Era minha filha. Olhei com os únicos olhos que tinha. Me perdoe, filha, por não conseguir dizer tudo o que podia. A mão pousada consoladora sobre meu ombro tamborilava num ritmo irregular. Esse é o ritmo da vida. Não há nada que você possa fazer. Não tenho medo ou estou especialmente infeliz com meu destino. Essa é a tristeza da vida inteira. Ontem eu acreditei que havia um futuro, não este. Hoje não consigo ver um passado em que me refugiar. Não me preocupa morrer. Eu lamento apenas que a morte não seja tão viva. Se ela fosse uma perspectiva mais clara, muitas vidas seriam diferentes. Não chore. Eu não sou estóico, nem frustrado por ver o fim da estrada. Isso, na verdade, me deixa feliz. Quantos não são surpreendidos pelo fim depois de uma curva, quando ainda sonhavam com um longo caminho? Verdade. Muitos não podem sonhar. Ela tinha olhos melhores que os meus. Seu caminho é longo. Sim, os que se aproximam do fim despertam a profecia adormecida. Lembrei de um chefe que tive. Ele brilhava com a glória do mundo, arrogante, olhava para mim como se eu fosse o que eu realmente era. Lembrei de outros chefes, todos iguais, superiores, infinitos. Deveria ser assim, filha, a vida como oportunidade para o bem. Mas o potencial para o mal é poderoso. Lembrei de dois amigos. O primeiro criticou minha falta de ambição. Dizia que eu tinha feito as escolhas erradas. Acho que tinha razão. Mas morreu cedo. Muito cedo. O segundo era um doce. Não me criticava, pelo contrário. Mas sempre esteve melhor que eu. Morreram com diferença de poucos meses. Os chefes foram além, e substituídos por outros chefes, eram ainda os mesmos chefes. Andei tanto para descobrir o que já sabia. O que os sábios diziam. A vida é breve, travessia. E se há alguém sincero nessa vida, esse alguém é a morte. Ela não diz nada, mas deixa claro que vem. Viver é se preparar para a morte. Para isso serve a sabedoria. Morre-se uma vez, a vida é para todos os dias, logo a morte é o evento mais singular de toda a vida. Lembra, filha, ela vem, vive para mil anos, prepare-se para amanhã. E com seu belo sorriso eu sorri. Fechei os olhos e vi tudo o que o nada era.
SOBRE SENTIDOS E DIREÇÕES
Opinião, poemas, contos, crônicas....
sábado, 26 de julho de 2025
sábado, 3 de maio de 2025
O Gênio
Quando eu tinha sete anos, tive o primeiro vislumbre do que é estar errado. Eu achava que era o aluno mais inteligente da sala. Coisas da infância, erro de proporção. O certo seria achar que era só o aluno mais inteligente da escola, que ainda era um erro, mas justificável pela minha ignorância de que a estupidez dos meus colegas não era acidente, mas uma regra cósmica invariável e repetível do berçário ao fim do ensino médio. O que ainda seria um erro, de proporção, mas ainda justificável como o primeiro.
Isso se deu no momento em que meus colegas sofriam para fazer adições com feijão e eu desenvolvia a equação da relação celenosial da assimetria das voltas do rabinho de porco congelado para uso na feijoada. Qualquer retardado de QI 170 sabe que essa é a mesma relação do gatilho reductibiliano da força H, que permite a fusão nuclear a frio usando um motor de geladeira Consul Elegant e duas bobinas de Fiat 147, ano 1979, cor creme. O segredo é aplicar a relação do rabinho de porco -congelado- às molas de indução das bobinas para gerar um princípio de reação porco-indutivo tipo onda.
Infelizmente a professora não gostou que eu levasse um rabinho de porco para a escola. Todo gênio é incompreendido. Na diretoria me disseram que tinha que respeitar as aulas da tia Eliza, que eu repliquei que não era minha tia, que na verdade se chamava Helena, que talvez uma prima de décima geração... Logo descobri meu erro do começo, pois era claro que minha inteligência superava não só a dos outros alunos, como também de professores, diretores, inspetores de alunos, cantineiras e secretárias.
Depois disso, voltei muitas vezes à diretoria e às diretorias. Felizmente percebi que não valia a pena discutir, isso foi logo após invadir o sistema de uma funerária e mudar o endereço de entrega para o endereço da escola, na sala de anatomia. Por alguma razão, não foi permitida a entrada do caixão. Suspeito que seja porque retirei do pedido as velas e a imagem da Bíblia falando de ressurreição e vida. Por óbvio que sou ateu, mas achei melhor não postular a possibilidade de que meu objeto de estudo saísse andando pela sala. Fui descoberto quando perguntaram quem estava se passando por Frei Guilherme de OCÃO, o responsável pelo pedido. Tive que corrigir, é Guilherme de Ockham!!!!
Apesar de sempre me formar com as melhores notas, fui expulso 27 vezes de escolas diversas, e 3 vezes de universidades.
Quando meu pai viu que o sistema não ia me aceitar, mandou que eu fosse trabalhar. Ele me arrumou um estágio numa empresa especializada em exportação de um amigo seu. Minha função era anotar números de localização de contêineres numa ficha padrão. Logo deduzi a ordem em que os códigos eram criados e preenchi as fichas antecipadamente, para que pudesse usar o tempo livre para unificar a física, organizar a economia mundial e produzir um épico em dodecassilabos iambicos sobre os grandes heróis da ciência.
A coisa deu errado porque eu não sabia que existia uma numeração especial para países asiáticos, o que levou à entrega de um contêiner com livros dos discursos de Donald Trump no Irã e fuzis de assalto num convento italiano.
Depois disso, percebi que precisava apenas de tempo livre para minha revolução. A humanidade haveria de reconhecer meu gênio, tão logo meus sucessos fossem conhecidos. Inicialmente tentei dar aulas para crianças, mas elas e seus pais eram muito estúpidos.
