Você acorda de manhã e corre para o banheiro. Do espelho um
desconhecido acena para você, um velho desconhecido com o rosto vincado e o
olhar mortiço. Nos seus olhos um movimento oblíquo que lembra saudade e desespero, dor e desesperança.
Você lembra dos seus amigos, de quando você tinha amigos,
mas um deles, o melhor, fugiu para Londres num velho trem cargueiro que
atravessa o oceano deixando uma nuvem de velhas desgraças e fumaças exalando
antigos fantasmas. Um outro amigo mudou de sexo em Miami e de você só quer o
desejo e o dinheiro, mas dinheiro você não tem e o único desejo que você tem
para com seu velho amigo é o desejo de
tomar umas duas ou três cervejas geladas...
Só que a única coisa gelada em suas mãos é a velha lápide
que você furtou do cemitério, ela e algumas placas de chumbo que falam de
pessoas esquecidas.
Você lembra da loirinha que te acenava do pavilhão de cima e
que marcou um encontro com você na praça. Mas ao vê-la você permanece
impassível, não há desejo, o velho desejo pela loirinha perdida nas janelas de
cima. Ela senta, cansada dos 98 anos que carrega, de saudades e de desilusões.
Um cão, você tinha um cão, mas seu cão foi levado por eles e
tudo porque ousou nascer daquela maldita raça proscrita. Eles o mataram numa
câmara de gás e ele, nos seus bestiais gemidos, chamou por você e seu nome
ecoou na fumaça umas dez mil vezes. Colocaram
uma grande estrela amarela no seu cão e ele a arrastou em meio às cinzas
chamando por você. A estrela e as correntes amareladas pelo foco.
Você lembra de um livro que leu, lembra de ter lido, era um
romance, mas não lembra o que leu. Seu livro era louco, começava pelo fim e o herói morria logo no começo, ou seria
no final? Você nunca ficou sabendo.
Uma vez você amou, mas ela o trocou pelo próprio marido,
aquele que lhe fizera seis ou sete filhos. Filhos que fizeram os seios de sua
namorada se comportar como velhos balões de festa murchos. E você chora, chora porque sonhou tantas
festas nos seios murchos de sua velha namorada, velha como a loirinha na praça
e como as velhas lápides que furtou de madrugada. Então você percebe que sua
namorada era a loirinha, e que ela foi seu amigo, e que as lápides eram do
túmulo dela.
Você ainda está em casa, é de manhã, e no espelho apenas a velha
cara cansada de quem tomou mais que uma dúzia, ou várias dúzias de cervejas
pela madrugada. Porque é isso que você faz, viola túmulos e velhas mortas, e
gasta seu dinheiro maldito tentando esquecer no álcool todos os pecados que
teimam em continuar fluindo através de você.
Você é bom demais!!!!!!!!!!
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