Essa é, provavelmente, minha última postagem do ano, é também a postagem de número 100. É um conto que há algum tempo vinha sendo gestado e que por uma força além do meu controle surgiu à luz. É um conto sobre a dor, sobre a morte, mas é também um conto sobre recomeços. A história reflete acontecimentos reais, experiências minhas e de outras pessoas, devidamente "descaracterizadas" para preservar as fontes. Alguns detalhes são descrições fiéis aos fatos, alguns outros são leituras, refletem o que ouvi. Alguma coisa incluí depois de ter conversado com uma amiga essa semana mesmo sobre coisas do seu passado, ela foi a primeira pessoa a ler esse trabalho. Tentei incluir alguma leitura psicológica, como alguns leitores mais atentos poderão constatar. Tentei, também, criar uma voz narrativa que falasse num tom informal, quase como uma conversa que busca detalhar memórias dolorosas. As mudanças bruscas na frequência do texto também é algo que busquei para dar um melhor colorido no conto. Doeu muito escrever esse conto, senti a dor que descrevi e, ao terminar, precisei ir respirar um pouco sozinho. Espero ter alcançado meu objetivo que é tornar viva essa miscelânea de experiências, esse mosaico de sofrimentos.
Então... então tudo se foi...
Como uma folha levada pelas águas
Plácidas de um rio esquecido...
Descendo, descendo as encostas.
Não são mais que antigas memórias,
ou um estranho gemido no peito..
As imagens passam sombrias,
E o ar, rarefeito, exilado
Tudo se foi,
E nada voltará...com o tempo,
Sem a dor que despedaça
Sem o grito contido..a dor
De um momento é a dor da vida inteira...
Estamos todos sozinhos...
E as águas nos levam para longe
Para o desconhecido.
Plácidas de um rio esquecido...
Descendo, descendo as encostas.
Não são mais que antigas memórias,
ou um estranho gemido no peito..
As imagens passam sombrias,
E o ar, rarefeito, exilado
Tudo se foi,
E nada voltará...com o tempo,
Sem a dor que despedaça
Sem o grito contido..a dor
De um momento é a dor da vida inteira...
Estamos todos sozinhos...
E as águas nos levam para longe
Para o desconhecido.
Cinco anos e voltei a sorrir.
Eu observo Cibele correr pela grama, seus cabelos claros
refletem o sol. Há tanta felicidade nos seus olhinhos brilhantes, como se a
vida tivesse começado hoje, como se não houvesse um mar de dor ainda tão vivo em minha memória.
Sinto a brisa quente envolver meu rosto, meus cabelos estão
soltos. É como uma carícia, uma espécie de consolo da natureza.
“Cibele” era a divindade que representava a fertilidade da
natureza, o impulso de vida que faz as coisas continuarem existindo. Era o
recomeço sempre, a continuidade. Acho que não escolhi esse nome por acaso.
“Olha mamãe!”
Cibele me mostra um Dente-de-Leão. Ela sorri enquanto as
sementes voam pelo ar, como pequenos pára-quedas ou águas-vivas.
A continuidade. O dia precede a noite, mesmo a noite mais
negra. A vida brota da morte.
***
Minha avó paterna se chamava Mariana, a materna Elana. Meu
nome seria uma homenagem para as duas. Inverteram as vogais e ficou
Elimara. Elimara de batismo, Mara para todos. Coincidentemente ou não, “Mara”
significa “amarga” em hebraico. Na Bíblia, Noemi é uma mulher que perdeu marido
e filhos e por isso muda seu nome para “Mara”. Mara, a amarga. Mara, a amargurada.
Eu nunca fui uma garota tímida, nem apresentava qualquer
sinal de que me tornaria uma pessoa “amarga” no futuro. Era até popular na escola e, o
que é incomum, era também muito dedicada. Inteligente, diriam alguns.
Sabe, não quero que você me entenda mal, mas eu também não
era nenhuma puritana. Não vivi em função da minha sexualidade, mas também não ignorei meus desejos.
