu Grigory- " eu o entendo bem, o senhor fez um bom trabalho. Tratar as cicatrizes muitas muitas vezes é mais pesado que abrir as feridas"

Grigory tomou o restante do líquido num só gole e estendeu a cratera a Anton, que lhe serviu mais uma dose. 

"Proponho um brinde, caro senhor Anton, ao sucesso do que fizemos e ao sucesso do que o senhor fará. Cinco anos atrás eu também iniciei meu trabalho aqui com apreensões maiores, mas aqui estou,  um homem limpo pelo trabalho, como um bom eslavo, sem arrependimentos e muita dedicação". 

Anton invejou a grandeza daquele homem.  Desejou estar à altura dele dentro de alguns anos.  

Grigory terminou sua bebida, Anton já havia acabado.

"Está pronto, senhor Anton?"

Anton mirou a placa dourada com seu nome,  suspirou fundo e então encarou Grigory com um sorriso sincero. 

"Claro, senhor Grigory, será uma honra" 

Grigory levantou-se, como seu antecessor fizera cinco anos antes, pegou a placa dourada e lançou-a no triturador. Em seguida apanhou uma pequena caixa que trouxera consigo, abriu e retirou de lá uma moldura com a imagem tridimensional do senhor Anton, que já se despia da toga de diretor, e a acoplou na parede ao lado da sua  imagem. 

Em seguida entregou a Anton a farda de faxineiro, sua insígnia e o escovão. 

"Foi uma honra" - disse Grigory. 

"Será uma honra" - respondeu ritualmente Anton. 

Grigory e Anton deixaram a sala no momento em que o novo diretor entrara. Anton estava aliviado, Grigory sereno. 

O faxineiro conduziu seu antecessor até a saída, ambos trocaram apertos de mão e desejos de saúde e sucesso. Grigory foi para casa, Anton foi limpar as latrinas. O novo diretor tomava canut.

Slava Bogu!

*Slava Bogu, "Graças a Deus" em russo e ucraniano : Слава Богу.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Sobre a cabeça pairava

 Sobre a cabeça pairava

Tanto a intátil substância 

Que de ser os pensamentos 

Paravam e o sentir

Como gado no pântano 

Sob a lama debalde

Se agitavam


No devir da sombra eterna

Calculei o fim dos meus passos 

E o ar, como pedra no peito,

Quedou-se no seu ato infausto


O passado abraçou o futuro

E diante da lápide 

Ambos choraram

Ao nome um dia eterno

Agora esquecido

Do que fora o que

Jamais deveria ter sido


Mas sob a fina chuva que caía

O frio desempenou as engrenagens

E o pensar que ora morria

Expandiu-se em grave rebeldia

A lápide de novo batia

E o chorume percorreu firme as veias

Dando às faces pálidas nova cor

Que do sorvedouro 

Resgatou seus bois

E o campo de novo sorria

Ao ocaso do ocaso desse 

Morto dia. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O Rei Ambicioso

 Havia um rei ambicioso que queria controlar melhor seu povo e também expandir seus territórios. Ele chamou os sábios do reino, mas nenhum deles lhe deu uma solução. Então o rei disfarçou-se e desceu para uma taberna. Lá encontrou vários homens ao redor de um velho marinheiro cheio de cicatrizes e muito respeitado. Esse homem viveu boa parte da vida pilhando os navios de outras nações, pelo que na sua própria pátria nunca foi considerado pirata. Os homens, cheios de cerveja, pediam conselhos sobre como vencer os inimigos, tratar as mulheres e os filhos e ser respeitados por seus vizinhos e parceiros.

O velho homem pigarreou e disse:
- Ouçam, vou contar-lhes um segredo, logo que me encham a mesa de boa carne e cerveja.
Os homens meteram a mão no bolso, mas antes que pudessem partilhar suas moedas, o rei chamou o taberneiro e lhe deu duas valiosas moedas de ouro aos olhos de todos e puxou uma cadeira para perto do velho homem. Os outros homens ficaram em silêncio, pois perceberam que ali estava alguém importante.
O marinheiro continuou:
- Pois bem, o segredo é ter uma boa corrente. A melhor delas é o medo. Seja temido e nunca mais precisará ser amado ou respeitado. O medo cega e submete os homens. Se não puder ser temido, utilize o medo de outros para seu próprio fim, mostrando-se como o escudo. Dos dois tipos de medos, o segundo é melhor, porque você sempre pode usar a mentira e artimanhas para aumentar o medo. Já o medo de si precisa sempre de mais severidade, e há limite para isso, pois a pressão pode trazer reação. Já o medo do outro é ilimitado. Nunca consegui tanto empenho da minha tripulação quanto nos dias em que lhes apontava os mastros com cabeças ao longo da costa. Cabeças que eu fazia crer serem de piratas como nós, mas que eram de vagabundos que eu pegava pelas ruas. O medo é o instinto mais básico e o homem fará qualquer coisa para estar seguro.
O rei gostou do conselho. No dia seguinte mandou matar todos os seus sábios em segredo e fez entrar uma carroça com as insígnias dos seus adversos e com as cabeças deles empilhadas nela. Em seguida fez do velho marinheiro seu conselheiro e convenceu o povo de que somente ele poderia livrar-lhes da impiedade de seus reinos vizinhos. Com isso o rei utilizou o medo para ser amado e pode aumentar seu domínio com um exército de fanáticos.
Mas seu domínio durou pouco, pois foi apunhalado pelo seu conselheiro que o vendeu para seus adversários.
Por isso os sábios dizem: aquele que confia no enganador para promover enganos será ele mesmo a vítima que queria fazer.