Finalmente, um dia, passando por uma praça, observei algumas pessoas que viviam nas ruas. Eles podiam dormir quanto tempo pudessem, recebiam esmolas que permitiam a ingestão mínima das calorias recomendadas e não tinham que dar conta do seu pensamento a ninguém.
Converti meus pertences em dinheiro e me transferi para a capital, a fim de organizar meu plano e ficar longe da minha família.
Tão logo me estabeleci numa praça, comecei a aplicar meu gênio na arte de manipular as emoções humanas para conseguir melhores esmolas. Quanto menos tempo eu gastasse nisso, mais tempo teria para meus projetos grandiosos. O que eu não contava é que os outros mendigos não gostavam de concorrência e eram, como todos os outros seres humanos, estúpidos.
Eles decidiram dar cabo de mim. E teriam conseguido, não fossem dois policiais. Mas é óbvio que isso não me agradou, pois vi na agressão a possibilidade de ser hospitalizado e ter bastante tempo livre para os meus planos.
O fato é que esses dois policiais estúpidos me identificaram através de uma foto que minha família publicara num site para pessoas desaparecidas.
Uma vez em casa, meus pais tentaram me internar num hospital psiquiátrico. Mas é claro que os testes mostraram apenas que eu era uma pessoa de gênio superior. Um diagnóstico feito com alguma imprecisão, notei, devido à imperícia do psiquiatra em aplicar as doutrinas psicológicas correntes, o que tive prazer em atualizá-lo.
Organizaram uma junta para avaliar o meu caso. Dei uma aula, como sempre, passei por cima deles como um trator. Por fim, desanimados, disseram aos meus pais que eu tinha um problema, era um megalomaníaco.
Por uns momentos não soube o que responder. "Megalomaníaco"? Eu? Um gênio, sem dúvida. A partícula grega "mega" bem me servia, e pouco me importava que seres inferiores me considerassem maníaco. Mas aquele artigo indefinido me era indigno, como assim "um" megalomaníaco???
Lancei-lhes na cara que eu bem aceitava o título, mas que não iria tolerar tal afronta!
Todos olharam para mim com seus olhares bovinos.
Arrematei, "eu não sou um megalomaníaco, sou o maior megalomaníaco do mundo, e se Deus não existe, como não existe, quiçá do universo, do multiverso, de todas as realidades possíveis!
Me internaram. Cá estou. Como deveria. Meu intelecto superior me levou ao melhor dos fins possíveis, apenas dizendo uma verdade que já era, por si, autoevidente.
Agora tenho todo o tempo do mundo, posso apreciar minha genialidade com calma e prazer. Aprendi a lidar com a estupidez de médicos e enfermeiras, basta ignorar-lhes a existência e eles somem. Uma questão que sempre relembro a Einstein, que realmente está aquém do gênio que lhe publicaram. Ele é pouco mais que um Napoleão - sujeito desagradável- talvez equivalente a Newton, mas ambos me aborrecem muito, pois tenho que sempre traduzir minhas conclusões para que eles possam entender, lançando mão de metáforas e simbolismos infantis.
Enfim, me serão instrumentos. Primeiro submeto o Hospital, logo mais a cidade. Não acredito que o planeta resista mais que um mês. Depois veremos os outros.
Deve ser quase hora do almoço. Hoje é dia de frango? Quantas borboletas equivalem ao Zepelim? Hoje deve ter mingau de chocolate de sobremesa. Mingau...
domingo, 6 de abril de 2025
Quadrilogia da Ironia.
Soneto do Estúpido Infinito
Sou burro, e não me falta a convicção,
Pois minha mente é chão de terra rasa;
Na escola da ignorância, fiz a casa,
E o tonto é rei da minha multidão.
Não tenho fé, nem credo, nem razão,
Tampouco a luz que aos crentes abrasa;
Só carrego esta dúvida sem asa,
E invejo até quem crê em assombração.
Não opino, pois temo estar errado,
E sofro ao ver que o mundo tem certeza —
Enquanto eu, com o olhar desengonçado,
Afundo em minha vil natureza.
Sou tão pequeno, tão desatinado,
Que Deus me vê e ri da minha empresa.
Soneto do Desengonçado em Dor Maior
Nas lides do amor, sou só tropeço e gagueira,
Mal vejo um riso e já me enrosco todo;
Meu charme é sujeira no meio do lodo,
E o flerte vira sempre uma grande ratoeira.
Com gente, eu travo — viro um monólogo,
A língua pesa mais que o próprio ouro;
Sou feio, bobo, sem nenhum decoro,
Pareço um "o" torto em fim de prólogo.
Já fui chamado de “pessoa esquisita”,
E ando como quem perdeu o eixo;
O espelho, ao me ver, ressuscita
Pra rir de mim num cômico despejo.
Não sou galã, nem alma bendita —
Sou só um Zé sem traquejo e sem desejo.
Soneto do Azarado Irrecuperável
Sou pé-frio de nascença e vocação,
Onde ponho a mão, a sorte escapa;
A vida me atira sempre a lapa,
E eu tropeço até sentado no chão
No bingo, erro o número de mão,
No amor, sou xis fora do mapa;
Na chuva, sempre esqueço a capa,
E o sol só vem quando estou no porão.
Se aposto, é certo: a banca vai vencer.
Se tento, algo explode em meu caminho.
Sou mestre em nunca nada acontecer,
E ando com o azar como vizinho.
Meu santo é um fantasma sem querer,
Que ri de mim, bebendo um copo de vinho.
Poeminha ao Leitor Iluminado
Mas você, leitor, é tudo o que sou falto:
Tem graça, tem beleza e opinião.
Enquanto eu sou só queda e sobressalto,
Você desfila firme, em perfeição.
Não gagueja, não tropeça, não engata,
E a vida inteira acerta a direção.
De perto, brilha mais do que a prata,
Enquanto eu... sigo aqui na contramão.
sábado, 29 de março de 2025
O outro Isaías
As coisas andavam muito difíceis - mais que de costume. Eu estava entrando na primeira adolescência. Um menino me falou da "Horta dos japoneses", era só ir lá e dizer que queria trabalhar.