Apesar de ser relativamente liberal e valorizar minha capacidade intelectual,
eu ainda era uma garota que, como toda garota naquela idade, sonhava com um
príncipe encantado que viesse me buscar montando um cavalo branco. Ser
inteligente ou dedicada não significa que eu era a mais esperta. Eu entendia
bastante de senos e co-senos, mas pouco da natureza humana.
***
Eu conheci o Leonardo numa tarde de primavera. Tudo estava
florido e o mundo parecia pronto para o amor, pelo menos o meu mundo.
Eu saquei com toda a minha força, aquele era o ponto da
vitória. A bola subiu num breve arco e desceu em direção à linha adversária. Parecia que o tempo tinha parado. Mas algo deu errado, a bola agora vinha em direção
ao nosso campo. Saltei com o braço esticado, mas não alcancei.
Dor. Uma marca de sangue no chão. Saí da quadra mancando,
minhas amigas perguntando se eu estava bem, forcei um sorriso.
Sentada eu olhava a linha escarlate que escorria do meu
joelho. De uma forma estranha, aquilo era belo, o sangue quente contra a pele
branca.
Toalhas de papel estavam sobre o meu joelho.
“É só manter a pressão”, Leo disse, “e logo o sangue
estanca”.
Olhei aquele rapaz com um sorriso tão bonito e vivo. Seus
olhos castanho-claros eram a terra fecunda exalando os primeiros odores da
primavera. As linhas do seu rosto eram suaves, quase femininas e sua pele
levemente bronzeada, com a barba por fazer, me convidava ao toque...
Fomos tomar um sorvete. Ele dizia coisas sem graça e eu ria,
ria como uma corsa suspirando pelas águas. Como uma desvairada cega pelos
hormônios.
Em uma semana assumimos o namoro.
Eu tinha um amigo, não um daqueles amigos de ocasião que
riem com você e dizem que te amam embalados em ilusões juvenis. Alex era um
verdadeiro amigo e era um desses nerds bem típicos, afastado de tudo e de quase
todos. Eu sentia que ele gostava de mim, mais do que a gente espera de um
amigo. Não era feio, mas não fazia questão de parecer bonito. Usava roupas fora
de moda e sempre introduzia um elemento estranho na vestimenta. Às vezes era um
chapéu, noutras uma gravata. Talvez alguém pense nisso como “estilo”, mas a intenção era desequilibrar mesmo!
Éramos bons amigos. Em grupo ele não
gostava muito de conversar comigo, dizia que eu era bonita demais e fútil de
menos. Ele estava enganado, eu era fútil, tão fútil quanto uma garota pode ser
quando ela deseja ser.
A gente passava horas conversando sobre paradoxos temporais,
engenharia genética e os limites da tecnologia. O tipo de conversa que não agrada
a todos. Ele achava que minhas opiniões eram “muito românticas”. Mesmo assim
sempre me pedia para repetir uma ou outra coisa, depois me dizia que eu lia
muito Asimov para seu gosto. Lia mesmo, emprestados dele.
***
Alex estava sentado ao meu lado. Inclinado para frente,
cotovelos apoiados nos joelhos. Eu ouvia sua respiração, ele estava quieto
demais.
“Que foi, desembucha”.
“Estou preocupado...isto é...”
“Você está com ciúmes?”
Ele me olhou nos olhos. Havia indignação e
preocupação no seu olhar. Levantou e sem
olhar para trás disse:
“Tome cuidado, só isso”.
E saiu. Eu não consegui dizer nada, nem fui atrás dele.
***
Eu estava com o Léo na cama. Gostava do sexo. Era intenso.
Mas eu sentia algo estranho, era como se ele fizesse força para ocultar um
impulso...destrutivo! Havia brutalidade na forma como ele me pegava. Eu sentia
certa tensão nele, algo como ódio contido, mas não ódio mesmo. Era indefinível
e ao mesmo tempo gritante. Sua mão descia pelo meu cabelo e parava no meu pescoço.
E eu a sentia tremer, como se ele estivesse lutando para não me estrangular.
Eu perguntava se havia algo errado, ele não dizia nada, mas
me olhava com olhos tão ternos que me desmontavam e depois me beijava com
desejo. E eu não via mais nada.
