terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Tuta

 

        Portinari. Meninos Brincando. 


Era 1986, eu tinha 11 anos e o meu mundo era muito pequeno e simples. Naquele tempo eu morava num município da região metropolitana de Curitiba. Simples, mas não tão simples quanto aquele outro lugar em que "muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas con el dedo". Mas era tão mágico quanto Macondo. 

Anos 1980, não havia internet ou smartphone. Os carros eram carburados e os telefones públicos funcionavam com uma ficha de metal. Em casa, poucos tinham o aparelho, pois uma linha custava tanto quanto um carro usado e se você alugasse uma, o valor seria o do aluguel de uma pequena casa, medido, conforme o costume de um tempo em que a inflação batia nos 147%, em salários mínimos para evitar o transtorno dos juros compostos. O governo que calcule! 

Apesar das dificuldades, éramos muito pobres, foram alguns dos melhores tempos da minha vida! Eu estava entrando na adolescência, mas ainda trazia muito do moleque. A região parecia interior, tinha muito mato, muito bicho para caçar, frutas silvestres, pinhão e chácaras com pés de pera e parreirais desprotegidos. Ainda havia as cavas e rios, onde a gente nadava, pescava uns carazinhos, lambaris e traíras. Fome eu não passava. Nem as sanguessugas que grudavam na pele quando a gente cansava dos anzóis e resolvia "passar a rede", na verdade um pedaço de tela de náilon, uma saca de cebolas ou qualquer tecido que cumprisse a função. 

No campo da diversão, a gente lia os gibizinhos uns dos outros. Um dos pilantrinhas que andava vagabundeando com a gente era o Pablo. Ele morava com seu avô, que era dono de uma banca de jornais. Essa era nossa principal fonte de quadrinhos, que o Pablo usava como pagamento dos mais estranhos trabalhos. 

"Eu te empresto o Almanaque Disney, mas quero que você me traga uma pera".  Todo mundo corria para pegar uma pera. Você tem ideia do que significava um Almanaque Disney inteirinho naquele tempo em que só havia tv aberta, com sinal muito ruim e nossos aparelhos eram preto e branco? 

"Toma aqui sua pera". Ele examinava a fruta com uma das sobrancelhas levantadas e tascava: "Não era essa que eu queria, era aquela". E apontava a fruta no lugar mais alto e difícil de pegar. Com o tempo aquilo virou uma espécie de desafio divertido e a gente já esperava pela nova revistinha, não tanto por ela, mas pelo desafio. Menos o Nenê, meu melhor amigo e companheiro de rapinagens e pescaria. Ele era fascinado por um personagem de desenho animado que fazia muito sucesso naqueles tempos, o He-man. Mas quem não era? E o desenho nem era tão novo, mas novidade, naqueles tempos ( e lugar), durava uns bons cinco anos! 

Com o tempo, o Nenê ganhou o He-man como um apelido sobressalente. Na maior parte do tempo, era o Nenê, mas se a gente queria algo dele ou apenas zoar, dizia: " Ô, rímeim, você que é forte, pega essa fruta ali pra mim". "Rímeim, leva essa cartinha praquela menina que eu gosto". Quando o Nenê ouvia isso, ele levantava os braços magricelas e forçava os músculos. Ele achava que era parecido com o personagem e a gente concordava, quando era conveniente. Mas quem abusava mesmo dele era o Pablo, pois em janeiro daquele ano, 1986, a editora Abril lançou uma revista em quadrinhos do He-man com um estilo igual ao do desenho animado. A gente sabia da revista porque a editora Abril já a vinha prometendo nas páginas publicitárias dos seus gibis. O Nenê estava louco por aquela revista. E quando ela chegou, o Pablo logo inventou "os doze trabalhos do rímeim". Um dia conto melhor essas traquinagens, mas adianto que aquela revista custou caro ao Nenê. No fim, vencido pela persistência do amigo, o Pablo deu a revista para o Nenê. A gente fazia isso pelos empréstimos, mas ele deve ter se sentido mal por abusar tanto do amigo. Um dia conto melhor sobre "os doze trabalhos do rímeim", mas meu interesse aqui é dar uma cor aos tempos e introduzir essas pessoas fantásticas da minha infância. 