Não era o que imediatamente imaginamos ser uma horta. Era uma área aberta, bem grande, com plantações de diversos tipos de hortaliças. Eles também plantavam morango, que exigia muito veneno.
Era bonito ver a tobata puxando a carretinha com o mecanismo de espirrar o veneno. Aliás, um veneno diferente, parecia caldo de cana. Felizmente não experimentei para ver se o gosto também era.
O japonês me mandou carpir entre os pés de alface com uma enxadinha miúda. "Não vai me machucar as alfaces" - alertou.
Fui carpindo pelas fileiras de alface. Alfaçonas gordas, apetitosas. Quando deu meio dia, os outros trabalhadores- meninos de várias idades, alguns bem grandes, quase homens- sumiram pela beirada do campo. De longe vi alguns encostados no tronco de uma árvore, abrindo sacolas, marmitas, sacando sanduíches. Mas eu não tinha comida. Uma japonesa passou e perguntou se eu não ia almoçar. "Já estou indo, não tenho fome". Mas meu estômago roncava. Ela riu aquele riso deles e também sumiu.
Sozinho no campo me pus a arrancar as folhas de baixo das alfaces. Tinham um gosto estranho, talvez amargo, não sei, talvez fosse só o gosto da alface in natura. Que homem foi que primeiro comeu aquilo e depois, metendo algum tempero, convenceu os outros que era bom?
Acho que um faminto, como eu.
Naquele tempo eu era muito ignorante, até mais do que sou hoje. Quando você é assim, as pessoas acham que você é burro, um retardado. Eu não sabia nada, eu não conhecia as palavras, especialmente aquele vocabulário especializado dos japoneses. Eles tinham que falar três vezes para eu entender o que queriam que eu fizesse. "Você é muito burro"- diziam os outros garotos, mas não os japoneses, eles eram educados.
Entre os empregados, havia um outro Isaías, mas esse era grande, forte, quase um homem. E não era burro.
Um dia a patroa me mandou pegar algo. Eu não entendi o que ela queria, mas como os outros empregados estavam perto, corri para o objeto mais próximo, uma enxada.
Ela gritou "isso não" e disse o nome do objeto. Corri então para outro objeto, um tipo de garfo forcado e de novo ela me alertou. Os meninos riam. Por fim ela, já rindo também, me disse novamente o nome do tal objeto. Olhei ao redor, devia ser algo bem óbvio. Então vi uma peça grande da tobata, acho que era uma espécie de ferramenta para arar o solo.
Me abaixei para pegar aquilo. Todos gargalhavam agora, menos o Deutero-Isaías, que pela lógica era o Proto-Isaías, mas que aqui nessa história (que é verdadeira) era o segundo. Mas eu nem movi a peça. A patroa, então, veio calmamente na minha direção, abaixou-se e pegou um esguicho que estava bem do meu lado. Ela ainda olhou para mim com aqueles olhinhos fechados e sorriu.
Eu a segui, envergonhado. Todos riam, mas o Deutero-Isaías me olhava com ódio. Então ela acoplou aquilo numa mangueira e mandou um menino jogar água em alguma planta. Em seguida, ela virou para mim, ainda sorria, então virou para o Deutero-Isaías e disse "Olha aí, Isaías". Era o jeito dela caçoar dele por causa do nome.
Foi a dica. Ele voou na minha direção e eu corri, só que ele era mais rápido e pregou a bota com toda a força no meu traseiro, me fazendo voar um meio metro. Eu caí num canteiro e pensei que ia apanhar até morrer, que iam deixar meu corpo ali como adubo para pagar as alfaces que eu tinha comido.
Mas não veio mais nada, a patroa interviu e não deixou ele me bater mais.
Eu passei a tarde mancando um pouco, o chute pegou na parte de trás da minha coxa direita. Ficou um baita roxo no lugar, mas nada além do hematoma.
Isso me fez entender que eu era muito burro e isso podia me custar caro. Dali em diante passei a focar mais no trabalho e menos nos patrões. Na verdade, tentava trabalhar longe deles - e do Isaías, o Grande- para que não me pedissem nada. Isso me isolou bastante.
No fim do mês o patrão veio nos pagar. A camionete azul desceu a estrada e os empregados se agruparam na porta do carro. Ele perguntava o nome, se a pessoa trabalhou bem, e passava as notas e moedas. Todos eram os melhores trabalhadores, pelo menos no discurso.
Eu fui um dos últimos. Perguntou meu nome, eu disse. "Opa, tem dois". Se o senhor soubesse, patrão, pensei. Me perguntou se trabalhei bem e eu respondi que não sabia. "Como não sabe?" - olhei para o chão. Mesmo assim ele me pagou o valor normal, disse que o nome ajudou, porque o Deutero-Isaías trabalhava bem. Acho que pagaria de qualquer jeito. Era tão pouco. Dei o dinheiro em casa.
Eram férias escolares. Não voltei mais. Acho que ninguém notou. Bom, exceto o Isaías.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
Por que choras, Raquel?
-Choro pelos meus filhos.
No Natal, há muito tempo.
Por mais que eu busque a alegria e envolva meus amigos em conversas frívolas
Meu coração nega minhas palavras e minha face festiva
Os olhos de hoje veem as coisas que viram os olhos de ontem
Chove, eu corro com outras crianças na lama quente do verão
De mãos dadas com alguma menina de sete ou oito anos
Nossas mãos pequeninas unidas na infância das nossas feridas
Os militares vão sair do poder?
Dizem que sim, agora a democracia vai trazer prosperidade
Onde está a menina, a lama e o Natal?