“Não pode ser” eu disse em voz alta no banheiro de casa.
Olhei novamente o teste de farmácia, indicava gravidez. Tentei me consolar
imaginado que houvera um erro, que exames laboratoriais seriam mais confiáveis.
O médico sorria para mim, o exame indicava que eu estava
grávida de seis a oito semanas. Dei um sorriso forçado em resposta.
O mundo parecia prestes a cair sobre mim, como eu pude ser
tão idiota, tão descuidada? E meus projetos? Eu sabia que estava sendo egoísta,
mas também sabia que um filho significava responsabilidade e tempo roubado de
outras atividades, estudar, por exemplo. Senti raiva de mim por pensar isso,
afinal, era uma nova vida. Um milagre explicado, mas ainda
assim belo como o nascimento do mundo. Meu filho, minha continuidade, minha
imortalidade da carne.
Eu não me preocupava com meus pais, eles sempre foram muito
abertos comigo. Temia, na verdade, a
língua dos parentes e conhecidos. Esses me exporiam em praça pública à execução
social.
Então pensei no Leo, ele me apoiaria, era tão sensível, tão
carinhoso...
Leo parecia uma estátua, era impossível adivinhar o que ia
naquela alma. Eu comecei a chorar e a soluçar baixinho, ele me abraçou e disse
que tudo estava bem, mas o seu abraço era duro, desprovido de emoção, quase
rude.
Fomos morar num apartamento de dois quartos, afastado do
centro.
***
Léo estava distante. Às vezes ele parava diante da janela e
ficava um longo tempo olhando para o nada. Ele também sumia por horas e não dava explicações. Eu
tinha medo de perguntar onde estivera, achava que já era demais acordar um dia
e descobrir que teria uma responsabilidade não planejada, nem desejada, pelo
resto da vida. No fim, deixei de me preocupar com isso, absorvida como estava na
minha nova “condição”. Seus familiares e os meus me cercaram de toda a atenção
que eu podia desejar. Os meses foram passando.
Em alguns dias Léo acordava inspirado. Sorridente ele me levava
para passear e me contava as mesmas piadas batidas e sem graça e eu sorria como antes. Já sabíamos que seria um menino. O nome seria “Moisés”, eu
escolhi. Achava bonita a história do Êxodo. Léo conversava com Moisés e ria
muito como se ele tivesse respondido às suas frases sem graça. Minha barriga
estava enorme.
Meu pai me levou ao hospital, eu estava muito assustada, a
bolsa havia rompido. Léo estava fora quando aconteceu e eu não o achava em
lugar nenhum.
Foram horas terríveis de dor até que Moisés nasceu. Todos
estavam lá, menos o Léo.
Moisés estava comigo no quarto, eu tentava amamentá-lo. Léo
apareceu na porta e hesitou um instante antes de entrar. Pareceu-me que estivera
bebendo. Sorri, ele ignorou. Olhava o bebê com o mesmo olhar distante. Havia algo
estranho naquele olhar, era o mesmo, porém com uma diferença sutil. Uma sombra
passava pelos seus olhos, era como se ele sentisse asco do seu filho. Do filho?
***
Moisés estava com seis meses. Ele sorria muito quando via o
pai. Léo parecia esforçar-se para ser um bom pai. Ele brincava com Moisés e gostava de
andar com ele pelo bairro, mas às vezes era ríspido, reclamava do choro e
continuava desaparecendo por horas. Um dia não aguentei e perguntei aonde ele
ia. Sem olhar para mim, disse que ia andar e que não gostava de controle. Ele
bateu a porta atrás de si e me deixou falando sozinha.
Um dia eu estava sentada na praça com o Moisés nos braços. O Alex estava passando por ali e me viu. Conversamos quase como nos velhos
tempos. Alex brincou com Moisés, que riu muito. Ele me disse que o bebê tinha os
meus olhos cheios de vida.
Léo apareceu do nada. Ele ignorou Alex e me chamou. Estava
muito nervoso e, para evitar um problema para o meu amigo, resolvi segui-lo.
Virei a cabeça na direção de Alex e disse “desculpa” baixinho. Ele me devolveu
um olhar triste.
Em casa Léo começou a gritar comigo, dizer que aquilo não
era coisa de mulher séria. Tentei argumentar, mas ele não me deixava falar.
Moisés chorava muito. Léo veio na minha direção, pensei que ia me bater. Ele
disse que não admitia aquilo, que pensariam seus amigos de uma coisa dessas?
Sua mulher conversando com outro cara na praça. Eu disse que Alex era meu amigo
antes mesmo de conhecê-lo. Ele se virou, mas antes de bater a porta disse:
“As coisas mudaram”.
***
E mudaram mesmo.
Eu gostava de ler as obras de Simone de Beauvoir e me sentir uma daquelas mulheres
dos anos 30. Eu sabia que isso não era lá muito revolucionário, pois eu nasci
numa época em que, pelo menos em teoria, a mulher era igual ao homem em direitos e deveres. Talvez uma reflexão dessas
seja despropositada aqui, mas ainda restam umas raízes daquele sentimento
machista que por tantos séculos fez da mulher algo menos que um ser humano. Sejamos sinceros, debaixo desse verniz de modernidade, nosso Brasil ainda
é um país de perfil patriarcal. Se no discurso as mulheres são livres,
respeitadas, no dia-a-dia ainda vemos pessoas tratadas como coisas. Ainda há
homens que veem na mulher apenas uma posse, algo a ser conquistado e
mantido em segurança. Infelizmente para mim, Leonardo era um desses.
Não sei exatamente como tudo começou. Não sei se foi naquele
dia, quando eu me submeti ao capricho do Léo, ou se foi acontecendo depois, com
o passar dos dias. O fato é que eu era agora uma prisioneira do tipo de vida
que Léo planejara para mim. O pior tipo de prisão que existe, uma que submete nossa
mente e nossa dignidade aos desejos de um homem.
Eu achava, percebo agora, que Léo era uma pessoa pouco inteligente. O que me atraiu nele foram seu cuidado e
carinho. Não importa o quanto a gente seja liberal ou dona de si, toda mulher
deseja uma homem carinhoso e compreensivo. O que a gente não percebe é que esse
tipo de coisa pode ser facilmente simulada. Hoje percebo que Léo era muito
esperto e que cada ação era planejada para me desestabilizar. Ele odiava o tipo
de mulher que eu poderia vir a ser e queria destruir isso.
As saídas de Léo diminuíram, imaginei que ele tivesse se
conformado ao papel de pai, estava enganada. Ele me acompanhava onde eu fosse,
fazia questão de saber cada passo meu, embora eu não fizesse muitas coisas, nem
tivesse mais uma vida separada da vida com ele. Sutilmente ele começou a
destruir minha auto-estima. Fazia uma gentileza e então elogiava uma outra
mulher, como se dissesse que gostaria que eu fosse assim e assim. Em outros
momentos ele apontava algum defeito, real ou imaginário, em mim, mas fazia isso
de forma tão dissimulada que eu não percebia seus objetivos. Ele
dizia “que bom se você tivesse olhos maiores, os seus me passam tristeza” ou
“você engordou?”. Era uma guerra silenciosa, sem trégua.
Os meses foram passando e Léo foi ganhando terreno sobre
mim. Eu estava sempre triste, sempre procurando melhorar para agradar um homem
tão bom. Emagreci dez
quilos, já não comia e dormia muito pouco. Tinha olheiras crônicas. Não tinha mais amigos, vivia encerrada naquele pequeno
apartamento. Saíamos pouco e quando saíamos o Léo sempre achava um modo de
brigar comigo. Perguntava por que eu teimava em ficar olhando para outros
homens se tinha o meu. Acredito que o ciúme era verdadeiro, mas era um ciúme possessório.
Eu não lia mais, pelo menos não os tipos de livros que eu
costumava ler antes. Léo me trazia livros e dizia:
“Você tem que ler isso!”