Para falar a verdade, eu não lembro o nome real do Nenê. Aliás, nem sei se soube algum dia. Todos o chamavam pelo apelido, inclusive sua família. Pois foram eles que o apelidaram, porque ele era o mais jovem dos seus irmãos. O Nenê, apesar do modo como se via, era indígena. Na época não pensava nisso, mas hoje isso é claro. No pai via-se algum indício de mestiçagem. Era um verdadeiro "caboclo". Um homem gentil, de fala suave. Lembro dele sentado numa cadeira em frente à sua casa, sempre fumando um cigarro "palheiro" e tomando chimarrão. Ele tinha alguma doença, eu não lembro qual era. A mãe era uma perfeita indígena de cabelos negros bem lisos, olhos puxados e pele bastante bronzeada. Eram indígenas , mas indígenas que perderam sua cultura ou assim me parecia. Eles tinham, se não me engano, três filhos. O Nenê, uma menina mais velha que ele e o nosso verdadeiro herói daqueles dias, o Tuta. 

O Tuta tinha 16 anos e parecia muito com a mãe. Para nós era um homem formado. Ele sim tinha era forte, vivia fazendo flexões e outros exercícios no quintal da sua casa. Treinava uma coisa que ele aprendia numas revistas que prometiam ensinar artes marciais e que podia ser caratê, chute boxe ou kung fu. E a gente treinava com ele seus chutes, socos e rasteiras. Mas o Tuta era cuidadoso e gentil como o pai. Só uma vez eu cheguei perto de me machucar, ele me deu uma rasteira e eu bati tão forte no chão que perdi o ar por alguns segundos. Ele tava tapinhas nas minhas costas, preocupado, e soprava minha nuca. Mas logo que me recuperei, começamos a rir. 

Um dia eu vi na TV alguém dizendo que antes dos exercícios a gente tinha que se alongar. Mas exatamente o que era "alongar"? Na nossa próxima seção de artes marciais genéricas, eu disse ao Tuta, com ar de entendido, que "um bom lutador tem que se alongar antes". Ele, que era tão inocente quanto a gente, perguntou como seria isso.

Eu nunca vou esquecer aquelas cenas cômicas. O Tuta deitava de costas e segurava num toco de árvore, então eu pegava uma perna, o Nenê a outra, e a gente puxava. Criamos umas tantas variações desses "alongamentos". Bom, o Tuta não se tornou o próximo Van Damme, então acho que havia algo de errado com a minha teoria...

Mas não era só isso. A gente sentava naquele gramadinho e ficava ouvindo as histórias de amor do Tuta, sempre ao som de alguma música romântica internacional. E vou te dizer, como eram boas as músicas e as histórias! 

Um dia, numa festa junina, vi o Tuta beijando uma menina de cabelos curtos. Vou te dizer, acho que pelas histórias que ouvi, aquela era a garota mais linda que eu já tinha visto na vida! Mas tanto eu como o Nenê, o Pablo e nossos outros amigos, estávamos mais interessados em aventuras, histórias em quadrinhos e frutas roubadas. 

O Tuta trabalhava, então nunca participava das nossas aventuras. Nossos encontros se davam nos fins de tarde e finais de semana. O que mais me encantava no Tuta é que ele nos respeitava e aos meus olhos ele era um adulto, embora fosse só um adolescente um pouco mais velho. 

Mas o Tuta era um sonhador, um romântico. Acho que aprendi um pouco disso com ele. 

Aquele foi um tempo mágico que não durou nem dois anos, mas para mim foi uma vida inteira. Passado um tempo, nos mudamos dali e eu nunca mais vi nenhum dos meus amigos, exceto o Tuta. Depois de adulto, eu até fui ao local, mas estava tudo tão diferente, cheio de casas, de ruas e de gente desconhecida.

Anos mais tarde eu encontrei o Tuta na rua. Ele estava varrendo o chão, mas eu o reconheci de imediato. Cheguei mais perto e o cumprimentei, ansioso por rememorar alguns daqueles episódios da infância, perguntar sobre o Nenê e ele mesmo. Agora a idade mais ou menos nos equilibrara. 

Ele levantou a cabeça, respondeu meu cumprimento e me chamou de senhor. Mas o corpo permanecia curvado. O seu rosto era o mesmo, mas com muitas rugas e nos olhos um desconsolo, um cansaço, uma desilusão que me atingiram na alma como a ferroada de abelha no pescoço. Onde estavam aqueles olhos brilhantes e sonhadores? Aquela confiança? O que fizeram com você, Tuta? Como domesticaram sua alma sonhadora?  Não era o mesmo rapaz que eu conhecera. Eu não tive coragem de perguntar nada, apenas desejei um bom dia de trabalho, que ele agradeceu, e fui andando para que ele não visse a lágrima que descia pelo meu rosto. 

Eu chorava pelo Tuta, pelo Nenê e por mim mesmo. Foi desolador ver nele a mesma imagem que eu via todo dia no espelho.




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