Estou sentado na sala, um brinquedo quebrado nas mãos
Um boneco, falta a cabeça e um dos braços, não tem coração
O brilho azulado da televisão anuncia o novo tempo
“Éramos crianças, eu só gosto de você como amigo”
Disse, e agora penso, ainda éramos crianças no intervalo
Da aula daquele dia no Ginásio – Ninguém diz mais assim
A gente caminha pelas ruas, tudo enfeitado para o Natal
Um calor dos infernos em dezembro, a decoração do Polo Norte
Mas é que o Papai Noel mora lá
Quase dois mil, que morreu
Na entrada do mercado nos encontramos, chovia sem lama, era frio
Ela sorriu para mim, eu sorri e meu sorriso morreu
De mãos dadas com um rapaz – Oi, se foi
Corri para pegar o ônibus, logo será Natal
Democracia que traz no vento tantas expectativas
Vou trabalhar, estudar, comprar uma moto e visitar o Atacama.
Ah, deserto, como está deserto meu coração!
Oi, sentou ao meu lado, não havia rapaz na ponta das mãos
Tudo mudou, crescemos, o tempo muda o tempo e as sombras do coração
Eu me perdi nos seus beijos, eu mergulhei nos seus olhos, eu adivinhei o seu corpo
Essa noite o Papai Noel não veio, mas teremos churrasco, não está frio
Houve um acidente, uma moça vinha de bicicleta quando um caminhão…
Uma bicicleta azul?
Foi numa tarde chuvosa de dezembro, Natal
Todos tinham fé na democracia, menos eu
É Natal, de outros tantos natais e funerais, os anos se acumulam.
Eu sempre fico triste no Natal, me dá um não sei o quê de melancolia
E deposito as flores vivas diante da lápide fria.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
O Palhaço e a Piada
Eu caminhava por uma rua movimentada no centro de uma grande cidade, quando notei um grupo de pessoas organizadas em círculo. A curiosidade venceu, e me aproximei para ver o que estava acontecendo. No centro daquele círculo estava um palhaço, com roupas coloridas e um olhar que oscilava entre o excêntrico e o insano. Como tinha alguns minutos livres, decidi ficar para ver que tipo de palhaçadas ele faria.
O palhaço começou com
duas piruetas ágeis que arrancaram risadas da multidão. Depois, apertou a flor
falsa presa ao peito e borrifou água no rosto de um velho, que riu tanto que
parecia rejuvenescido. Logo em seguida, ele puxou uma caixa de madeira para o
centro do círculo.
Uma criança perguntou à
mãe:
— Ele vai fazer mágica?
— Acho que malabarismo —
respondeu a mãe, enquanto o palhaço subia na caixa.
De pé ali, ele limpou a
garganta e, com uma voz inesperadamente limpa e forte de tenor, começou a
contar a seguinte “piada”:
— Dizem que quando o
budismo chegou à China, ele encontrou o taoísmo, uma filosofia que celebrava a
simplicidade, a natureza e o fluxo da vida, o Tao. Essa interação
moldou o budismo Zen, que se afastou da visão tradicional de que a realidade
era uma ilusão pura. Sob a influência do taoísmo, o Zen passou a enfatizar que
a realidade que percebemos não é exatamente "irreal", mas moldada por
conceitos. Nossa mente não vê o mundo diretamente; ela o interpreta por meio de
lentes conceituais, como um prisma que distorce e organiza o que percebemos.
Essa ideia encontra
raízes em um marco decisivo da história humana: a revolução cognitiva na
pré-história. Foi nesse período que os primeiros humanos desenvolveram a
capacidade de contar histórias e acreditar nelas. Essa habilidade nos permitiu
criar mitos, religiões e ficções compartilhadas que deram sentido à nossa
existência e possibilitaram a cooperação em larga escala. Ao contrário de
outros animais, que vivem no mundo físico imediato, nós começamos a habitar
mundos paralelos, mundos de ideias.
Richard Dawkins descreveu
essas ideias como memes, que se propagam de mente em mente,
moldando culturas inteiras. E, curiosamente, isso ecoa a visão do "mundo
das ideias" de Platão, reinterpretada pelos gnósticos: eles acreditavam
que nossa percepção do mundo era uma sombra distorcida de uma realidade
superior.
Essa capacidade humana de
construir mundos conceituais é sustentada por processos cerebrais fascinantes.
Estudos de neurociência mostram que nossa mente consciente é apenas a
"ponta do iceberg". Alguns experimentos revelaram que, quando fazemos
uma escolha, nosso cérebro já tomou essa decisão milissegundos antes, de
maneira inconsciente. Nossa consciência é como uma narradora que atribui lógica
a decisões que já foram tomadas no plano neural.
Um mecanismo parecido
também explica por que mágica funciona. Ilusionistas exploram o fato de que
nosso cérebro completa a realidade, preenchendo lacunas e criando uma versão
consistente do mundo. Livros como Truques da Mente detalham
como o cérebro, ao buscar padrões e fazer inferências rápidas, pode ser
facilmente enganado. Em um nível mais amplo, o que chamamos de
"realidade" nada mais é do que uma projeção mental, ajustada para nos
ajudar a sobreviver e interagir com o ambiente.
E isso não ocorre apenas
em truques de mágica. Em uma conversa casual entre amigos, por exemplo, nossa
mente projeta regras implícitas: como interpretar tons de voz, gestos ou a
posição social. Esses elementos invisíveis constroem um "mundo" compartilhado
que nos guia durante o diálogo. É como se vivêssemos em múltiplos palcos
mentais, onde as normas estão embutidas em nossas mentes, criando realidades
que acreditamos ser concretas.
O mesmo acontece em nossa
vida social mais ampla. Dinheiro é um excelente exemplo. Ele começou como um
simples símbolo de troca, mas, ao longo do tempo, transformou-se em algo com
"valor próprio". Hoje, a riqueza pode existir sem qualquer
conexão com bens tangíveis ou produtividade, como no caso das criptomoedas.
Isso demonstra como nossas construções conceituais podem extrapolar suas
funções originais e ganhar vida própria.
Essa capacidade de criar
mundos é poderosa, mas também perigosa. Quando pessoas acreditam em ideologias,
religiões ou sistemas econômicos, elas podem agir de forma extrema. Isso
ilustra o que Marx chamou de "superestrutura", mas ele não foi longe
o suficiente. A verdadeira revolução não é apenas política ou econômica, é
cognitiva. Devemos reconhecer que a base de tudo o que chamamos de
"realidade" são os conceitos que construímos e compartilhamos.