E eu lia, mas geralmente era uma romance água com açúcar, com
uma heroína bem clássica, isto é, bem
o tipo de mulher que Léo estava tentando criar em mim. Romances como Madame Bovary ou Lucíola estavam fora de cogitação. Não que Ema fizesse exatamente o
tipo mulher forte, mas, aos olhos de
Léo, não era um bom exemplo.
Eu imaginava que Léo vivia só para mim, que me amava de fato
e que essa era a razão desse cuidado todo. Mas um dia o mundo caiu sobre mim e
comecei a entender o tipo de homem que estava ao meu lado.
Primeiro descobri que a mulher que eu achava ser minha sogra
não era realmente a mãe de Léo. Ela mesma me disse isso um dia, meio sem
querer, meio por desconfiança de seu enteado. A mãe de Léo nunca fora casada
com seu pai. Nunca quis ser casada
com ele. Era o tipo de mulher dona de si. Resolvera ter um filho e como não
podia fazer isso sozinha, escolheu o pai de Léo como doador voluntário. Ele não foi enganado, sabia o que estava
fazendo. Fez apenas uma exigência, ser o
pai de seu filho. E foi isso por cinco anos. Um dia vieram buscar Léo na
escola. Sua mãe fora morta por um amante enciumado. Ela era boa
para ele, sua morte prematura o marcou profundamente, ainda mais quando, anos
depois, ele veio a entender em que condições sua mãe lhe fora tirada. Sua vida
foi uma busca para tentar separar a mulher livre daquela que fora sua mãe. Uma
estranha dicotomia. E em mim ele viu a chance de purgar seu passado, pelo menos
na sua forma doentia de ver as coisas.
Infelizmente eu não estava no meu melhor estado para
entender isso na época. Eu teria evitado tantas dores, tantas tristezas que
ainda me acompanham e, certamente, me acompanharão pelo resto da minha vida.
O segundo golpe veio dias depois. Léo tinha amantes e não
fazia o menor esforço de ocultar isso. De uma forma ainda mais doentia, ele
procurava na rua a mulher que estava matando em casa. No lar a mãe submissa, na
rua a mulher liberal. Complexo de Édipo duplo, ódio e amor. Ele fazia questão
de não esconder os bilhetinhos que recebia de suas garotas, deixava-os sobre nossa cômoda no quarto. O que me assombra é a minha apatia diante de
tudo. Eu buscava desculpas para ele, dizia comigo mesma que era passageiro, que homem precisa de certa liberdade...
e todas essas bobagens que nos ensinam desde menininhas. Em dias anteriores eu
até aceitaria a condição, desde que em pé
de igualdade.
Até então eu sofria agressões verbais, embora nem mesmo percebesse
isso. Mas um dia, sem conseguir dar mais desculpas para o comportamento de Léo,
abordei de leve o assunto. Disse que isso poderia prejudicar o Moisés, que ele,
o Léo, estava sendo descuidado. Léo me jogou de costas sobre a cama e, segurando
minhas mãos, sentou sobre meu ventre. Naquele dia eu conheci o verdadeiro Léo,
ele falava cuspindo na minha cara, seus olhos estavam em brasa, havia maldade
neles. Ele disse que eu era uma idiota metida a esperta, que minha função ali
era obedecer meu marido e cuidar do meu filho. Eu chorava e implorava para me largar, mas ele apertava ainda mais meu pulso, tentei gritar, mas ele bateu
com sua cabeça na minha me deixando tonta. Meu nariz sangrava. Então acordei,
senti ódio e gritei que era para ele me largar. Eu disse que ia embora com meu
filho. Léo gargalhou, ria como se
tivesse ouvido o maior disparate do mundo. Então ele me esbofeteou até eu quase desmaiar. Depois esvaziou um copo de água na minha cara e disse no meu ouvido
“eu tiro meu filho de você”. Eu sabia
que as coisas não eram bem assim, mas estava tão fragilizada, tão...reduzida.
Comecei a chorar mais alto, Moisés batia na porta e me chamava. Léo estava em
pé na frente da cama, havia satisfação no seu olhar. Ele avançou, eu
me encolhi tentando defender o rosto. Léo rasgou minhas roupas, cuspiu na minha
cara e me violentou... eu não tinha forças para reagir. Moisés me chamava.