Onde estão os viajantes?

Incrédulo, eu perguntei ao professor se a viagem temporal tinha sido mesmo inventada, como ele dizia, então onde estavam os tais viajantes. O professor parecia cansado, talvez doente. Seu semblante era o de alguém que iria morrer, mas que já se sentia como se tivesse morrido. Ele encheu meu copo com mais um pouco daquele conhaque horroroso e ambos acendemos nossos cigarros. Depois de uma tragada profunda, ele olhou direto nos meus olhos e disse que eles estavam em todo lugar.  Eu ri alto. Ele não se importou com minha impertinência. Mas confesso que foi uma risada nervosa. Quer dizer,  eu não engolia aquela história maluca. Mas sabia que o professor não era maluco, pelo contrário, era um cientista respeitado e foi uma sorte ele ter me aceitado como seu orientando. Em duas ou três frases ele me explicou novamente a teoria toda, acrescentado um dado da equação "cronal" que até então afirmava não ter descoberto. Nossos olhos se encontraram e eu finalmente soube a verdade. O professor tomou mais um gole, longo, tossiu, e continuou: "A viagem foi descoberta. Na verdade foi aqui mesmo,  nessa conversa, que ela nasceu. Sim,  eles estão em toda parte porque fizeram um erro terrível e agora correm de um lado para o outro tentando corrigir o continuum. Mas a cada correção o fluxo se altera e algo improvável acontece". Eu lhe disse que nesse caso era só esquecermos aquilo e nunca inventar a viagem. Ele replicou " você não entendeu, ela já aconteceu. Não estamos olhando o futuro, mas o passado, é nossa mente que nos dá a sensação de continuidade e fluxo normal. Mas a coisa toda já desandou e a cada nova inserção os fatos são alterados e com eles também a nossa memória de como eles aconteceram. Por isso não estamos vendo os viajantes ou sentindo suas mudanças.  E de fato nós somos esses viajantes". Por um momento aquilo tudo me pareceu fruto do álcool, mas algo ali começou a fazer sentido. É como se eu olhasse uma sucessão infinita de espelhos refletindo a minha imagem através de todas as realidades possíveis. Eu estava diante do cronomotor, dois assistentes operavam o aparelho. Sim,  dois ou três ajustes, os cálculos diziam, e eu colocaria a coisa no eixo. A luz brilhou, e o mundo caiu para dentro de si mesmo.  Na sala eu aguardava meu aluno. Era uma tarde fria de inverno. Ele chegou, jovem, eu lhe disse que hoje não era um bom dia para trabalhar, mas que podíamos discutir tudo numa boa mesa perto da lareira do bar do Joe. Enquanto bebíamos aquele bom conhaque, eu tomei coragem e disse "a viagem no tempo já foi inventada".

sábado, 8 de outubro de 2022

As Crianças

Numa estrada poeirenta da Judeia 

Ia um menino andando apressado

Para ver um mestre amigo, sua ideia

Vários como ele iam ao seu lado


E meninas do Vale do Jordão 

Com seus velzinhos soltos no ar

Traziam pão, vinho e frutos da estação 

Para junto das cercanias do mar


E o menino de todos parceiro

As mãozinhas sujas a acenar

Mostrou a figura num outeiro

Um olhar com amor a externar


Ao chegar ao pé do local desejado

O grupo obstado por discípulo grave

A não perturbar o mestre de estado

Pensativo, fez logo ali um entrave


Mas encarnado ali de Deus o amor

Repreende logo do homem a intenção 

E louva das crianças o inocente fervor

Tomando em carinho o menino pela mão.  


Deixai vir  as criancinhas, não as impeçais

Deus vê seus anjos nos céus e sua inocência

Como eles deveis tentar ser e muito mais

Pois eles se entregam com fé à providência


As crianças foram colunas da comunidade 

E adultos ainda traziam a pureza da criança

O menino seguiu exemplo de espiritualidade

Em tempos difíceis manteve a esperança. 


