E no meu quadragésimo aniversário eu vi o mar.
Meu pai entrou com a caça pela porta, eu tinha oito anos, e jogou-a sobre a mesa. Os olhos...parecia que olhavam para mim.
Minha mãe disse algo para meu pai e tirou o animal da mesa. Tinha uma mancha de sangue que ela tentava limpar, a mancha está lá até hoje.
Todo dia, depois da aula, íamos até o rio. A gente nadava até que o estômago começasse a reclamar, então eu e o Luiz corríamos para casa, famintos como dois leões!
Luiz era meu irmão mais velho, bem, não tão velho assim, tínhamos menos de um ano de diferença. O bom disso é que crescemos mais como amigos do que como irmãos, e poucas vezes isso fez alguma diferença.
Luiz morreu antes de completar dez anos. Tinha chovido na serra. Estávamos no rio. Luiz nadava e eu estava deitado na grama olhando as nuvens. Eu dizia que queria ver o mar.
Um dos meninos da escola gritou. Descia uma tromba d'água. Eu levantei e gritei para o Luiz sair da água, tarde demais. Eu vi sua mão direita fora dá água, como se ele tentasse alcançar uma corda invisível. E depois só vi a água marrom. O corpo nunca foi encontrado.
Minha mãe nunca mais foi a mesma. Em dois anos ela estava morta. Meu pai vendeu o sítio e se mudou para a casa da minha avó. Ele arrumou trabalho na linha férrea, manutenção.
Passou a beber todo dia.
Um dia acordei no meio da madrugada. Meu pai chorava na sala. Ele estava com um retrato do dia em que ele e e mamãe se casaram. Ela estava tão linda e sorridente, como se a felicidade estivesse ali do outro lado da lente também sorrindo para ela.
Um dos homens da ferrovia veio chamar meu avô. Conversaram alguns minutos, eu vi pela janela meu avo balançar a cabeça. Ele entrou, olhou para mim e disse que precisávamos conversar.
Meu pai bebera muito naquela noite, até quase de manhã. Ele resolveu ir direto para o trabalho. Ele deve ter caído sobre os trilhos.
Sepultaram meu pai ao lado de mamãe num caixão lacrado. No túmulo havia três placas, embora só dois corpos descansassem em seu interior.
Conheci Helena num rodeio. Ela vivia na capital, estudante universitária. Filha do prefeito. Tão linda! Eu não lembrava de tanta beleza desde...minha mãe!
Me empurraram para dentro do cercado. O peão caíra e eu tinha que chamar a atenção do boi. Eu peguei o rabo do animal e fiz uma mesura. Minha cabeça estava em mamãe.
Helena olhava para mim e ria, ria muito. Não sei que tolice me deu. Esqueci que era o palhaço e saltei para cima do lombo do animal. Me agarrei aos chifres e apertei as pernas em suas costelas. Ele pulava. Helena ria muito, tão linda.
Então o céu rodou, eu voava pelo ar, as nuvens vinham ao meu encontro. Depois a terra. Eu subia, descia...
Acordei três dias depois.
Helena veio me visitar com seu pai.
O prefeito disse uma meia dúzia de coisas que eu não entendi. Eu só tinha olhos para Helena. Seu pai deixou o quarto e ela me olhou com uns olhos sorridentes. Disse que eu era louco.
Eu nunca mais voltara ao rio. Naquele dia eu e Helena estávamos sentados na grama. Eu contei sobre Luiz.
Eu nunca chorei. Não até aquele dia.
Nos casamos num mês de outubro chuvoso. Helena era meu dia, minha lua, meu sol e a força da minha respiração. Eu via Helena no céu e na Terra, Helena nas copas das árvores, e no traçado incerto dos pássaros no ar!
Nos mudamos para uma casinha de dois quartos que Helena mantinha brilhando.
Eu trabalhava no turno da noite da Metalúrgica Metaris. A pressão de Helena estava alterada naquele sétimo mês de gestação.
Encontrei Helena sem sentidos.
Fizeram uma cesárea. Seus olhos estavam baços, sem vida, nos dois dias em que ela esteve em coma...antes de me deixar. Helena deixou o mundo numa tarde nublada de novembro.
A pequena Silvia tinha os olhos da mãe. Ela ficava com uma tia de Helena enquanto eu trabalhava.
Passamos aquele verão com minha avó. Silvia tinha oito anos então. Minha vida nunca fora tão boa. Eu descobri a vida esquecendo-me da vida e vivendo para a alegria daquela menina!
Ela queria ver o rio.
A tarde estava ensolarada.
Silvia estava na margem. Eu disse para ela ter cuidado. A correnteza estava forte. Eu não tirava os olhos da minha filha.
Minha avó disse algo. Quando me voltei para o lugar onde estivera Sílvia eu não a vi mais.
A visão de todos os anos se sobrepôs numa imagem mórbida. O frio açoitava meu corpo, e a vegetação ao meu redor parecia morrer.
Sílvia gritou. Eu saltei para dentro d'água. Ela me abraçou e juntos saímos da água.
Ali na margem nós choramos abraçados.
Sílvia cresceu.
Silvia cuidou de mim até o dia em que fomos ver o mar naquele meu quadragésimo ano.
O céu estava tão azul e as ondas tão belas.
Naquele dia eu senti a paz com Luiz, minha mãe, meu pai e Helena.
A paz que me acariciava com o vento marinho.
Então o passado e o presente se tornaram um só coisa, e diante de mim só havia o mar!
O mar que refletia a metáfora ondulante de todos os meus dias.
E finalmente eu sorri!
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