***
A luminária acesa, sua luz me levando. Longe o choro do
menino. Havia sangue no meu rosto. Ouvia o chuveiro. Isso era a morte? A luz
foi ficando fraca, o barulho tão longe. Eu não via nem ouvia nada, mas uma
frase, um verso de um poeta desconhecido, batia na minha cabeça: “a dor de um momento é a dor de uma vida inteira”.
Eu andava num labirinto semi-iluminado, suas paredes
ameaçavam fechar-se sobre mim. Era úmido, cheio de musgo e formas negras se
arrastavam pelos cantos.
“Mamãe?”
Minha mão. Sangue. Eu tentava gritar, correr. Era um sonho
negro, um pesadelo. Como se eu tivesse sido atirada numa privada, eu estava
suja. Minha cabeça latejava, eu tentava abrir meus olhos.
“Mamãe!”
Eu estava no chão do quarto. Minhas roupas rasgadas.
O corpo inteiro doía. Moisés estava agachado do meu lado, sua mãozinha gorda
alisava meus cabelos emplastrados com o sangue coagulado. Ele me beijava a
testa suja e perguntava:
“Dodói mamãe?”.
Meu filhinho estava assustado, não entendia aquela
brutalidade toda. Eu me forcei a levantar e fui cambaleando até o
banheiro, Moisés, na sua forma inocente, ia agarrado à minha perna tentando me
amparar.
A água fria me fez despertar. O espelho! Meu rosto irreconhecível, inchado, cheio de hematomas. Os olhos roxos. Sobre o supercílio esquerdo um corte, meu lábio pendia sem
vida. Moisés me puxava. Abaixei-me, ele me abraçou, me beijou e afagou meus cabelos. Eu soluçava baixinho, abraçada a meu filho,
sentada no piso frio do banheiro.
***
Era madrugada, eu observada as luzes da cidade pela janela
da sala. Com o polegar eu acariciava a leve marca que sobrara sobre meu
supercílio. A dor física cedera lugar a uma forma de sofrimento dez vezes pior.
Moisés ressonava no seu quarto. No meu quarto, Léo estava
esparramado sobre a cama, ele roncava alto depois de mais uma vez me possuir de um modo horrível. Ele se jogava sobre mim, não se
preocupava com preliminares ou carinhos, embora isso não fizesse mais a
menor diferença mesmo. Lançava sua sujeira e virava para o lado.
Léo me fazia sair com ele às vezes, ele adorava posar de bom
pai e marido prestativo. Na frente de outras pessoas ele me beijava no rosto,
falava comigo suavemente e perguntava se eu desejava algo. Eu me tornara uma
mulher calada. Monossilábica quando era obrigada a responder. Para os estranhos eu estava depressiva e Léo era
o marido sofredor, mas resoluto, que me apoiava e amava.
O que mais doía era alguém vir elogiar Léo para mim e dizer
que eu era uma mulher muito feliz pelo homem que tinha. Por que eu consentia, de onde vinha a minha apatia? Não tenho uma
resposta , não mesmo, por mais que eu me esforce. Era como se eu
fosse uma daquelas prisioneiras dos campos de concentração nazistas. Eram
pessoas educadas, até orgulhosas, mas que foram de tal forma brutalizadas que
perderam sua energia vital. Dia desses assisti ao filme “O Pianista” e chorei
muito. O sofrimento apaga a cultura e dilui a personalidade. O que sobra é o ato automático da busca pela sobrevivência, sem,
paradoxalmente, o desejo de estar
vivo.
Era difícil resistir ao impulso de saltar daquela janela. Eu
ensaiava subir no parapeito e imaginava meu corpo solto no ar. Mas então pensava no Moisés. Eu não tinha o direito de privar meu filhinho
de sua mãe. Meu pobre Moisés! Como essas lembranças ainda estão tão vivas! Eu
pensava no que seria dele sem mim. Temia que viesse a se tornar alguém como
o pai no futuro. Eu não pulava. Por amor? Não somente, mas também por medo.
