sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O Palhaço e a Piada

 

Eu caminhava por uma rua movimentada no centro de uma grande cidade, quando notei um grupo de pessoas organizadas em círculo. A curiosidade venceu, e me aproximei para ver o que estava acontecendo. No centro daquele círculo estava um palhaço, com roupas coloridas e um olhar que oscilava entre o excêntrico e o insano. Como tinha alguns minutos livres, decidi ficar para ver que tipo de palhaçadas ele faria.

O palhaço começou com duas piruetas ágeis que arrancaram risadas da multidão. Depois, apertou a flor falsa presa ao peito e borrifou água no rosto de um velho, que riu tanto que parecia rejuvenescido. Logo em seguida, ele puxou uma caixa de madeira para o centro do círculo.

Uma criança perguntou à mãe:

— Ele vai fazer mágica?

— Acho que malabarismo — respondeu a mãe, enquanto o palhaço subia na caixa.

De pé ali, ele limpou a garganta e, com uma voz inesperadamente limpa e forte de  tenor, começou a contar a seguinte “piada”:

— Dizem que quando o budismo chegou à China, ele encontrou o taoísmo, uma filosofia que celebrava a simplicidade, a natureza e o fluxo da vida, o Tao. Essa interação moldou o budismo Zen, que se afastou da visão tradicional de que a realidade era uma ilusão pura. Sob a influência do taoísmo, o Zen passou a enfatizar que a realidade que percebemos não é exatamente "irreal", mas moldada por conceitos. Nossa mente não vê o mundo diretamente; ela o interpreta por meio de lentes conceituais, como um prisma que distorce e organiza o que percebemos.

Essa ideia encontra raízes em um marco decisivo da história humana: a revolução cognitiva na pré-história. Foi nesse período que os primeiros humanos desenvolveram a capacidade de contar histórias e acreditar nelas. Essa habilidade nos permitiu criar mitos, religiões e ficções compartilhadas que deram sentido à nossa existência e possibilitaram a cooperação em larga escala. Ao contrário de outros animais, que vivem no mundo físico imediato, nós começamos a habitar mundos paralelos, mundos de ideias.

Richard Dawkins descreveu essas ideias como memes, que se propagam de mente em mente, moldando culturas inteiras. E, curiosamente, isso ecoa a visão do "mundo das ideias" de Platão, reinterpretada pelos gnósticos: eles acreditavam que nossa percepção do mundo era uma sombra distorcida de uma realidade superior. 

Essa capacidade humana de construir mundos conceituais é sustentada por processos cerebrais fascinantes. Estudos de neurociência mostram que nossa mente consciente é apenas a "ponta do iceberg". Alguns experimentos revelaram que, quando fazemos uma escolha, nosso cérebro já tomou essa decisão milissegundos antes, de maneira inconsciente. Nossa consciência é como uma narradora que atribui lógica a decisões que já foram tomadas no plano neural.

Um mecanismo parecido também explica por que mágica funciona. Ilusionistas exploram o fato de que nosso cérebro completa a realidade, preenchendo lacunas e criando uma versão consistente do mundo. Livros como Truques da Mente detalham como o cérebro, ao buscar padrões e fazer inferências rápidas, pode ser facilmente enganado. Em um nível mais amplo, o que chamamos de "realidade" nada mais é do que uma projeção mental, ajustada para nos ajudar a sobreviver e interagir com o ambiente.

E isso não ocorre apenas em truques de mágica. Em uma conversa casual entre amigos, por exemplo, nossa mente projeta regras implícitas: como interpretar tons de voz, gestos ou a posição social. Esses elementos invisíveis constroem um "mundo" compartilhado que nos guia durante o diálogo. É como se vivêssemos em múltiplos palcos mentais, onde as normas estão embutidas em nossas mentes, criando realidades que acreditamos ser concretas.

O mesmo acontece em nossa vida social mais ampla. Dinheiro é um excelente exemplo. Ele começou como um simples símbolo de troca, mas, ao longo do tempo, transformou-se em algo com "valor próprio". Hoje, a riqueza pode existir sem qualquer conexão com bens tangíveis ou produtividade, como no caso das criptomoedas. Isso demonstra como nossas construções conceituais podem extrapolar suas funções originais e ganhar vida própria.

Essa capacidade de criar mundos é poderosa, mas também perigosa. Quando pessoas acreditam em ideologias, religiões ou sistemas econômicos, elas podem agir de forma extrema. Isso ilustra o que Marx chamou de "superestrutura", mas ele não foi longe o suficiente. A verdadeira revolução não é apenas política ou econômica, é cognitiva. Devemos reconhecer que a base de tudo o que chamamos de "realidade" são os conceitos que construímos e compartilhamos.

No fundo, já vivemos em uma espécie de "Matrix". Não aquela das máquinas e cabos, mas uma Matrix conceitual, composta por narrativas, ideias e crenças que projetamos no mundo. Schopenhauer, ao estudar o budismo, percebeu algo semelhante: "O mundo é minha vontade e representação." Mas o salto de consciência vem ao perceber que, embora estejamos presos nessa Matrix, somos também seus criadores.

Saber disso pode ser libertador. Se entendermos que somos prisioneiros de ideias, podemos começar a reorientar os mundos que construímos. 

O primeiro passo? Olhar para os "óculos cognitivos" que usamos para interpretar o mundo. Enxergar além deles. Afinal, somos criadores de mundos. Resta decidir que tipo de mundo queremos construir.

 

Nesse momento o palhaço parou de falar, mas as pessoas esperavam que houvesse algo mais.  Por um momento, ficaram em silêncio, atordoadas, tentando entender o que haviam acabado de ouvir. Um homem gritou do fundo:

— Isso é pura asneira!

A multidão, como que despertada de um transe, começou a pegar pedras e objetos para atirar no palhaço. Mas ele já tinha sumido.

Nunca mais foi visto. Uns dizem que foi dar aulas numa universidade. Outros juram que se candidatou a um cargo político. Há quem diga que ele se internou em um hospício, enquanto alguns acreditam que ele morreu. Mas, para a maioria, o palhaço nunca existiu.

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