sábado, 2 de março de 2013

Destino: Amor.


Espelho!

A imagem dizia tudo, ele precisava de mais algumas horas de sono. Isso era hora de começar a divagar? Jogou água no rosto, escovou os dentes com pressa e correu para a garagem buscar a bicicleta.

Ele voava entre os veículos parados no congestionamento, era assim toda manhã. Chegou à universidade, checou o relógio, estava dez minutos atrasado. Prendeu a “amiga” e correu pela porta aberta. Subiu um lance de escadas e entrou esbaforido na sala. A aula já começara. O professor olhou para ele, sem interromper o que dizia, e levantou a sobrancelha direita, sua marca registrada.

Renan pediu desculpas e sentou, cinco minutos depois estava dormindo.

Era quase meio-dia. Renan corria pelo corredor. Livros voaram. Ele ajeitou os óculos e pegou o boné do chão. Batera em alguém, uma moça. Seus olhos encontraram os dela, a desculpa ficou presa na garganta, ele tentou balbuciar algo, mas só via os olhos. Incríveis olhos verdes,vivos como a descrição de uma campina do meio-oeste americano que vira num livro do Mark Twain.

-Des..desculpe.

Ela fechou cara, ele se preparou para um “idiota” ou mesmo um tapa na cara. Mas ela abriu o sorriso e disse:

-Tudo bem, eu estava distraída, nem te vi senhor apressadinho- e deu uma gargalhada gostosa.

Renan sentiu as pernas moles, até esqueceu-se de levantar, mas Helen já estava em pé e estendia uma mão para ele.

Ele ficou em pé, ela já tinha apanhado os livros. Passou por ele sorrindo. Renan ficou olhando enquanto ela sumia pelo corredor.

No dia seguinte ele andava pelo corredor, bem devagar, não deixara de pensar na moça, sabia seu nome, que curso ela fazia e qual a sua idade, mas não sabia se a veria de novo, se ela o havia notado ou se fora apenas educada. Essas meninas da psicologia eram assim, parece que viviam nas nuvens embalando anjinhos barrocos.

A barriga estava roncando, não tinha mais tempo, correu para o RU. Sentado, comia vorazmente a refeição industrial, nem parava mais para reparar no gosto, ou na ausência de um gosto reconhecível. Não havia amigos com ele na mesa, havia alguns desconhecidos bem próximos. Ele tinha poucos amigos, era totalmente focado. Na infância fora diagnosticado com um tipo leve de autismo, o que, pensava sua mãe, explicava o comportamento solitário. Fora isso ele era um rapaz de 19 anos igual aos outros.

-Oi!

Helen estava sentada à sua frente – incomodo?- perguntou.

-Não, pelo contrário.

Ela deu aquele seu sorriso, ele ficou absorto naqueles olhos hipnóticos. Ele tossiu, estava engasgando. Helen deu a volta pela mesa e segurando-o pelas costas aplicou a manobra de Heimlich, ele expeliu um pedaço de carne sobre a mesa. Ela olhava preocupada para ele e perguntava se ele estava bem. Algumas pessoas em volta riam dele. Renan estava muito envergonhado, ele pegou suas coisas e correu para a porta.

Era madrugada, ele estava apoiado no parapeito, olhava a lua cheia e suspirava. Longe um cão latia, um carro passava a alta velocidade e um bêbado cantava um samba apoiado a um poste de iluminação.

Precisava conversar com ela.

Helen estava apoiada na mureta da cantina, lia o “Mal Estar na Civilização” de Freud. Ele a observava. Queria ir até lá e puxar conversa, mas sentia medo e não encontrava as palavras certas. Ele tremia. Resolveu tentar a sorte, quando se aproximava dela viu outro rapaz chegar e abraçá-la. Ela olhou ternamente para o rapaz, um moreno atlético com sorriso amplo, e deitou a cabeça sobre seu ombro.

Renan sentiu os olhos cheios de lágrimas e saiu antes de ouvir Helen chamar o rapaz de “maninho”.

Ele andava chateado havia dias, olhava para o solo. Passou despercebido, ninguém notou.
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O sol está a pino, Renan está pendurado a setecentos metros de altura, faltam uns cinquenta metros para o topo. A noite desceu na montanha, ele está sentado numa pedra olhando as luzes da cidade mineira lá embaixo. Cinco anos desde a faculdade. Ele é um engenheiro eletrônico em férias fazendo o que mais gosta, alpinismo.

O ar está fresco, ele pensa na sua vida solitária, gosta dela. Lembra da última e única vez em que se apaixonara e pensa em quão diferentes as coisas poderiam ter sido. Ele afasta esse pensamento, gosta da vida solitária, gosta de buscar seu caminho sozinho e gosta de não ter alguém nos seus calcanhares dizendo o que ele tem que fazer. Mas os olhos, aqueles olhos verdes...

A manhã chegou, ele está preparando seu café, suco e biscoitos integrais. Algumas pessoas sobem pela trilha ao lado do paredão, são três ou quatro. Quinze minutos depois eles estão junto dele. São dois casais. Eles o cumprimentam, ele responde com um leve movimento de cabeça. Perguntam se ele não se importa que eles acampem por ali, ele não se importava.
Então seus olhos se cruzaram e aquela sensação retornou, eram verdes, era Helen. Ela sorriu, ele deu um meio sorriso sem graça.

