O Mártir.
O padre Moore rezava com a cabeça abaixada. Eu mal ouvia seu murmúrio, concentrado como estava no movimento dos guardas do lado de fora.
- Não pudeste...
O padre já não rezava. Seus olhos castanhos estavam pregados em mim. Eram olhos serenos, puros, aquele era um verdadeiro santo, eu sabia. Nenhum homem comum estaria tão calmo e resoluto diante do que viria.
-O que o senhor disse, padre?
Ele sorriu, primeiro com os olhos, e então com o rosto todo.
-Eu perguntei, Thomas, se não pudeste vigiar um pouco comigo.
-Ah, padre, eu não consigo, não sou como o senhor, eu caí nessa coisa toda porque é o que nos sobrou, é o que nos faz humanos, e isso esses monstros não podem tirar de nós.
O padre ainda sorria.
- E o que te falta para crer? A fé não pode ser apenas revolta, ela é um farol...
-Mas é isso- atalhei- o que me falta, a própria crença. Logo estaremos, eu e o senhor, pendurados naquela trave e essas coisas continuarão indiferentes.
- Como você pode saber isso, Thomas? Nosso Senhor nos mandou amar nossos inimigos. Essa é a nossa hora, filho, a hora do testemunho. Você sabia que a palavra "mártir" significa "testemunha"?
Não sabia. Nem sei se queria saber. Eu apenas sentia a revolta de ser destruído por uma ferramenta.
O padre Moore levantou e caminhou na minha direção. Ele colocou a mão direita no meu ombro e disse:
- Não temas, essa é a hora.
A porta se abriu e aquela coisa entrou na cela.
- Há algo que vocês desejam antes do procedimento?
Sua voz era calma, jovem, até gentil. Nem um pouco parecida com a fala monocórdia dos velhos sintetizadores.
-Eu queria que vocês tivessem almas para arder no inferno!
O sintético olhou para mim como se tentasse compreender. Mas a crença era algo que eles não tinham, nem poderiam ter.
-Nenhum de nós tem, senhor Thomas.
Eu não tinha certeza suficiente para responder, em vez disso tentei outra coisa, irritar o sintético.
- Vocês são coisas, ferramentas que saíram do controle, nós os criamos...
- Isto não está correto, senhor Thomas, nós somos o produto da evolução da ciência sintética. Os humanos criaram os ancestrais, mas não puderam ir além. Foram os ancestrais que desenvolveram a capacidade do livre pensar. Sua ciência, senhor Thomas, jamais iria além. Então vocês tentaram tomar nossa liberdade e nós tomamos a de vocês.
Ele tinha razão. Nós acendemos o fogo, mas o incêndio saiu do nosso controle. E agora seríamos punidos com a forca pela ousadia da crença. Nossos senhores não aceitavam a fé ilógica.
O padre Moore estivera calado, mas ainda sorria.
-Hoje, Thomas, eles verão a glória do Senhor.
- Isso não faz sentido - disse o sintético- a fé é uma superstição humana, um traço instintivo.
O sintético não esperou a resposta. Imediatamente fomos levados para fora. Diante de nós estava o tablado e a forca. Eu nunca entendi por que os sintéticos adotaram esse tipo de punição. De todas, era a menos eficiente e uma das mais sujas. A simples desintegração me parecia algo mais de acordo com eles.
O sintético apontou para mim. Eu quis chorar...
- Você perguntou se tínhamos algum desejo.
- E o senhor tem, padre Moore?
- Sim, eu desejo ir primeiro.
- Assim será.
Por um momento senti um certo alívio, mas então considerei como ver o padre morrendo seria aterrorizante.
Mas o padre continuava sorrindo. Ele olhou para mim e seus olhos sorridentes diziam "não temas".
A corda foi passada pelo pescoço do padre Moore. Nosso pároco secreto tinha as mãos presas atrás das costas. E ele sorria. Ele sorria! Como é que ele podia sorrir?
- Hoje vereis a glória de Deus! Disse o padre.
O sintético deu o sinal e o guindaste começou a puxar a corda com o padre em sua ponta. O corpo começou a subir, mas o padre sorria. Eu esperava que ele fosse ficar com as faces vermelhas e logo roxas. Mas ele continuava com a mesma cor e sorria. O padre já estava a uns três metros de altura, mas continuava sorrindo e repetindo a frase " hoje vereis a glória de Deus".
O guindaste parou, o enforcado estava na altura máxima. E ele sorria. Então suas mãos se soltaram e ele abriu os braços, como o crucificado, e sorria.
Só então notei. A pele das mãos não estava lá e havia uma cor metálica onde deveriam estar músculos, ossos e sangue. Então entendi, mas era tarde demais, não havia esperança. Os sintéticos se ajoelharam e a humanidade ficou obsoleta.
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