quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O Cristianismo Primitivo e os Estados Organizados

Há muitas visões conflitantes entre os diversos grupos cristãos sobre como a política e o Estado devem ser. Mas numa coisa quase todas concordam: defender que sua visão da fé e suas práticas estão de acordo com os textos bíblicos e são conforme o que se praticava entre meados do primeiro e do segundo séculos, o que geralmente se chama "cristianismo primitivo".
O cristianismo não surge como uma religião, mas como uma das vertentes do judaísmo do primeiro século, que é muito diferente do judaísmo moderno. A nação judaica, Israel, era uma teocracia, embora naquele momento fosse domínio romano. A lei civil, portanto, era a lei de Roma, mas as instituições judaicas, com algumas exceções como a pena de morte, tinham alguma liberdade. É claro que isso é uma aproximação, o período era bem mais complexo, havia uma monarquia "herodiana" (idumeus, não israelitas), um governador romano, um sinédrio judaico (um senado judaico), etc.
O que as pessoas daqueles dias esperavam era um Machiach (Messias, um "ungido", ritual pelo qual eram consagrados reis, profetas e sacerdotes) que congregasse em si as funções religiosas e civis, assumindo o trono de Davi, o rei mítico (não no sentido de não ter existido, mas de ter se tornado lendário), reunificando e expandindo o território até os limites do que fora prometido aos patriarcas antigos, propiciando a "Aliá" (retorno) dos israelitas espalhados pelo mundo, submetendo os poderes terrenos e trazendo uma era de paz e justiça ao mundo.
O "mundo" então era romano, mas seu arcabouço cultural era o helenismo, movimento político-cultural iniciado nos dias de Alexandre Magno. A língua franca era o grego "coine", comum, que era uma variedade padronizada de diversos dialetos gregos. Nessa língua foi escrito o Novo Testamento. Localmente, entretanto, a cultura era semita, a língua do povo era o aramaico e a língua da alta cultura religiosa era o hebraico, semelhantes como o são o português e o francês.
Yeshua (Jesus) iniciou suas pregações nesse contexto histórico. Sua pregação tinha três "vertentes": a rabi leigo judeu com sua sabedoria e interpretação das escrituras hebraicas; a do taumaturgo (quem opera curas ou faz milagres) itinerante e profeta apocalíptico. Já antes de Jesus existia entre os judeus uma seita ou partido com essas características, os essênios. A marca principal dos essênios era sua separação do poder terreno, que eles consideravam corrompido por Satanás. Mesmo assim tinham consciência de que como "Verdadeiro Israel" precisavam viver entre o poder terreno e cumprir suas leis, tanto é que mandavam suas ofertas ao Templo construídos por Herodes, o Grande.
O cristianismo, que ainda não tinha esse nome, seguiu esse caminho. Jesus ensinava que o seu reino não era desse mundo (João 18:36), que havia um campo de César (modelo do poder terreno) e um de Deus ( Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus, Mt 22: 21). Desse modo ele ensinou que convém cumprir as obrigações civis nesse mundo. O cristão, quando a ordem legal não contraria sua fé, deve respeitar os poderes instituídos "(...) porque não há potestade [poder] que não venha de Deus; e as [poderes] potestades que há foram ordenadas por Deus", Romanos 13:01.
Quer dizer que o cristão deveria "sair do mundo" e não atuar de modo algum na sociedade? Não, pelo contrário, ele deveria ser justo em tudo o que fizesse, pois:
"(...) quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus". 1 Coríntios 10:31
Esse "tudo" engloba toda atividade humana, mesmo o governar em sentido amplo:
"Mas não sereis vós assim [como os que governam com autoridade] ; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve". Lucas 22:26
É uma ética muito elevada, que orienta a ação cristã para o bem da sociedade, mas não implica em imposição de valores ou visões. Na realidade cristã, a pessoa não impõe pelas palavras, ela conduz pelo exemplo.
"Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus". Mateus 5:16
Esse é o sentido de ser "sal da Terra e Luz do mundo". Ao mesmo tempo em que se consideram "estrangeiros e peregrinos na terra" (Hebreus 11:13), os cristãos são instados a influenciar o mundo e seus sistemas como seu modelo elevado de justiça.
Muitas pessoas na história se guiaram por esses valores, e puderam, com essa luz, ser bons estadistas, políticos que serviram sua geração, assim como muitos outros, assenhoreando-se dessas ideias apenas no discurso, ou por uma visão corrompida, mancharam sua herança cristã misturando uma ideologia terrena, quando não suas próprias ambições, com as ideias elevadas do evangelho.
Será que tal visão ainda pode ser uma guia eficiente para as pessoas de hoje?

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