Medo de dar um novo Léo para uma outra Mara que não hesitasse em
saltar.
***
O desejo de
resistir começou a tomar forma dentro de mim. Indefinido no começo, mas crescendo dia a dia como uma nova
gestação. Se ele desejava matar sua mãe em mim, eu tinha que impedir Léo
de ter existência no meu filho. Talvez uma nova patologia tivesse
nascido, mas era ela que me dava energia para continuar.
Fui mudando aos poucos, oferecendo resistência devagar.
Deixei a posição subserviente, mantinha os olhos nos dele, respondia no
mesmo tom. Ele tentou me agredir uma ou duas vezes, mas ao ver que
eu não tinha medo, que não chorava nem me encolhia, desistiu e saiu para mais
uma das suas sumidas habituais.
Eu precisava deixar aquele marido opressor. Ele sempre dizia
que se eu tentasse deixá-lo ele me mataria. Como isso não fazia mais efeito
voltava sua maldade para Moisés, dizia que ia tirá-lo de mim. Eu mordia o lábio
de raiva, mas procurava não demonstrar.
Uma noite coloquei o Moisés para dormir e fui ler algo na
sala, Léo estava fora o dia todo. Acabei pegando no sono. No meio da madrugada
acordei com o barulho da porta. Entrou e ficou diante do sofá, estava bêbado. Ele apontou o indicador para mim e me chamou de
“vagabunda” e “puta rampeira”. Eu sabia que não adiantava discutir com ele.
Disse para ele ir tomar um banho e dormir que de dia a gente poderia discutir o
assunto, disse que o Moisés estava dormindo. Léo chutou o sofá com força,
agradeci por não ser a minha perna. Ele continuou derramando uma enxurrada de
palavrões e ameaças. Eu estava em pé diante dele. Os olhos de Léo estavam
vermelhos, injetados de ódio. Ele gritava, dizia coisas horríveis sobre mim,
coisas difíceis de escrever. Eu não respondia, apenas o encarava nos olhos,
minha vontade era matá-lo e se tivesse uma arma é isso que eu teria feito. Aquele
homem diante de mim tinha sugado minha alma, tornado minha vida uma pálida
imagem do que ela poderia ter sido. Ele acabou com meu romantismo, com meus
sonhos. Eu poderia matá-lo, sem hesitação, com um tiro, uma facada, lançando-o
pela janela. Ele gritava e espumava. Onde estava o Léo que conheci poucos anos
antes? Havia engordado. As linhas suaves, quase femininas, eram agora rabiscos
rústicos. A barba por fazer não era charmosa, tornava seu aspecto
ainda mais selvagem.
Léo estendeu o braço para agarrar meu pescoço dizendo que ia
terminar o que deveria ter feito há muito tempo. Não sei como me desvencilhei
dele e o empurrei com toda a minha força, com todo o meu ódio. Léo
tropeçou na mesinha de centro e caiu batendo a nuca na quina da estante. Ficou
sentado naquela posição. Peguei um vaso grande, um vaso com desenhos de garças. Era pesado e resistente. Moisés o derrubara algumas vezes sem quebrá-lo. O vaso estava nas minhas mãos, parecia
incrivelmente leve. Léo levantou a mão, mas não para se defender. Passou a mão
na nuca e olhou para o sangue. Então levantou o olhar para mim. Havia ódio,
muito ódio. Então ele percebeu o vaso e seu semblante mudou. Finalmente entendi
o que era aquela tensão indefinível nele. Era medo. Léo estava aterrorizado, a
boca torta num grito contido.
“Não mamãe!”
"Mamãe”? Fiquei paralisada, deixei cair o
vaso que se espatifou aos pés de Léo. Ele levantou e saiu apressado pela porta
aberta. Chorei. Léo era um doente.