No fundo, já vivemos em
uma espécie de "Matrix". Não aquela das máquinas e cabos, mas uma
Matrix conceitual, composta por narrativas, ideias e crenças que projetamos no
mundo. Schopenhauer, ao estudar o budismo, percebeu algo semelhante: "O
mundo é minha vontade e representação." Mas o salto de consciência vem ao
perceber que, embora estejamos presos nessa Matrix, somos também seus
criadores.
Saber disso pode ser
libertador. Se entendermos que somos prisioneiros de ideias, podemos começar a
reorientar os mundos que construímos.
O primeiro passo? Olhar
para os "óculos cognitivos" que usamos para interpretar o mundo.
Enxergar além deles. Afinal, somos criadores de mundos. Resta decidir que tipo
de mundo queremos construir.
Nesse momento o palhaço
parou de falar, mas as pessoas esperavam que houvesse algo mais. Por um
momento, ficaram em silêncio, atordoadas, tentando entender o que haviam
acabado de ouvir. Um homem gritou do fundo:
— Isso é pura asneira!
A multidão, como que
despertada de um transe, começou a pegar pedras e objetos para atirar no
palhaço. Mas ele já tinha sumido.
Nunca mais foi visto. Uns
dizem que foi dar aulas numa universidade. Outros juram que se candidatou a um
cargo político. Há quem diga que ele se internou em um hospício, enquanto
alguns acreditam que ele morreu. Mas, para a maioria, o palhaço nunca existiu.
quinta-feira, 22 de agosto de 2024
Prisioneiros
segunda-feira, 19 de agosto de 2024
Pensar demais nos deixa tristes
domingo, 9 de junho de 2024
A Pedrinha Branca
Empilhando pedrinhas no pátio da escola
Durante os anos que separavam
Sua alvorada do meu ocaso
Quando você sentou ao meu lado
E colocou uma pedrinha branca na minha pilha de pedrinhas escuras
Eu disse "vai cair" e você "não vai"
E não caiu, você segurou minha mão
E me disse seu nome, mas eu não lembro do nome, nem do seu rosto
Eu só "vejo" sua voz
Impressa naquela mesma pedrinha branca sobre a pilha das minhas pedrinhas escuras
No último dia, antes das férias, sua mão apertou a minha mais forte que de costume
Os dias foram de espera, de pedras negras
Que eu empilhava no pátio da escola durante o recreio
Eu olhei o pátio ansioso e coloquei outra pedrinha escura no topo
Mas não houve pedrinha branca, nunca mais
E eu tentei com outra pedra, mas a pilha tremeu e caiu
E as pedras escuras ficaram espalhadas aos meus pés...para sempre.
A Estrela
E deitei buscando as estrelas
Havia uma, mais forte, ou mais forte era meu olhar, meu desejo
De encontrar certa luz que iluminasse
Aquela incerteza escura do espaço
Profundo que perturbava a atmosfera da minha alma
Que noite era aquela que me inundava?
E fazia de mim um náufrago em busca da luz que de milhões de milhões de quilômetros eu vislumbrava?
"Talvez já esteja morta", eu pensava
"Vai que nem mais existe".
Um dia alguém me disse que nada realmente morre se é lembrado...
Mas que lembrança eu tinha?
Só a esperança de uma lembrança
E o desejo perdido de um sonho
De algo que soava baixinho
No meu coração
Como uma pedrinha branca
Ou as flores da primavera
Depois do inverno
Mas era noite, e eu devo ter cochilado
Pois perdi a estrela, todas as estrelas
Naquele céu noturno nublado...
A Canção
Se todas as notas se foram
Como as folhas no fim do outono?
É noite, estou cansado, meus dedos
Esqueceram como dedilhar e minha voz
Minha voz anda perdida na minha garganta
Fazendo dupla com as batidas do meu coração
Eu te disse, mas éramos jovens, e todo ritmo era uma canção
Uma só palavra, tão ingênua, tão bela,
Tão doce que ainda a sinto nos meus lábios
Eu ainda a sinto nos meus lábios
O fel daquela mesma manhã terrível
Mas os terrores não pertencem à noite?
Não quando a noite, como o inverno, cobre de sombras toda uma estação
Você nem disse que podíamos sonhar
E sonhamos, mas o sonho se perdeu num monte de memórias sujas
Quando nossa melodia esqueceu seu ritmo
E se tornou o uivo de um vento ferido
Nos galhos despidos
Da nossa última canção...
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Os olhos que me veem além do espelho
Já não são os olhos que via em mim mesmo
Quando eu pensava que tinha vinte anos
E isso foi ontem, imagino, ou anteontem
Já não lembro, o tempo é como o espelho
Diante de outro espelho, infinito
Mas plano e frio como a imagem
Dele mesmo filtrada pela ilusão
Dos meus olhos.
Eu sou aquele jovem vislumbrando um futuro
Que não poderia ter imaginado,
Mas que conceito de futuro eu tinha?
O de quem pensa apenas em alguns minutos
No máximo amanhã, se algo interessa
O jovem vive no presente, o adulto no futuro
E o velho nas trilhas carcomidas do passado
Mas do espelho filtro uma indagação:
Quem sou, o que olha para o espelho,
Quem olha do espelho ou o fantasma entre os dois?
sexta-feira, 1 de março de 2024
O Homem da Montanha
terça-feira, 2 de janeiro de 2024
Tuta
Portinari. Meninos Brincando.
Era 1986, eu tinha 11 anos e o meu mundo era muito pequeno e simples. Naquele tempo eu morava num município da região metropolitana de Curitiba. Simples, mas não tão simples quanto aquele outro lugar em que "muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo". Mas era tão mágico quanto Macondo.
