quarta-feira, 9 de julho de 2014

Foi em Abril

Isso é um poema -triste ter que explicar- cuja voz que fala é uma voz criada, assim como é criada a história e as imagens. Essa voz, se preferir, é um personagem que fala de si, do seu delírio. Eu não sou esse personagem, apenas dou-lhe voz. Por ser poema, o texto "agasalha" a ambiguidade como um meio...aconteceu? Não aconteceu? É delírio, metáfora? Eu escrevi, mas quem decide é você, sincero leitor!


Foi em abril, faz algum tempo, eu caminhava desatento 
Por uma via esquecida onde cantavam esquecidos pintassilgos 
A manhã abraçava a tarde sob os raios tímidos de um sol indiferente 
E o cheiro de campo não pisado erguia véus como os de uma noiva nunca tocada 

O dia sorria ao meio-dia e não havia outra pessoa que sentisse, como eu, 
Esse toque indecoroso do desejo insatisfeito e essa curiosidade afoita 
De quem deseja amar e ser amado e ainda mais, sentir nos braços a pele macia 
De uma mulher entregue aos apelos sempre constantes de um outro coração cheio de 
desejo! 

Sob a sombra frondosa de um carvalho, deitei e nessa ânsia sombria me entreguei ao 
abraço invisível de um sonho que me prendia sem que ao menos eu estivesse dormindo. 

Foi num pavoroso abril, o pior dos meses sombrios... 

Fui tragado por um turbilhão de emoções que pairavam nuas sobre o meu ansioso desejo 
E acuado pelos apelos insanos de um sonho não cumprido eu me entreguei 
Aos longos braços frios... 

Com os olhos fechados tateei em torno do próprio silêncio que eu me impunha 
E galgando um patamar apenas sentido cheguei ao átrio frio de um templo misterioso 
Onde vestais serviam como sacerdotes de um deus desconhecido e o insano Eros varria 
com sua imensa cabeleira os corredores cheios de gente perdida e de sonhos 
frustrados... 

Foi num abril inescusável, desses que a gente marota costuma deixar os costumes de 
lado e entregar-se a uma crepitante orgia que começa nos começos do dia e pende 
embriagada pela tenra madrugada. 

Então, tremendo diante de mim mesmo, ousei e num arremedo de coragem apenas 
alcançada 

Abri os olhos para ver toda aquela coisa que num piscar de olhos ausentes eu via, como 
se a dor do meu peito fosse além de meros gemidos, mas englobasse nesse miasma de 
coisas inconfessáveis, todas as minhas insanas crendices. 

E ao abrir os olhos cansados, fui tragado por uma imensidão de cores e odores e um 
hálito quente como a vida nos seus primeiros amores. 

E da sombra daquele templo orgiástico, um outro mundo surgiu com a força de mil tiros 
de mil canhões! 

Quando meus olhos fitaram a apenas dois passos de mim a forma pura e acabada de 
todos os meus desejos ignorados. 

Foi num doce abril, desses que encantam até os mais frios corações e que faz das 
gralhas aves graciosas que apenas pairam sobre as doces águas. 

Ao primeiro raio daquele olhar que me fitava quis esquivar-me num misto de vergonha e 
medo 

Como se um desses entes sem coração me desnudasse diante de uma multidão de 
ferozes homens cuja hipocrisia grassasse forte no peito. 

Mas eu, aborto esquivado e sombrio, senti sobre o ombro virgem as mãos suaves 
daquele anjo apenas percebido. 

E ao toque suave meu mundo infernal foi se retraindo até que num momento o nada 
explodiu dando origem ao céu dos meus renovados sentidos. 

E olhei meio perdido para aqueles olhos tão vivos e os belos lábios que um rosto gentil 
adornavam. 

Havia um quê de retidão naquelas faces suaves e um ar de liberdade, como só podem ter 
aqueles que vivem além da turba que inunda as ruas vazias de vida de todas as cidades 
do mundo. 

Seus olhos felizes me indicavam o caminho que eu devia percorrer e deixando minha 
tímida maldade, desci os montes de onde avistei seus segredos enrolados em 
transparentes reflexos de luz. 

Das ondas mais distantes percorri com vagar as linhas que me levavam além dos seus 
cheirosos cabelos. 

Descendo com toques carinhosos as passagens deliciosas que percorriam seu pescoço e 
se inclinavam ao redor dos seus seios. 

Enquanto ela, amante singela, invocava meu nome esquecido, como se dissesse a um 
anjo que entrelaçasse a paixão com suas asas divinas. 

Seus dedos caminhavam com alegria pelos meus cabelos e seu hálito doce aquecia as 
orlas felizes do meu pescoço, enquanto eu, ausente e presente, sentia do seu corpo o 
aroma e a ardência que só podem ter os verdadeiros amantes. 

Foi num ensolarado abril, desses que deixam as neves distantes e enchem os campos de 
belas flores e borboletas cobertas de sonhos de várias cores. 

Ah, mulher e vida, e não havia como distinguir onde uma começava e a outra terminava, 
pois ao crepitar dos nossos corações, a felicidade alçou, como uma santa fogueira, 
labaredas cintilantes e nuvens esvoaçantes de cinzas torturadas pelos prazeres sem fim. 

Aos afagos ardentes da minha amante confidente, deitei sobre o solo macio e ela, como 
uma leoa no seu predar, desceu sobre mim suas garras afiadas e cortou da minha carne 
todas as impuras proibições que me amarravam. 

Ela me dizia “me ama!” E eu a amava em seguida. Ela ordenava “me ama” e eu me 
entregava sem pudores. Ela dizia suplicante “me ama” e eu rugia a plenos pulmões “eu te amo, eu te desejo, eu me entrego”. 

E me entreguei, pleno, como só podem se entregar os que se entregam por inteiro. Os que 
a vida dão sem visar a recompensa, os que abandonam os castelos e vão pelos campos 
copular com o orvalho e fazer amor com o pólen dos primeiros frutos da primavera. 

“Me ama”, ela dizia ardente, e eu a amava com a alegria dos lobos aos primeiros dias do 
cio. Ela dizia “me ama” e eu a amava com o coração e a alma e o corpo inteiro. 

E o nosso amor, como as primeiras luzes da madrugada, encheu os campos de cores, 
como se o amor, eu sabia, fosse a linha divisória entre o não-ser e a coisa plena de vida! 

Depois do dia consumado, nos deixamos ficar no solo, entrelaçados, e sentindo cá no 
peito o coração que no outro batia. 

Era dia! Era dia! E da noite não havia nem o mais leve suspiro! 

Então minha amada, minha igual e igualada, cobriu minha face feliz com seus doces 
cabelos de primavera e afagou-me com carinho cantando baixinho uma inexprimível 
canção. 

E as notas suaves daquela canção tão sutil foram me levando muito além das últimas 
visões do infinito. 

E o som me envolveu num casulo dourado, e o som, fiando e tecendo, levou-me fundo para 
um mundo de eterno silêncio.  

E as faces da minha amada foram se desvanecendo, sendo levadas pela bruma 
ondulante que me sufocava. 

Eu implorava, eu gemia, eu chorava e de longe eu via a rolar pela sua face uma tímida 
lágrima solitária. 

Foi num pavoroso abril, desses que deixam a gente com a boca seca e uma saudade 
imensa de algo que nem mesmo teve. 

As lágrimas inundavam meu rosto e meu coração coxeava como um louco bêbado. 
Levei as mãos à face quente e tentei limpar do rosto aquela opaca nebulosidade que me 
confundia. Aos poucos meus olhos foram clareando e pude ver o mundo seco ao meu 
redor. Nas curvas daquela estrada poeirenta eu via a vegetação seca sufocada. E sobre 
mim, os galhos desnudados de uma imensa e grave carcaça do que fora uma frondosa árvore. 

Mil dias dormiram em mil leitos, e a cada golpe de um dia, o mundo ia perdendo um 
pouco do seu viço. 

A realidade me estapeou como uma velha prostituta embriagada, cheia de chagas malcheirosas e  tumores infestados em cujas pústulas se baqueteavam vermes pestilentos

Era abril, um abril seco e febril, desses que deixam um gosto amargo na boca e uma 
vontade insistente de não estar ali, de estar tão longe quanto podem estar os que 
descansam sob velhas lápides cheias de musgo. 

Mas em tudo, apesar do mundo frio e das aves carniceiras voando sobre minha cabeça, 
eu sentia ainda, como uma lembrança insistente, os cabelos suaves e o aroma primaveril 
daquela minha doce confidente. 

Foi em abril... 

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