Noite. Ele estava na barraca, poucos metros adiante Helen estava com o namorado. Ele ouvia, eles faziam amor.

A manhã nasceu novamente. Havia só duas barracas na montanha.
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Renan prendeu sua “amiga” e entrou atrasado na empresa.

Havia alguns papéis na sua mesa, um deles dizia que ele tinha uma entrevista no setor de psicologia da empresa, um procedimento de rotina.

Ele aguardava a sua vez, havia outros funcionários por ali. Eles foram sendo chamados um a um. Chegara a sua vez.

Ele entrou na sala, havia duas pessoas, a psicóloga e uma moça. Ele sentou em frente à mulher pensando no trabalho que deixara em seu setor, nem ao menos reparou na fisionomia da moça. Respondeu mecanicamente algumas perguntas, até com um pouco de enfado.

A psicóloga o liberou para sair com recomendações e que ele marcasse uma hora para conversar com mais calma e indicou a outra moça como a nova responsável pelo setor, já que ela estava se aposentando.

Nesse momento ele olhou para a outra moça, os mesmos olhos verdes.
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Renan saíra da empresa, agora trabalhava na filial de uma outra, espanhola, de exploração e pesquisa subaquática, ele era responsável pelo setor de desenvolvimento e manutenção dos equipamentos. Como algumas das ações realizadas pela empresa eram realizadas em águas profundas, foi necessário desenvolver suas próprias ferramentas de exploração. Na verdade a empresa já contava com uma boa lista de equipamentos patenteados, além, é claro, dos resultados diretos das pesquisas. No momento eles trabalhavam para o governo australiano e procuravam por variações na fisiologia dos corais jovens.

Renan sentia o vento marinho na face, era um dia quente. Longe as gaivotas imprimiam sua forma contra o céu azul. Ele controlava um pequeno submarino robô. Um dos seus auxiliares lhe disse algo no inglês peculiar da Austrália, ele olhou para o homem, um descendente direto dos primeiros moradores do continente, um aborígene.

Ele olhou para o homem que apontava para algo na água. Uma lancha estava cruzando a rota do pequeno robô que estava bem perto da superfície. Renan submergiu o robô bem a tempo de evitar o choque. A lancha parou a poucos metros do barco de pesquisa. Um homem de meia idade, provavelmente alemão, perguntou algo a respeito da barreira de corais. Renan respondeu num inglês impecável. Havia uma mulher no convés da lancha. Ela tinha olhos verdes.
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Renan estava de volta ao Brasil, agora vivia em Curitiba. Ele estava no Largo da Ordem, havia muitas pessoas por ali, era uma festa popular. Com o tempo ele aprendeu a simular algo de sociabilidade e se tornou um pouco menos solitário. Até tivera alguns casos amorosos, nada sério.

Estava agora com trinta anos, mas parecia ter menos. Era atlético e não usava mais óculos. Entradas começavam a se formar na sua fronte e seus cabelos começavam a mostrar os primeiros fios brancos.

Ele se perguntava o que viera fazer ali, não era, de modo algum, chegado a festas. Quando tinha uma necessidade física apelava para sites de relacionamento ou, no máximo, ia a algum shopping.

Um rapaz tocou uma corneta bem perto dos seus ouvidos.  Ele sentiu vontade de socar o sujeito, mas controlou-se. Tinha que dar licença para alguma alegria na vida, apenas sorriu.
Procurou um dos bares do local e pediu um suco de acerola. Duas mulheres fantasiadas de ciganas entraram no bar.

Elas sentaram na mesa em frente. Ele sentia que elas o observavam, mas não estava nem um pouco com vontade de interagir com outros membros da sua espécie, não hoje. Ele se concentrou no suco e nas ideias que andavam pela sua mente, no seu empreendimento na capital paranaense e na sala comercial que visitaria na segunda-feira.

Uma das “ciganas” aproximou-se da mesa e perguntou:

-Posso ler sua mão?

Sem olhar para ela ele acenou negativamente com  a cabeça, mas fez isso sorrindo.
-Você não acredita em destino?

-Não- respondeu- acredito em causas e efeitos, mas não em destino.

Nesse momento ele levantou os olhos para a “cigana”, era uma desconhecida, mas a pessoa que a acompanhava...

-Minha amiga pode sentar aqui com você?

Antes que ele respondesse Helen estava sentada, ela sempre agia assim, e sua amiga voltara para a outra mesa.

Ela continuava linda e seus olhos possuíam a mesma vivacidade de anos antes. Ele começou a se perguntar se o destino não era uma realidade. O verde daqueles olhos...

Ela sorriu. Ele não disse nada, mas seus olhos disseram muito com as pequenas lágrimas quentes descendo pela sua face.
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É fim de tarde, Renan e Helen caminham de mãos dadas pela areia. Eles não dizem nada, mas há tanto afeto na forma como caminham. O vento que sopra do mar faz os cabelos de ambos esvoaçarem, muito mais os dela. De vez em quando eles param, se beijam e ficam um bom tempo abraçados.

Platão estava certo quando disse no Banquete que as pessoas passam a vida inteira buscando sua alma gêmea, ou as coincidências românticas não passam de choques imprevistos no tecido da aleatoriedade que rege as vicissitudes da existência humana?

Renan não está mais preocupado com isso, para ele existe uma moça de olhos verdes que o acompanha há muito tempo e ela é a imagem de algo que ele buscava sem saber, um outro alguém no mundo para dividir a jornada.




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