Anos 1980, não havia internet ou smartphone. Os carros eram carburados e os telefones públicos funcionavam com uma ficha de metal. Em casa, poucos tinham o aparelho, pois uma linha custava tanto quanto um carro usado e se você alugasse uma, o valor seria o do aluguel de uma pequena casa, medido, conforme o costume de um tempo em que a inflação batia nos 147%, em salários mínimos para evitar o transtorno dos juros compostos. O governo que calcule!
Apesar das dificuldades, éramos muito pobres, foram alguns dos melhores tempos da minha vida! Eu estava entrando na adolescência, mas ainda trazia muito do moleque. A região parecia interior, tinha muito mato, muito bicho para caçar, frutas silvestres, pinhão e chácaras com pés de pera e parreirais desprotegidos. Ainda havia as cavas e rios, onde a gente nadava, pescava uns carazinhos, lambaris e traíras. Fome eu não passava. Nem as sanguessugas que grudavam na pele quando a gente cansava dos anzóis e resolvia "passar a rede", na verdade um pedaço de tela de náilon, uma saca de cebolas ou qualquer tecido que cumprisse a função.
No campo da diversão, a gente lia os gibizinhos uns dos outros. Um dos pilantrinhas que andava vagabundeando com a gente era o Pablo. Ele morava com seu avô, que era dono de uma banca de jornais. Essa era nossa principal fonte de quadrinhos, que o Pablo usava como pagamento dos mais estranhos trabalhos.
"Eu te empresto o Almanaque Disney, mas quero que você me traga uma pera". Todo mundo corria para pegar uma pera. Você tem ideia do que significava um Almanaque Disney inteirinho naquele tempo em que só havia tv aberta, com sinal muito ruim e nossos aparelhos eram preto e branco?
"Toma aqui sua pera". Ele examinava a fruta com uma das sobrancelhas levantadas e tascava: "Não era essa que eu queria, era aquela". E apontava a fruta no lugar mais alto e difícil de pegar. Com o tempo aquilo virou uma espécie de desafio divertido e a gente já esperava pela nova revistinha, não tanto por ela, mas pelo desafio. Menos o Nenê, meu melhor amigo e companheiro de rapinagens e pescaria. Ele era fascinado por um personagem de desenho animado que fazia muito sucesso naqueles tempos, o He-man. Mas quem não era? E o desenho nem era tão novo, mas novidade, naqueles tempos ( e lugar), durava uns bons cinco anos!
Com o tempo, o Nenê ganhou o He-man como um apelido sobressalente. Na maior parte do tempo, era o Nenê, mas se a gente queria algo dele ou apenas zoar, dizia: " Ô, rímeim, você que é forte, pega essa fruta ali pra mim". "Rímeim, leva essa cartinha praquela menina que eu gosto". Quando o Nenê ouvia isso, ele levantava os braços magricelas e forçava os músculos. Ele achava que era parecido com o personagem e a gente concordava, quando era conveniente. Mas quem abusava mesmo dele era o Pablo, pois em janeiro daquele ano, 1986, a editora Abril lançou uma revista em quadrinhos do He-man com um estilo igual ao do desenho animado. A gente sabia da revista porque a editora Abril já a vinha prometendo nas páginas publicitárias dos seus gibis. O Nenê estava louco por aquela revista. E quando ela chegou, o Pablo logo inventou "os doze trabalhos do rímeim". Um dia conto melhor essas traquinagens, mas adianto que aquela revista custou caro ao Nenê. No fim, vencido pela persistência do amigo, o Pablo deu a revista para o Nenê. A gente fazia isso pelos empréstimos, mas ele deve ter se sentido mal por abusar tanto do amigo. Um dia conto melhor sobre "os doze trabalhos do rímeim", mas meu interesse aqui é dar uma cor aos tempos e introduzir essas pessoas fantásticas da minha infância.
Para falar a verdade, eu não lembro o nome real do Nenê. Aliás, nem sei se soube algum dia. Todos o chamavam pelo apelido, inclusive sua família. Pois foram eles que o apelidaram, porque ele era o mais jovem dos seus irmãos. O Nenê, apesar do modo como se via, era indígena. Na época não pensava nisso, mas hoje isso é claro. No pai via-se algum indício de mestiçagem. Era um verdadeiro "caboclo". Um homem gentil, de fala suave. Lembro dele sentado numa cadeira em frente à sua casa, sempre fumando um cigarro "palheiro" e tomando chimarrão. Ele tinha alguma doença, eu não lembro qual era. A mãe era uma perfeita indígena de cabelos negros bem lisos, olhos puxados e pele bastante bronzeada. Eram indígenas , mas indígenas que perderam sua cultura ou assim me parecia. Eles tinham, se não me engano, três filhos. O Nenê, uma menina mais velha que ele e o nosso verdadeiro herói daqueles dias, o Tuta.
O Tuta tinha 16 anos e parecia muito com a mãe. Para nós era um homem formado. Ele sim tinha era forte, vivia fazendo flexões e outros exercícios no quintal da sua casa. Treinava uma coisa que ele aprendia numas revistas que prometiam ensinar artes marciais e que podia ser caratê, chute boxe ou kung fu. E a gente treinava com ele seus chutes, socos e rasteiras. Mas o Tuta era cuidadoso e gentil como o pai. Só uma vez eu cheguei perto de me machucar, ele me deu uma rasteira e eu bati tão forte no chão que perdi o ar por alguns segundos. Ele tava tapinhas nas minhas costas, preocupado, e soprava minha nuca. Mas logo que me recuperei, começamos a rir.
Um dia eu vi na TV alguém dizendo que antes dos exercícios a gente tinha que se alongar. Mas exatamente o que era "alongar"? Na nossa próxima seção de artes marciais genéricas, eu disse ao Tuta, com ar de entendido, que "um bom lutador tem que se alongar antes". Ele, que era tão inocente quanto a gente, perguntou como seria isso.
Eu nunca vou esquecer aquelas cenas cômicas. O Tuta deitava de costas e segurava num toco de árvore, então eu pegava uma perna, o Nenê a outra, e a gente puxava. Criamos umas tantas variações desses "alongamentos". Bom, o Tuta não se tornou o próximo Van Damme, então acho que havia algo de errado com a minha teoria...