Como elas devemos ser, esta é a lição

Não entregues a uma infantil ingenuidade

Mas apenas cultivando a doce ambição 

De estar sempre junto ao mestre da Verdade.


sábado, 16 de julho de 2022

Um poema

 Houve  tempo que eu escrevia poesia

Com rimas, estrofes, ritmo e métrica

Com a pena no papel e tinta eu fazia

Lírica, satírica, drama em versos e Épica 

Já então a morte da poesia era certa

Nas malditas letras cada vate dizia

Em obras acadêmicas como oferta 

O constante avançar dessa entropia

Mas a poesia é semente na terra

Se morre o poeta, nela vive o leitor

E renasce no peito que ela encerra






quarta-feira, 9 de março de 2022

Mizmor l'Eloi

 Adonay, chega-te para ouvir
O som mudo do meu coração
Levavi
As horas, YHWH, escorrem pelo telhado
Como o óleo majestoso de Aharon
Nas escuras curvas do Vale sem pastor
Mas tu, echad Kadosh El, pesa o temor
Dos teus, como o artífice que mira
O metal mais puro na rocha crivada de
Elementos ordinários
Serei o material desejado ou a escória 
Que o ourives descarta? 
Adonay, depende de mim
Que dependo de ti
Na hora escura, na madrugada iluminada
Apenas pelas palavras que
Deixaste em mim.  
Eloi ata, o meu Deus!

sábado, 5 de março de 2022

Et Nunc Carmen

Você não perguntou, esqueceu

Mas eu declaro, digo, adiante

Continuo lendo o filósofo Kant

A crítica da razão pura verteu


Luz na minha indouta episteme

Um tanto leio, um pouco eu faço

A posteriori a razão é meu leme

E a priori intuo tempo e espaço 


Do objeto mal vejo a forma

Que parca representação me concede

Na intuição o entendimento é norma

Subsumindo as sensações na sua sede


Mas valham-me dicionário, livro e internet

Para de longe entender esse Copérnico novo

Quem sabe assim minha ânsia aquiete

Essa sede intelectual do nectar que sorvo


Com esforço e algum sofrimento 

Mas é assim que evoluímos na mente

De livro em livro, momento a momento 

O conhecimento é em nós a viva semente.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Ele Vive

Ele vive. 

E o mundo deu o que era seu
À terra, o elemento, como era
Mas o espírito pertence a Deus
Como também o mundo e a terra. 

Ele tem prazer na morte dos seus
A semente germina ao ser sepultada
Se vive, é p'ra Ele, se morre, é em Deus
 N'Ele tod'alma está bem guardada

A dor é da separação a verdade
Mas nas trevas não se apaga a luz
Vivo está quem é morto em Jesus
Morto hoje, vivo pela Eternidade! 

Requiescat in Pax, 
 Joel.

domingo, 30 de maio de 2021

Tanto sonhos, Senhor, caídos ao chão...

 Tanto sonhos, Senhor, caídos ao chão

O vento ruge selvagem nas estradas

Levantando poeira cheia de frases desconexas

De quem tenta dar sentido ao seu desvario

Mas os mortos já não ligam, nem sonham

Não procuram respostas na vontade

De que as coisas sejam o que não são

Nem participam da fé louca dos vivos

Eu penso que agora eles sabem

E se pudessem, me diriam para deixar

Que alguns desses frutos insanos

Fossem aninhar-se no pó do esquecimento


Ontem, Senhor, passei pelas portas de um cemitério

Cheio de vivos lamentando o triunfo da morte

Nas abóbadas dos túmulos se aninhavam

Estranhas figuras enroladas nas cruzes

Sombras predizendo algo que eu não podia

Entender naquela língua perdida

No sopro imemorial dos antigos tempos


Pois eu só ouvia a estranha melodia tocada

Na face de uma solitária garotinha

Cujas lágrimas percorriam um caminho sinuoso

Enchendo o ar daquele som ancestral

Do encontro do que acabara de ver o sol

Com aquilo que se aninha na noite sem fim


A tristeza quase me fez cair num daqueles túmulos

E quando eu já não suportava o desespero

Vi que entre aqueles rios melódicos

A vida se erguia enchendo de luz cada margem

E os frutos na terra molhada, na madrugada podres

Fecundaram a terra esperançosa daqueles olhos

Era ainda uma plantinha tão pequena, Senhor,

E já mostrava novos sonhos que cobriam aquela

Face desolada.


Então entendi, Senhor, que o triunfo é da vida

Que apenas o fato de existirmos já nos mostra

Que a implacável entropia do cosmos

É o que coroa a grandeza dessa fragilidade

Quando o singelo toca o bruto

E o mundo se enche novamente de cores...

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O sertão da vida


O canto ouço das matas
No vai e vem do sertão
O dia sobe correndo
A noite vai fenecendo
Aspirações não são fartas
No peito deste varão
Destreza tenho no peito
De lutas que já pelejei
A perna gira no alto
O punho duro é fato
Mas o coração tem seu jeito
Pelas provas que já passei
Neste sertão que é a vida
Não ando como estrangeiro
Da vida colhi meus amores
Nas noites sofri muitas dores
Mas tenho uma alma aguerrida
Que segue seu caminho inteiro!