quarta-feira, 10 de abril de 2013

Delírios diante do espelho



Você acorda de manhã e corre para o banheiro. Do espelho um desconhecido acena para você, um velho desconhecido com o rosto vincado e o olhar mortiço. Nos seus olhos um movimento oblíquo que lembra saudade e  desespero, dor e desesperança.

Você lembra dos seus amigos, de quando você tinha amigos, mas um deles, o melhor, fugiu para Londres num velho trem cargueiro que atravessa o oceano deixando uma nuvem de velhas desgraças e fumaças exalando antigos fantasmas. Um outro amigo mudou de sexo em Miami e de você só quer o desejo e o dinheiro, mas dinheiro você não tem e o único desejo que você tem para com seu velho amigo é o desejo  de tomar umas duas ou três cervejas geladas...

Só que a única coisa gelada em suas mãos é a velha lápide que você furtou do cemitério, ela e algumas placas de chumbo que falam de pessoas esquecidas.

Você lembra da loirinha que te acenava do pavilhão de cima e que marcou um encontro com você na praça. Mas ao vê-la você permanece impassível, não há desejo, o velho desejo pela loirinha perdida nas janelas de cima. Ela senta, cansada dos 98 anos que carrega, de saudades e de desilusões.

Um cão, você tinha um cão, mas seu cão foi levado por eles e tudo porque ousou nascer daquela maldita raça proscrita. Eles o mataram numa câmara de gás e ele, nos seus bestiais gemidos, chamou por você e seu nome ecoou na fumaça umas dez mil vezes.  Colocaram uma grande estrela amarela no seu cão e ele a arrastou em meio às cinzas chamando por você. A estrela e as correntes amareladas pelo foco.

Você lembra de um livro que leu, lembra de ter lido, era um romance, mas não lembra o que leu. Seu livro era louco, começava pelo  fim e o herói morria logo no começo, ou seria no final? Você nunca ficou sabendo.

Uma vez você amou, mas ela o trocou pelo próprio marido, aquele que lhe fizera seis ou sete filhos. Filhos que fizeram os seios de sua namorada se comportar como velhos balões de festa murchos.  E você chora, chora porque sonhou tantas festas nos seios murchos de sua velha namorada, velha como a loirinha na praça e como as velhas lápides que furtou de madrugada. Então você percebe que sua namorada era a loirinha, e que ela foi seu amigo, e que as lápides eram do túmulo dela.

Você ainda está em casa, é de manhã, e no espelho apenas a velha cara cansada de quem tomou mais que uma dúzia, ou várias dúzias de cervejas pela madrugada. Porque é isso que você faz, viola túmulos e velhas mortas, e gasta seu dinheiro maldito tentando esquecer no álcool todos os pecados que teimam em continuar fluindo através de você.

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