***
Fazia dois dias que Léo não dava as caras em casa. Moisés
estava inquieto, chamava pelo pai. Ninguém sabia dele, começava a me perguntar
se não havia se matado, pensei em procurar a policia. Liguei para seus
pais. Pouco tempo depois eles chegaram. Com muita dificuldade expliquei tudo o que vinha acontecendo. O pai do
Léo olhava para o tapete e balançava negativamente a cabeça. Sua madrasta massageava meu
ombro, ela entendia. Me disseram para ficar tranquila, que eles tomariam alguma
providência. O pai do Léo trocou a fechadura do apartamento e me disse para
chamar a polícia se me sentisse em perigo. Léo precisava de tratamento, era uma
doente, mas um doente perigoso.
Dois dias se passaram e nem sinal do Léo. Moisés
continuava inquieto, chorava muito. Ele precisava de ar fresco, brincar ao sol.
Descemos até a praça. Moisés corria como um cabritinho novo, subia nos
brinquedos, tentava subir nas árvores. Um dia ensolarado, belo. Há quanto tempo eu
não prestava atenção nisso, não curtia os pequenos espetáculos do mundo?
Reparei num rapaz descendo a rua de bicicleta, que alegria!
Era o Alex. Não o via desde aquele dia. Ele parou há uns trinta metros de mim,
nossos olhos se cruzaram, ele sorriu, eu correspondi. Alex estava diferente,
solto. O sorriso de Alex se desfigurou.
“Pai!”
Barulho e uma dor terrível no meu braço direito. Eu estava
caída na areia, com uma mão Léo segurava Moisés e com a outra apontava a arma
para meu rosto. Fechei os olhos, era o fim.
Alex estava sobre Léo, batia na sua cara. Moisés batia nas
costas de Alex. Ele deixou Léo ensanguentado e veio me ajudar. Tentei falar, a
dor era muita. Alex tentava estancar o sangue. O projétil atravessara meu braço
e penetrara meu tórax, era difícil respirar. Entre as ondas de dor eu disse:
“Meu...filho”.
Levantei a cabeça com esforço e vi Léo entrando
com Moisés no carro. Os pneus cantaram e o veículo se afastou velozmente.
Desmaiei.
***
A dor de um momento é a dor de uma vida inteira. A recuperação
foi lenta, dolorosa, nunca completa. O dia ensolarado se tornou uma noite
ártica. A loucura era uma ave negra sempre me encarando com seus olhos ávidos.
Dia e noite eram uma amalgama amorfa. Mãos desconhecidas me conduziam, eu
dormia a maior parte do tempo. Alex me visitava toda semana no Hospital
Psiquiátrico, ele segurava minhas mãos magras e afagava meus cabelos
descuidados. As outras internas me faziam tranças. Eu não falava.
Um pesadelo me perseguia, Léo gritando da janela do carro
que tiraria meu filho. Moisés me chamando. O carro corria pela estrada, numa
curva Léo perdia o controle e batia de frente num caminhão.
Era um pesadelo porque era real. A dor de um momento é a dor de uma vida inteira.
A recuperação foi lenta, mas ocorreu. Alex estava sempre ao
meu lado, cuidando de mim e tentando tirar daquela terra morta a flor que um
dia eu fora. Ele me falava das coisas do passado, eu não respondia. Lia poemas
que fizera para mim. Ficava em silêncio quando eu pedia. Com sua paciente ajuda, a longa noite foi chegando ao fim.
“A vida surge do que não está vivo”.
Era um entardecer suave. O mar e a areia falavam um idioma
antigo, havia aves no céu e barcos na água. Os olhos de Alex me diziam tanto.
Eu o puxei para mim e o beijei. O amor renasceu.
***
Cibele está no colo do pai, Alex está tão feliz! Ele roda
com ela, finge uma valsa. Eu ainda estou sorrindo. Alex olha para mim também
sorrindo e me chama com um leve toque de cabeça. Cibele também me chama. Dançamos
os três ao som do vento, felizes...felizes como passarinhos na primavera.
Felizes como o som da chuva enchendo de vida uma terra ressecada. Felizes como só
podem estar três pessoas que se amam plenamente. Feliz como uma
pessoa que acorda de uma noite que parecia não ter fim e percebe que tem diante de si a vida
inteira.
Longe, um pássaro solitário voava
em direção ao horizonte...
Nenhum comentário:
Postar um comentário