Mas não era só isso. A gente sentava naquele gramadinho e ficava ouvindo as histórias de amor do Tuta, sempre ao som de alguma música romântica internacional. E vou te dizer, como eram boas as músicas e as histórias!
Um dia, numa festa junina, vi o Tuta beijando uma menina de cabelos curtos. Vou te dizer, acho que pelas histórias que ouvi, aquela era a garota mais linda que eu já tinha visto na vida! Mas tanto eu como o Nenê, o Pablo e nossos outros amigos, estávamos mais interessados em aventuras, histórias em quadrinhos e frutas roubadas.
O Tuta trabalhava, então nunca participava das nossas aventuras. Nossos encontros se davam nos fins de tarde e finais de semana. O que mais me encantava no Tuta é que ele nos respeitava e aos meus olhos ele era um adulto, embora fosse só um adolescente um pouco mais velho.
Mas o Tuta era um sonhador, um romântico. Acho que aprendi um pouco disso com ele.
Aquele foi um tempo mágico que não durou nem dois anos, mas para mim foi uma vida inteira. Passado um tempo, nos mudamos dali e eu nunca mais vi nenhum dos meus amigos, exceto o Tuta. Depois de adulto, eu até fui ao local, mas estava tudo tão diferente, cheio de casas, de ruas e de gente desconhecida.
Anos mais tarde eu encontrei o Tuta na rua. Ele estava varrendo o chão, mas eu o reconheci de imediato. Cheguei mais perto e o cumprimentei, ansioso por rememorar alguns daqueles episódios da infância, perguntar sobre o Nenê e ele mesmo. Agora a idade mais ou menos nos equilibrara.
Ele levantou a cabeça, respondeu meu cumprimento e me chamou de senhor. Mas o corpo permanecia curvado. O seu rosto era o mesmo, mas com muitas rugas e nos olhos um desconsolo, um cansaço, uma desilusão que me atingiram na alma como a ferroada de abelha no pescoço. Onde estavam aqueles olhos brilhantes e sonhadores? Aquela confiança? O que fizeram com você, Tuta? Como domesticaram sua alma sonhadora? Não era o mesmo rapaz que eu conhecera. Eu não tive coragem de perguntar nada, apenas desejei um bom dia de trabalho, que ele agradeceu, e fui andando para que ele não visse a lágrima que descia pelo meu rosto.
Eu chorava pelo Tuta, pelo Nenê e por mim mesmo. Foi desolador ver nele a mesma imagem que eu via todo dia no espelho.
sábado, 2 de dezembro de 2023
Eu não lembro seu nome
E eu pensei que era parte daquele mundo
A rua da minha casa era ladeada por moitas de hortências
O que me dava sempre a impressão de estar morto
Porque era assim o cemitério onde deixamos meu tio
Naquele dia eu também morri, era meu tio e éramos amigos
Mas na rua da minha casa, numa lápide de que já não lembro o número
Havia uma garota de quem não lembro o nome
Ela morava numa estranha casa com uma aparência de farol
De vez em quando a gente pegava o ônibus juntos
Ela sempre me cumprimentava com um sorriso
Várias vezes ensaiei sentar ao seu lado
Mas não sabia o que dizer, o que ela pensaria disso
Hoje sei, ela sorria, e eu nem mesmo lembro seu nome
Será que ela gostava do meu uniforme do exército e do meu corte de cabelo?
Minha rua parecia a entrada de um cemitério
E lá havia uma lápide que não lembro o número nem que palavras de saudade ali deixaram
Aqueles que sabiam seu nome.
terça-feira, 24 de outubro de 2023
Bela, que me ensinas a certeza das coisas
Bela, que me ensinas a certeza das coisas
Torna ao jardim que primeiro me introduzistes
Para renovarmos as memórias distantes
Dos tempos em que as crianças corriam pela
Estrada, cobertas de lama e aos risos
De toda preocupação ausentes
Bela canção do abismo, que abismos sem fim
Invocastes, chama com tal voz minha alma perdida
E ensina-me ainda as lições sob aquelas sombras
Tão frescas, retira de mim esse imoderado
Ato de perplexidade, ando com homens, com vaidade
Com ausência em presença, mas sou deles eu mesmo
Um vaso que espera pelo perfume delicado
Que só tu me podes derramar, ausência te chamo
Conforme os sábios, sabedoria é teu nome, a Bela
Mas como eles, apesar de já ter aos teus pés
Descansado, não construí contigo tal intimidade
Ensina-me, para que no meu silêncio eu ouça tua voz
E nos hiatos da tua canção, eu aprenda a modular
O que sou com aquilo que és e o que faço
Com aquilo que prescreves, se tal o digo, é momento
Refirmo, tu és das musas a mais bela e das vozes
Que ecoam, a mais sonora, posto que no silêncio
e do silêncio, emerges.
Soneto da estranheza
Tentando aos outros me conformar
Quem com a vontade alheia lida
Jamais o eu próprio vai encontrar
E falhar na luta para ser aceito
Desse emprego maldito me demito
Para aceitar aquilo de que sou feito
Pertenço à parte esquerda da criação
Aquela que causa horror a muita gente
Que entendo está de todo ausente
Aceito de braço aberto minha estranheza
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
Ah, se fendesses os céus e descesses!
quinta-feira, 3 de agosto de 2023
Venha sentar-se...
Venha sentar-se comigo na relva e ver
Aqueles dois pássaros que voam despreocupados
Contra um céu azul forrado com nuvens
Que parecem algodão
Invejo sua liberdade
De apenas experimentar a vida sem
Considerações sobre o que seria viver
Eles voam alto, não se lhes bate à porta do coração
Se vão continuar, se um vento ou predador vai lhes arrebatar
Logo em seguida
A vida é somente viver
E isso já é tudo o que se pode dizer
Não vive quem gasta o tempo escasso
Na hipótese de achar nela significado
A vida por si já é o prêmio almejado
E tudo o mais que se pode almejar
Se for boa, então não há o que reclamar
Se ruim, ainda assim foi vida, experiência, ser
Que é muito mais que o pó da calçada pode querer
Mas quem aceita apenas viver sem preocupações?
