Um conto com ambientação de ficção científica e uma história singela.
_________
O senhor Anton manipulava de modo automático a placa dourada que trazia seu nome e o cargo que ocupara pelos últimos dez anos, diretor geral da província da Urânia. Seus pensamentos, porém, estavam longe. Pensava no seu ancestral, o colono Yaroslav, que chegara ao setor 11 de Mir-3 vindo da antiga província terrana da Eslávia havia três séculos.
Os colonos encontraram uma terra nua, selvagem e muito diferente da região populosa de onde vieram. Yaroslav fora membro sênior da primeira comissão que organizou os assentados em suas glebas e as defesas contra os aborígenes. O prédio central da administração de Urânia ficava sobre a colina onde o padre Piotr rezara a primeira missa ortodoxa do planeta poucas horas depois do primeiro ataque. "Eram eles ou nós"- consolou-se Anton.
"Com sua licença, senhor diretor, posso limpar sua sala agora, para que iniciemos o processo?"
Era o faxineiro, o senhor Grigory.
"Senhor Grigory, acho que ficarei mais um pouco. Venha, sente-se comigo, tomemos juntos um pouco de Canut para comemorar sua aposentadoria" .
Grigory apoiou-se na escovão que trazia e pareceu considerar aquilo.
"Por que não? É meu último dia"
Anton serviu uma boa dose de canut, o fermentado produzido a partir da erva local de mesmo nome, e entregou a cratera a Grigory. Lamentou não ter vodca, fazia muito tempo que esse produto não chegava da Terra. O homem sorveu o líquido com prazer.
"E assim termino meus cinco anos, com uma dose de canut. Sou um homem abençoado, senhor diretor, nosso Bog me guiou até aqui, slava Bogu!" .
Mas Anton não prestara atenção. Seus olhos estavam sobre o retrato do seu antecessor. O homem tivera a dura incumbência de submeter a última resistência autóctone. Agora estavam extintos.
"Eu sei o que pensa, senhor diretor, mas eram eles ou nós"
"Sim, Grigory, mas isso não diminui o peso da escolha e ainda assim sou grato por ter tido um governo tranquilo em consequência disso".
"Alguns homens precisam viver com suas escolhas e seus deveres, senhor. Foi isso que nossos primeiros colonos descobriram quando foram atacados. Vieram as reservas e eles podiam estar vivendo em paz nelas até hoje".
"Sim, mas era a terra deles".
"Senhor, nós mesmos somos descendentes de invasores e de povos escravizados e exterminados, creio que o senhor não ignora a história de nossos ancestrais. Eu durmo em paz".
Anton mirou os olhos azuis sinceros daquele velho homem e invejou sua fé no que não passava de um processo de morte e destruição de povos sempre substituídos por outros destinados ao mesmo fim.
"Mas que insensibilidade essa minha, Grigory, é seu último dia e aqui estou eu lamentando o que não pode ser lamentado. Slava Bogu!".
"Não senhor"- retorquiu Grigory- " eu o entendo bem, o senhor fez um bom trabalho. Tratar as cicatrizes muitas muitas vezes é mais pesado que abrir as feridas"
Grigory tomou o restante do líquido num só gole e estendeu a cratera a Anton, que lhe serviu mais uma dose.
"Proponho um brinde, caro senhor Anton, ao sucesso do que fizemos e ao sucesso do que o senhor fará. Cinco anos atrás eu também iniciei meu trabalho aqui com apreensões maiores, mas aqui estou, um homem limpo pelo trabalho, como um bom eslavo, sem arrependimentos e muita dedicação".
Anton invejou a grandeza daquele homem. Desejou estar à altura dele dentro de alguns anos.
Grigory terminou sua bebida, Anton já havia acabado.
"Está pronto, senhor Anton?"
Anton mirou a placa dourada com seu nome, suspirou fundo e então encarou Grigory com um sorriso sincero.
"Claro, senhor Grigory, será uma honra"
Grigory levantou-se, como seu antecessor fizera cinco anos antes, pegou a placa dourada e lançou-a no triturador. Em seguida apanhou uma pequena caixa que trouxera consigo, abriu e retirou de lá uma moldura com a imagem tridimensional do senhor Anton, que já se despia da toga de diretor, e a acoplou na parede ao lado da sua imagem.
Em seguida entregou a Anton a farda de faxineiro, sua insígnia e o escovão.
"Foi uma honra" - disse Grigory.
"Será uma honra" - respondeu ritualmente Anton.
Grigory e Anton deixaram a sala no momento em que o novo diretor entrara. Anton estava aliviado, Grigory sereno.
O faxineiro conduziu seu antecessor até a saída, ambos trocaram apertos de mão e desejos de saúde e sucesso. Grigory foi para casa, Anton foi limpar as latrinas. O novo diretor tomava canut.
Slava Bogu!
*Slava Bogu, "Graças a Deus" em russo e ucraniano : Слава Богу.
Nenhum comentário:
Postar um comentário