quarta-feira, 4 de março de 2020

O Causo dos dois Meninos e do Burro




Sente aí guri. Que bom que veio hoje, lembrei um causo que meu avô me contava. Causo antigo, dizia ele, que vinha do avô dele, história perdida nas distâncias, você sabe. Aconteceu não se sabe quando, mas vai para mais de dois séculos, coisa antiga, mas pode também ser menos, porque se a gente olhar bem, os tempos de menino do meu avô em nada diferiam dos tempos de menino do avô dele.

Existia um caminho que já era conhecido dos índios, o tal do Peabiru, ainda falam disso na escola, pelo menos ainda falavam nos dias do meu neto, se bem que nem ele criança é mais. O tempo não espera pela gente! Hoje índio virou outra coisa, nem se acata mais que nossa cultura mesma é um tanto fruto das experiências deles com a vida, povo sábio nos seus saberes! Mas nesse antigo caminho se formou uma rota que levava muares e gado lá dos confins dos pampas gaúchos, que é onde se criavam com mais liberdade, para serem vendidos em São Paulo. É que em Minas se explorava ouro, e os garimpeiros vinham comprar seus necessários numa feira que se fazia nessa cidade. Esse caminho era longo e havia muitos locais de parada, um deles, o que nos toca, era aqui mesmo nesse largo, veja só! Curitiba, naquela época, era só uma vilinha num rincão esquecido do sul de São Paulo. Pois ainda iam uns anos pela frente antes de criarem o Paraná.

Eu sei, filho, me alongo muito. Vejo por estes teus olhos que preferes a ação aos detalhes, mas a gente aqui gosta de dar os contornos, de aclarar os contextos, que é para dar mais exatidão aos causos. Porque a gente sabe da nossa cultura, da nossa terra e do nosso povo. Que não é como umas gentes modernas que não têm raiz, que não sabem de onde vieram e nem se preocupam para onde estão indo.

Pois bem, nesse tempo a piazada tinha por brinquedo ir olhar a procissão do gado entrando e saindo da cidade. Do grupo dos piás, dois são o foco da nossa história, um Zézinho filho do dono da venda, que é como a gente chama aqueles armazéns que vendem de pinga no copo a retrós de linha, de um tudo, como dizia meu nono, palavra que os colonos de Europa dão para os seus velhos, e que nós, cultura que tudo misturou de bom, emprestou e depois fez nossa, como fizemos com os índios tupis que aqui primeiro moraram, nossos nonos na distância, e nos costumes que a gauchada que vinha dos pampas ia trazendo e deixando por aqui, como o chimarrão e o churrasco. Não te assuste, estudei e tirei letra, mas não perdi o cheiro do povo. O outro menino era o Miguelzinho, um mulatinho de olhar vivo e muito cheio de curiosidade, que tudo perguntava, que tudo queria ver, como se tivesse a alma dum gato ido parar num corpo de gente. Que me perdoem os kardecistas, mas nesse ponto me alinho com o povo lá do oriente, os que são os índios de verdade, pois que vivem nas Índias das aventuras lusitanas. Mas aí nesse ponto já me vem uma dúvida, e pode ser que tal doutrina se tenha lá no meio da África, que seja.

Os dois, muito curiosos, firmaram a cobiça sobre um burrinho muito vistoso que tomava água da fonte. O dono, um gaúcho de Viamão, tomava despreocupado uma cuia de chimarrão sentado num caixote, sorvendo o líquido quente e lagarteando ao sol de inverno que ia expulsando o brancor da geada. Um prazer que só quem mora nesse planalto conhece, do chimarrão ir aquecendo as entranhas e o sol empurrando para longe a frieza dos ossos.

Assim que o muar terminara de beber, se acercaram dele os meninos, sob a vista divertida do gaúcho. Miguelzinho se pôs ao lado do bicho e o Zézinho simulou um estribo com as mãos. O guri, que é outro termo dos gaúchos, firmou o pé e foi-se fazer à garupa do burro. Nisso a peãozada já fixara o olhar na cena, esperando o espetáculo. O dono já se ria para dentro, quase jogando chimarrão pelas ventas. O moleque, palavra africana, se fixou na garupa do animal, que zurrou desconfiado. Levantou as orelhas enquanto o peãozinho socava com os pés os lados da sua pança. O bicho, parecendo lembrar da natureza do onagro de onde descendia, levantou as patas dianteiras um meio metro do chão, mas o guri agarrado nas suas orelhas não se deixou ir ao chão. Os homens já ensaiavam o riso, mas o animal, lembrando-se que era burro domesticado e não asno selvagem, pareceu aquietar-se. Zézinho, animado pelo companheiro, pulou para a traseira do burro, indo aninhar-se colado ao corpo do amigo. Foi nessa que o onagro voltou, e o bicho zurrando alto e de contínuo se fez em reviravoltas. O dono, que agora já perdera a graça, foi tentar por calma ao animal. Mas este saltava e zurrava, parecendo que o próprio demo o ia animar. Os dois meninos, ora gritavam de euforia, ora pediam graça à virgem. O bicho degringolou pela praça, e já não era sozinho, mas a bicharada, no meio do desespero dos peões, ia se juntando à debandada.

Ali perto ia uma mulher, das bem pesadas, com uma vasilha cheia dos excrementos da madrugada, é que nesse tempo o povo tinha esse costume, de todos fazerem os seus necessários numa bacia grande que de manhã era levada para fora. Porque nosso povo nunca foi como os de Europa, de esvaziar os penicos nas calçadas. Não me entenda mal, já se faziam as casinhas, as privadas, mictórios, no quintal, mas então os invernos eram rigorosos e o povo tinha medo do lobisomem, de fantasmas, do véio do saco, e de todos os monstros que rondam a mente do povo. Miguelzinho e Zézinho já se arrependiam da sua traquinagem, mas agora nem era a cinta dos pais que temiam, mas a dureza do chão, por isso mais o primeiro apertava as orelhas do bicho e mais o segundo se segurava no primeiro. E na ânsia de parar logo a aventura, Miguelzinho batia com os pés na barriga da cavalgadura involuntária, sem saber que com isso fazia o bicho correr mais ainda. Por pouco não atropelam a mulher, mas a vasilha foi se fazer ao ar, lançando seu conteúdo em todas as direções, indo um bom tanto cair sobre a cabeça de uma outra senhora que se apressava a fugir da bagunça, indo, como sempre ia, à reunião das senhoras da novena de Nossa Senhora. Essa segunda mulher, meio cega por um tanto de fezes que lhe turvavam a vista, foi cair para dentro de um comércio, exatamente sobre a cesta onde ficavam os pães. Veja que a aventura, nesse ponto, ia ficando perigosa.

O centro da cidade já estava tomado pelo estouro dos animais, e ninguém sabia como parar com aquilo. Os meninos já não rezavam, mas gritavam de desespero. Foi quando o bicho se pôs na direção da parede da igreja, e quando parecia que ia bater, estacou de repente, fazendo os dois irem aterrissar numa touceira de mato, incólumes. Como se fosse por mágica ou como se o burro de fato fosse o líder dos outros animais, todos pararam. Ao redor havia muita coisa quebrada, e um cheiro de fezes que impregnava tudo e todos. Mas machucado mesmo estava o brio dos meninos, além de seus traseiros.

Deitada a calmaria, se acercaram dos meninos os moradores da região, os peões e o dono do animal, que pastava calmamente na mesma moita. Zézinho cutucou (outra palavra dos índios) o companheiro Miguelzinho. Agora é que as coisas iam ficar feias, isso sim, pensavam os meninos. Mas como sei que pensavam? E o que pensaria um moleque pego em traquinagem? Pois pense, não é só na alta literatura que tem dessas coisas e uns piás atiçados pelo cão como estes dois. E digo até que Tom Sawyer não era mais arteiro que eles.

Na frente estava o gaúcho, de quem a história não preservou o nome. E por trás uns rostos fechados, cheios de vontade de vergar umas varas de marmelo naqueles lombos infantis. O ar descia como pedra pelas gargantas dos traquinas. O gaúcho fechou mais a cara, fazendo os olhos sumirem por baixo das sobrancelhas hirsutas, que quase tocavam a testa do bigodão. Mas logo a severidade se afrouxou e o homem caiu numa gargalhada que fez dançar as bombachas por baixo da pança inchada. E do homem o riso passou aos outros peões e destes foi contaminar o povo. E o riso foi subindo num crescendo até que aos poucos já rolava pelo chão quem nem da correria sabia o começo ou a finalização. Uns tantos daqueles peões rolavam pelo chão, o gaúcho já deitara ao lado dos meninos, as mãos na pança, as pernas para cima, como um besouro tombado. A primeira velha, a da vasilha, cobria a cara com a ponta da saia de chita, já desfeita dos seus pudores, se os havia, mostrando as roupas de baixo, mas protegendo a boca vazia de dentes. A segunda velha ria e soluçava, com uns espasmos estranhos a cada passo, de modo que em cada daqueles ciclos fossem arrojados uns pedaços do barro intestinal para os lados. Um homem jazia de barriga para baixo, bem em cima da lama que se formara, sem com isso atinar. E os que viam a cena, mais graça achavam, aponto de estourar botões e pregas das calças.

Os meninos, sem nada entender, foram-se de mansinho se esconder da multidão. Mas ninguém mais ligava para eles, e diz-se que ninguém mais se lembrava da razão daquele riso. Sabe-se que aquilo durou um dia inteiro, e houve até o caso de um padre que veio de outra freguesia e que era capacitado nos rituais do exorcismo para ver se era espírito do mal que ali se manifestava. Mas o dito, o padre, não o cão, foi só entrar no largo e deu-se com a cara no chão já fumado daquela estranha euforia. As autoridades, não vendo solução, meteram o povo todo numa quarentena, ninguém entrava ou saía. Mas o certo é dizer que não entrava, porque sair não saía nada, tal a prostração do povo pela risada.

No finzinho de tarde baixou um frio daqueles, e não se sabe se por ele ou porque o efeito já se ia amainando, deixou o povo de gargalhar. E ia um depois do outro levantando meio envergonhado, uns cheirando mais que outros, e indo-se pôr à distância ou entrando rapidamente cada qual em sua casa.

No dia seguinte o povo estava meio amuado, mas a vida foi-se fazendo normal. O gaúcho já deixara a cidade com peões e a amimalzada para deixar espaço a outros que iam subindo. A velha da vasilha de merda fez como em todos os dias, havia pão fresco à venda, sem cobertura inusitada, e na igreja as mulheres já entraram nas rezas, agora com mais vontade. Dos meninos não se falou, aliás, parecia até que aquilo que fora o estopim de tudo fora esquecido ou ignorado. Os piás, é certo, saíram isentos,mas não esquecidos, principalmente pelo resto da piazada do lugar que logo trataram de vingar os adultos pejando-lhes, aos meninos, com tudo quanto é infâmia que só um moleque sabe inventar.

Nos anais oficiais nada se diz do incidente, exceto por uma nota dos soldados que no dia estavam de serviço dando conta de uma agitação qualquer por estar o povo muito enfezado. A nota não explica, mas a ambiguidade tudo diz, coisas de Curitiba. Os piás continuaram piás, apesar dos outros, mas um tanto mais responsáveis. Dizem que até se tornaram bons cidadãos, de modo que disso se tira que nem sempre o castigo é o melhor corretivo, a alguns basta-lhes sentir o peso, e o cheiro, dos seus erros.

Mas um problema persiste até hoje, e esse com aqueles que se ocupam de contar esses causos, se se deve chamar a bagunça de Pandemia do burro, dos piás, do riso ou da merda. Tanto seja, tanto não seja, eu já vou terminando, que essa história aqui é para entreter os ouvidos e não para virar livro. Tome mais uma cuiada, antes que erva perca o gosto e a água esfrie. Seja.






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