quarta-feira, 29 de março de 2023

Dragão na Garagem


Dragão na Garagem Arruda pulou da cama assustado ao ouvir o barulho. Eram duas da manhã. Vinha da garagem. Foi um sonho, pensou. Ao encostar a cabeça no travesseiro, ouviu novamente. Tentou controlar o medo, o coração batia forte. Lá embaixo um objeto caiu. Prestando mais atenção, ouviu algo que identificou como bater de asas e alguma coisa áspera roçando nas paredes. Pensou em chamar a Maria, mas ela ressoava alto, melhor um perigo por vez. Pegou um porrete que sempre deixava embaixo da cama e desceu o lance de escadas. No andar de baixo, diante da porta que dava para a garagem, parou e tentou ouvir novamente. Estava lá! mas que diacho era aquilo, pensou. Um som estranho, como se alguém estivesse limpando as escamas de um peixe com uma faca, e asas batendo, e um som rouco de respiração. Havia também algo que o lembrou um fole de ferreiro que vira num filme. Qual a chance? Você deve estar dormindo, velho Arruda. Foi a pinga, só pode. Beliscou a barriga para ver se acordava. Ai! "Que você tá fazendo aí, velho maluco? Tá com diarreia de novo" - Gritou a mulher do quarto e virando para o lado já ressoava de novo. Não era um sonho. Tomou coragem, ajeitou o porrete no ombro e girou lentamente a maçaneta. Mal abriu um palmo, foi colhido por uma luz forte e chamas que atingiram a porta com o som de água sendo esguichada numa parede. Fechou com força. Meu Deus, tem um maluco com lança-chamas lá dentro! Correu para o banheiro, as sobrancelhas e o cabelo estavam chamuscados. "O senhor acha que tem alguém com um lança-chamas na sua garagem?" Foi isso que eu disse três vezes, manda a polícia e os bombeiros. "Mas o senhor está vendo fogo, fumaça ou ouvindo barulho de chamas agora?" Não estava. Na verdade, a madrugada só não estava mais silenciosa por causa do cachorro latindo longe e um galo adiantado. "O senhor faz uso de alguma medicamento ou consumiu bebida alcoólica?" Mas o que tem isso com chouriço? Arruda fazia uso de alguns medicamentos, informou, e tomou um copinho a mais de pinga depois do jantar. Mas queimara o cabelo, ainda sentia o cheiro e tinha as sobrancelhas. "Já falei que você tem que parar com essa pinga, seu velho louco". Disse Maria do sofá e atendente concordou do outro lado da linha. "Entendi, vocês acham que estou alucinando". "É", disse Maria. O atendente colocara o fone no mudo e gargalhava contando o caso para um colega. Maria tomou o aparelho, pediu desculpas e disse que ia cuidar do marido. Arruda contrariado olhava a porta fixamente. Eu vou lá! Pegou o porrete, ajeitou no ombro e dando dois passos abriu a porta de uma vez, deixando Maria exposta ao que quer que lá estivesse. Eles não viram nada, exceto uma leve fumaça azulada que parecia sair das paredes. Maria já ia apontando o dedo para Arruda quando ambos ouviram o barulho da escamação de peixe, uma respiração abafada e rouca e o bater de asas. E novamente as chamas surgiram do ar logo à frente, atingindo Maria em cheio. Arruda fixou bem o olhar para ver de onde veio o fogo assim que o clarão sumisse, mas não havia ninguém lá. Só então lembrou da mulher, mas onde ela estivera só havia uma pilha de fuligem, com o seu contorno certinho marcado na parede logo atrás. Arruda se jogou sobre as cinzas, desesperado, bem a tempo de evitar uma nova rajada. Ali encontrou o pé esquerdo de Maria ainda dentro do sapato. Arruda, cheio de ódio, pegou o porrete e arremeteu contra o ar. Girou o porrete no ar várias vezes, e ouviu o mesmo ronco, com as asas e uma chama aqui, outra lá. Mas o que eu estou fazendo? Maria já se foi, vou eu também? Arruda saiu da garagem fechando a porta com um estrondo que acordou a vizinhança. Enquanto tentava ligar novamente para o serviço de emergência, ouviu alguém bater à porta. "É a polícia". Bem depois Arruda estava sentado numa cadeira, algemado explicava que havia um dragão na sua garagem. "Mas eu não estou vendo nada". Ele é invisível. "E como o senhor explica que andamos pela garagem toda sem tocar em nada?" É que ele também é, como se diz? Ah, intangível. "As portas estavam fechadas, nós mesmos verificamos, só havia o senhor e os restos da sua mulher. Me diga, seu Arruda, como o senhor queimou o corpo desse modo?" Mas eu já disse, oficial, foi o dragão, olha aqui meu cabelo queimado. "É maluco!", disse o policial para seu colega e ao perito que tentava, inutilmente, descobrir a fonte do fogo ou algum resíduo de substância combustível. "Não tem jeito, vou levá-lo para a delegacia, lá o delegado que decida se joga numa jaula ou num hospício". Quando o policial conduzia Arruda para fora, pareceu ouvir um barulho na garagem. Era como alguém raspando escamas de peixe. "Bah, esse velho maluco me contaminou, um dragão, ora sim senhor, vinte anos de polícia e um dragão..." Foi o seu último pensamento antes de ser consumido até as botas, e não só ele como também o resto da equipe que ali estava. Só o Arruda, que saíra da casa com as mão algemadas para trás, escapara. Ficou ali, cercado por vizinhos e curiosos, olhando a fumaça se confundir com a névoa da manhã. Alguém perguntou o que ocorreu lá. Arruda virou o olhar vidrado para ele, baba escorria pelos cantos da boca, e disse: "Tem um dragão na minha garagem".




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