Ele levantou naquela manhã sentindo que as coisas não estavam bem. Diferente dos outros dias, quando ele apenas pensava que não iam bem. Um homem como ele, cumpridor das suas obrigações religiosas, sabe que sentir é um coisa muito séria, é como dar uma olhadela por trás das cortinas do mundo.
A cabeça latejava, seu coração parecia ter mudado para a cabeça, e seu corpo manifestava uma estranha rebeldia, ele tinha que se esforçar para sair da cama. Tomou um analgésico e foi para o sofá ver as notícias do dia pela tv.
A imagem parecia distante e havia uma estranha distorção no ar, como se ele estivesse vendo a chuva escorrendo por uma vidraça. Fechou os olhos e continuou vendo a distorção. Tudo parecia distante.
Foi ao mercado.A mesma distância de tudo, a distorção tinha diminuído. A esposa falava enquanto ia cheirando um amaciante. Devia ser bom. Sei lá se é bom! Será que todas as mulheres ficam cheirando os produtos de limpeza no supermercado?
Ele pescou no ar uma ordem para ir pegar uma caixa de leite. Quando deu por si, estava no fundo do mercado, longe da esposa e do leite. Ele não se lembrava de ter andado até ali, é como se o último minuto tivesse sido apagado da sua mente. Ele lembrou do leite.
Era desnatado ou semi-desnatado? Escolheu uma caixa. Então lembrou que precisava de pão. Andou alguns metros até a prateleira.
Ficou na dúvida entre duas embalagens, pesavam quase a mesma coisa, mas os tamanhos eram diferentes. Fez alguns cálculos mentais e escolheu aquela que parecia ter mais pelo menor preço. Então lembrou do carrinho. Voltou alguns metros. Havia vários carrinhos cheios no corredor e ele não sabia qual era o seu. Começou a suar, alguém teria levado o seu carrinho? Por que? O que diria a esposa se tivessem que fazer a compra toda de novo? Ele não suportaria passar por tudo novamente.
Ficou dando voltas em busca das compras perdidas, o pão numa das mãos. Aquilo não estava adiantando. Parou e tentou se concentrar, lembrar quais tinham sido seus últimos passos. Lembrou que tinha pego dois potes de uma margarina barata para usar nos misteres da cozinha. Começou a inspecionar os carrinhos do corredor, uma mulher fez cara feia, ele engoliu o ar numas desculpas envergonhadas. Então viu os dois potes de margarina num carrinho que estava bem próximo dele. Passara ali diversas vezes e não vira aquele carrinho. O que estava acontecendo?
Encontrou a esposa, sem uma desculpa pela demora...estava estranho aquele dia, muito estranho. Estranho demais para um dia normal, estranho demais para um cara que apenas fizera quarenta anos.
Estranho demais para ser apenas um dia em que ele escreveria essa história como se fosse um conto, na terceira pessoa, sem sentido algum. O tipo de texto em que ao chegar na última linha as pessoas perguntam se havia algum sentido naquela história, se era verdadeira ou apenas imaginação do autor. Estranho, muito estranho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário