quarta-feira, 30 de outubro de 2019

E se eu dissesse "bastei-me"...

E se eu dissesse "bastei-me"?
Teria que lidar com acusações de misantropia
Eu que sofro por amar os seres humanos
Nem todos
É ousadia demais ser solitário numa espécia social
Somos abelhas? Formigas?
Macacos pelados correndo na selva de pedra
Inchados gânglios linfáticos
livrando o corpo da infecção das multidões
Conheci um homem que vivia numa caverna
Cercado de mato, animais e pedras
Um asceta suspirando de saudades
Que não me deixava ir sem contar
Até das variações pelo vento nas folhas de seus
Pés de couve
O homem mais livre do mundo vivia numa cela
Não obrigue uma galinha a voar
Elas até voam por pequenas distâncias, mas muito mais
Desgraciosas que um pardal
Mas mesmo as galinhas sentem necessidade de voar
Não como aquele homem que confundiu
Uma carência momentânea
Com todo um estilo de vida
Triste sina dos pardais obrigados a serem galinhas
O ser humano olha longe, e não vê o que se aninha perto
Uns correm com lobos, sendo lobos
Outros nadam com os peixes, sendo sapos
Deixei minha caverna ainda ontem
Fui ver o que as mulheres diziam no mercado
E os homens nas plantações de cana
Entre um trago de cachaça e uma baforada de fumo
Senti saudade
Da caverna, do céu, das pedras e das folhas
Balançando ao som do vento, um canto
Meu canto
Vazio de todo aquele vozerio que não dizia nada
Do vozerio aflito das galinhas
Inconscientes da faca afiada
E temerosas de tudo, de nada
A caverna é meu voo
E o silêncio meu sermão
Pregado nas alturas
De uma existência de pardal
Que a si mesmo se basta.

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