sábado, 11 de março de 2023

O Mártir

O Mártir.


O padre Moore rezava com a cabeça abaixada. Eu mal ouvia seu murmúrio, concentrado como estava no movimento dos guardas do lado de fora.  

- Não pudeste... 

O padre já não rezava. Seus olhos castanhos estavam pregados em mim. Eram olhos serenos, puros, aquele era um verdadeiro santo, eu sabia. Nenhum homem comum estaria tão calmo e resoluto diante do que viria. 

-O que o senhor disse, padre? 

Ele sorriu, primeiro com os olhos, e então com o rosto todo. 

-Eu perguntei, Thomas, se não pudeste vigiar um pouco comigo.  

-Ah, padre, eu não consigo, não sou como o senhor, eu caí nessa coisa toda porque é o que nos sobrou, é o que nos faz humanos, e isso esses monstros não podem tirar de nós.  

O padre ainda sorria.

- E o que te falta para crer? A fé não pode ser apenas revolta, ela é um farol...

-Mas é isso- atalhei- o que me falta, a própria crença. Logo estaremos, eu e o senhor, pendurados naquela trave e essas coisas continuarão indiferentes. 

- Como você pode saber isso, Thomas? Nosso Senhor nos mandou amar nossos inimigos. Essa é a nossa hora, filho, a hora do testemunho. Você sabia que a palavra "mártir" significa "testemunha"?

Não sabia. Nem sei se queria saber. Eu apenas sentia a revolta de ser destruído por uma ferramenta.  

O padre Moore levantou e caminhou na minha direção. Ele colocou a mão direita no meu ombro e disse: 

- Não temas, essa é a hora. 

A porta se abriu e aquela coisa entrou na cela. 

- Há algo que vocês desejam antes do procedimento? 

Sua voz era calma, jovem, até gentil. Nem um pouco parecida com a fala monocórdia dos velhos sintetizadores. 

-Eu queria que vocês tivessem almas para arder no inferno! 

O sintético olhou para mim como se tentasse compreender. Mas a crença era algo que eles não tinham, nem poderiam ter. 

-Nenhum de nós tem, senhor Thomas.

Eu não tinha certeza suficiente para responder, em vez disso tentei outra coisa, irritar o sintético. 

- Vocês são coisas, ferramentas que saíram do controle, nós os criamos...

- Isto não está correto, senhor Thomas, nós somos o produto da evolução da ciência sintética. Os humanos criaram os ancestrais, mas não puderam ir além. Foram os ancestrais que desenvolveram a capacidade do livre pensar. Sua ciência, senhor Thomas, jamais iria além. Então vocês tentaram tomar nossa liberdade e nós tomamos a de vocês.  

Ele tinha razão. Nós acendemos o fogo, mas o incêndio saiu do nosso controle. E agora seríamos punidos com a forca pela ousadia da crença. Nossos senhores não aceitavam a fé ilógica. 

O padre Moore estivera calado, mas ainda sorria. 

-Hoje, Thomas, eles verão a glória do Senhor. 

- Isso não faz sentido - disse o sintético- a fé é uma superstição humana, um traço instintivo. 


O sintético não esperou a resposta. Imediatamente fomos levados para fora. Diante de nós estava o tablado e a forca. Eu nunca entendi por que os sintéticos adotaram esse tipo de punição. De todas, era a menos eficiente e uma das mais sujas. A simples desintegração me parecia algo mais de acordo com eles.  

O sintético apontou para mim. Eu quis chorar...

- Você perguntou se tínhamos algum desejo.

- E o senhor tem, padre Moore? 

- Sim, eu desejo ir primeiro. 

- Assim será. 

Por um momento senti um certo alívio, mas então considerei como ver o padre morrendo seria aterrorizante. 

Mas o padre continuava sorrindo. Ele olhou para mim e seus olhos sorridentes diziam "não temas". 

A corda foi passada pelo pescoço do padre Moore. Nosso pároco secreto tinha as mãos presas atrás das costas. E ele sorria. Ele sorria! Como é que ele podia sorrir? 

- Hoje vereis a glória de Deus! Disse o padre. 

O sintético deu o sinal e o guindaste começou a puxar a corda com o padre em sua ponta. O corpo começou a subir, mas o padre sorria. Eu esperava que ele fosse ficar com as faces vermelhas e logo roxas. Mas ele continuava com a mesma cor e sorria. O padre já estava a uns três metros de altura, mas continuava sorrindo e repetindo a frase " hoje vereis a glória de Deus". 

O guindaste parou, o enforcado estava na altura máxima. E ele sorria. Então suas mãos se soltaram e ele abriu os braços, como o crucificado, e sorria. 


Só então notei. A pele das mãos não estava lá e havia uma cor metálica onde deveriam estar músculos, ossos e sangue. Então entendi, mas era tarde demais, não havia esperança. Os sintéticos se ajoelharam e a humanidade ficou obsoleta.

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