Eu caminhava por uma rua movimentada no centro de uma grande cidade, quando notei um grupo de pessoas organizadas em círculo. A curiosidade venceu, e me aproximei para ver o que estava acontecendo. No centro daquele círculo estava um palhaço, com roupas coloridas e um olhar que oscilava entre o excêntrico e o insano. Como tinha alguns minutos livres, decidi ficar para ver que tipo de palhaçadas ele faria.
O palhaço começou com
duas piruetas ágeis que arrancaram risadas da multidão. Depois, apertou a flor
falsa presa ao peito e borrifou água no rosto de um velho, que riu tanto que
parecia rejuvenescido. Logo em seguida, ele puxou uma caixa de madeira para o
centro do círculo.
Uma criança perguntou à
mãe:
— Ele vai fazer mágica?
— Acho que malabarismo —
respondeu a mãe, enquanto o palhaço subia na caixa.
De pé ali, ele limpou a
garganta e, com uma voz inesperadamente limpa e forte de tenor, começou a
contar a seguinte “piada”:
— Dizem que quando o
budismo chegou à China, ele encontrou o taoísmo, uma filosofia que celebrava a
simplicidade, a natureza e o fluxo da vida, o Tao. Essa interação
moldou o budismo Zen, que se afastou da visão tradicional de que a realidade
era uma ilusão pura. Sob a influência do taoísmo, o Zen passou a enfatizar que
a realidade que percebemos não é exatamente "irreal", mas moldada por
conceitos. Nossa mente não vê o mundo diretamente; ela o interpreta por meio de
lentes conceituais, como um prisma que distorce e organiza o que percebemos.
Essa ideia encontra
raízes em um marco decisivo da história humana: a revolução cognitiva na
pré-história. Foi nesse período que os primeiros humanos desenvolveram a
capacidade de contar histórias e acreditar nelas. Essa habilidade nos permitiu
criar mitos, religiões e ficções compartilhadas que deram sentido à nossa
existência e possibilitaram a cooperação em larga escala. Ao contrário de
outros animais, que vivem no mundo físico imediato, nós começamos a habitar
mundos paralelos, mundos de ideias.
Richard Dawkins descreveu
essas ideias como memes, que se propagam de mente em mente,
moldando culturas inteiras. E, curiosamente, isso ecoa a visão do "mundo
das ideias" de Platão, reinterpretada pelos gnósticos: eles acreditavam
que nossa percepção do mundo era uma sombra distorcida de uma realidade
superior.
Essa capacidade humana de
construir mundos conceituais é sustentada por processos cerebrais fascinantes.
Estudos de neurociência mostram que nossa mente consciente é apenas a
"ponta do iceberg". Alguns experimentos revelaram que, quando fazemos
uma escolha, nosso cérebro já tomou essa decisão milissegundos antes, de
maneira inconsciente. Nossa consciência é como uma narradora que atribui lógica
a decisões que já foram tomadas no plano neural.
Um mecanismo parecido
também explica por que mágica funciona. Ilusionistas exploram o fato de que
nosso cérebro completa a realidade, preenchendo lacunas e criando uma versão
consistente do mundo. Livros como Truques da Mente detalham
como o cérebro, ao buscar padrões e fazer inferências rápidas, pode ser
facilmente enganado. Em um nível mais amplo, o que chamamos de
"realidade" nada mais é do que uma projeção mental, ajustada para nos
ajudar a sobreviver e interagir com o ambiente.
E isso não ocorre apenas
em truques de mágica. Em uma conversa casual entre amigos, por exemplo, nossa
mente projeta regras implícitas: como interpretar tons de voz, gestos ou a
posição social. Esses elementos invisíveis constroem um "mundo" compartilhado
que nos guia durante o diálogo. É como se vivêssemos em múltiplos palcos
mentais, onde as normas estão embutidas em nossas mentes, criando realidades
que acreditamos ser concretas.
O mesmo acontece em nossa
vida social mais ampla. Dinheiro é um excelente exemplo. Ele começou como um
simples símbolo de troca, mas, ao longo do tempo, transformou-se em algo com
"valor próprio". Hoje, a riqueza pode existir sem qualquer
conexão com bens tangíveis ou produtividade, como no caso das criptomoedas.
Isso demonstra como nossas construções conceituais podem extrapolar suas
funções originais e ganhar vida própria.
Essa capacidade de criar
mundos é poderosa, mas também perigosa. Quando pessoas acreditam em ideologias,
religiões ou sistemas econômicos, elas podem agir de forma extrema. Isso
ilustra o que Marx chamou de "superestrutura", mas ele não foi longe
o suficiente. A verdadeira revolução não é apenas política ou econômica, é
cognitiva. Devemos reconhecer que a base de tudo o que chamamos de
"realidade" são os conceitos que construímos e compartilhamos.
No fundo, já vivemos em
uma espécie de "Matrix". Não aquela das máquinas e cabos, mas uma
Matrix conceitual, composta por narrativas, ideias e crenças que projetamos no
mundo. Schopenhauer, ao estudar o budismo, percebeu algo semelhante: "O
mundo é minha vontade e representação." Mas o salto de consciência vem ao
perceber que, embora estejamos presos nessa Matrix, somos também seus
criadores.
Saber disso pode ser
libertador. Se entendermos que somos prisioneiros de ideias, podemos começar a
reorientar os mundos que construímos.
O primeiro passo? Olhar
para os "óculos cognitivos" que usamos para interpretar o mundo.
Enxergar além deles. Afinal, somos criadores de mundos. Resta decidir que tipo
de mundo queremos construir.
Nesse momento o palhaço
parou de falar, mas as pessoas esperavam que houvesse algo mais. Por um
momento, ficaram em silêncio, atordoadas, tentando entender o que haviam
acabado de ouvir. Um homem gritou do fundo:
— Isso é pura asneira!
A multidão, como que
despertada de um transe, começou a pegar pedras e objetos para atirar no
palhaço. Mas ele já tinha sumido.
Nunca mais foi visto. Uns
dizem que foi dar aulas numa universidade. Outros juram que se candidatou a um
cargo político. Há quem diga que ele se internou em um hospício, enquanto
alguns acreditam que ele morreu. Mas, para a maioria, o palhaço nunca existiu.
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