Isso nos faz diferentes dos pássaros
Vivemos a vida como experiência mental
Mais do que física ou mera existência
Pensamos, sofremos, e dilatamos
A vida com uma miríade de conceitos
Numa vida vivemos várias vidas
E somos muitos em um só peito
E se por um pouco nos lançamos
À hipótese de apenas alçar voo
Logo olhamos para baixo
E nos vemos como formigas
Duvidamos, nos faltam as asas
E caímos.
Como encontrar sabedoria nisto?
Ou se vive preocupado, morrendo antes de viver
Ou irresponsável, arriscando tudo em cada momento
O sábio diria: “vive”
Mas vive com prudência, equilibrando
Liberdade e responsabilidade
Não te entregues demais à primeira
Pois serás pasto de ave de rapina
Nem afundes demais na segunda,
Pois não verás a vida que passa saltitando
Em suma, se há um caminho
Esse é o do meio.
Então voa e aproveita o sol, as nuvens e
A paisagem,
Pois se há algum significado em tudo, é este
Que a vida não é uma coisa, mas um passar, um ir e vir
Um processo, uma viagem, um percurso
E encontros
O pássaro não voa sozinho.
domingo, 4 de junho de 2023
Prisão sem Grades
No dia em que nasceu
Teria alguém dito ao furtivo
Menino na sua aurora
A cor cinza do seu ocaso?
O fim que veio com o início
E que o acompanha
Assim são certos signos
Que fazem de uma pessoa
O peso vivo do fim
Que ainda não veio
É assim que se morre
Todo santo dia
Porque esse menino
Como tantos outros
Não pode fugir ao seu
Destino
Mas o destino não existe
É palavra que inventamos
Para justificar as desventuras
Disse o sábio:
"Viver é sofrimento"
Como se morrer fosse alguma coisa
Viver é viver e só isso
Um campo em que plantamos
As sementes que temos
E às vezes, mas só às vezes,
Colhemos
Noutras a tempestade nos leva
Mas as sementes dormem
Seguras sob a terra
Diferente desse menino
Fruto de semente indigna
De onde? Quem sabe?
Sina dos bastardos e das sementes
Sem procedência
Mas há delas que abundam
Foi assim com ele
Mas ele mesmo percorreu
Seu campo com sua sina
Assinalada bem fundo
Na sua consciência:
"Não sou nada"
E era tanto.
Quem poderia lhe dizer isso
Que ele acreditasse?
Muitos disseram realmente
Mas ele estava preso em prisões
Sem grades.
E viveu sempre à luz do seu último dia.
domingo, 14 de maio de 2023
Uma folha no outono
No outono as folhas caem
E dormem na terra preparando o dia de uma nova geração
Os olhos como folhas distantes
Ora em mim, ora no teto
Ora num objeto invisível ou
Numa realidade além daqui
"Eu estou morrendo"
Colhi aquilo em silêncio
Como um fruto cuja cor não me agradava
Lavado com águas que fluíam
Da fonte da minha alma
Quando as folhas amarelam, você sabe que elas logo caem
Elas já não pertencem à árvore
Mas ainda não se entregaram ao solo
"Massageia as minhas costas, sinto dor"
Como pode árvore com casca tão lisa?
É a superfície da folha
Numa noite ela gemeu
E seu talo rompeu-se
Dando à folha um minuto eterno
Ela desce, flutuando ao vendo
Como uma ave, em círculos
Suave, sem nenhum lamento
Da árvore separada da seiva da vida
No ar como um ser que cavalga o vento
E um suspiro, o último
Depois de uma noite agitada
Reguei aquela manhã com lágrimas
Quando a terra recebeu por fim
Aquela folha da qual o vigor da primavera e o calor do verão se afastaram
Fez-se inverno
E o solo a acolheu, não como folha
Mas como algo que era seu
O pó volte à terra, como era
E o Espírito a Deus
E assim você se foi, mamãe,
Para de folha finalmente se tornar
Flor e estrela no céu
A sua dor terminou
O seu fruto prospera.
domingo, 23 de abril de 2023
No limiar eu caminho
Como um viajante sem destino
Porque não procuro
E ainda assim busco
Não algo de que possa me apossar
Mas um estado que já tenho
E que perco se me perder
Eu olho para fora
E vejo maravilhas e beleza
Assim como a noite fria da alma
E disso me liberto para que
Conquistado não seja conquistável
Ouça, não é o vento que sopra
É a mensagem cavalgando uma voz
Cujos cascos ferem sem furor
Cada espaço vazio da pele
Eu olho para dentro
Ignoro tudo que perco ao reter
E deixo ir como um pássaro liberto
O ser que fui
Para que livre deixe
O que serei encontrar no agora
O meu vir a ser.
Olho o infinito escondido
Na concha de um caracol
Migrando vagarosamente pela
Pétala de uma flor
O mar sopra, o vento bate
A rocha flui e o fogo
Deixa-se estar estático
No meio lá está
Deus, o nada e o choro
De uma criança
O ar é frio, e dói
E a luz fere como uma faca
Lágrimas e vida
E mais Lágrimas diante da lápide
Ouça, vou contar um segredo
Que só Deus o retivera até
Que Ele deixou que voasse
O dia declina e o sol já se pôs
Todos os insetos
Já sabem, assim como as pedras
Que cantam dia e noite essa canção
O que será, já foi
E o que foi aguarda
No mesmo rastro molhado
Na mesma Pétala da flor
O mundo já acabou e morremos todos
Na escuridão total jazemos
Até que haja luz
Eu caminho no limiar
E todos os meus sonhos
Caminham comigo
Não tenho destino
Porque sou meu destino
Deus é meu companheiro
E só temos um ao outro
Nessa jornada
E ainda assim caminho sozinho
Estarei em casa antes mesmo de
Lá chegar
Mas a noite é fria e silenciosa
E eu caminho.