Era uma tarde rubra, uma bela tarde de verão
Os animais pastavam alheios no campo
As aves chilreavam nos galhos frondosos dos velhos cedros
Enquanto os homens cuidavam de descansar o corpo cansado
Depois das fadigas daquele dia, como era o tempo...
Ele lançou as mãos calosas nas suaves curvas do violão
Cuidadoso como o apaixonado na primeira noite com a amada
Da garganta puxou um som rouco chamando os homens à reunião,
E envolto nos olhares ansiosos, dedilhou-lhes uma canção:
Eu tinha treze anos, num tempo em que isso era ainda uma criança
E vivia enlevado pelas doçuras que a aurora ocultava
Com os olhos perdidos na longincua curva celeste
Porque naquele coração infantil despontavam cicios de amor
Marli era o nome da moça desse amor
Moça feita aos dezesseis anos cujo semblante respirava
Os primeiros raios de sol da fria madrugada
Cujo corpo bem formado os olhares masculinos seguiam.
Ah, como era doce a Marli
Suave como a volta do vento
Esplendorosa como a coroa solar
Daquele olhar castanho
Cheio de verdades e sonhos
Que me deixavam maluco.
E todas as tardes eu me postava na varanda da minha casa
Para ver a Marli passar,
Pois ela era dessas moças que queriam ser "p'ra frente"
Logo que pode começou a trabalhar.
Foi um dos meus tantos amores, de cujas dores fui
Colhendo a amargura que nos faz deixar o sonho e ser adultos.
Que endurece a pele e deixa nos olhos e na testa sulcos de experiência,
Pois aquele amor puro era no meu coração de criança um destino a seguir
Um porto onde os tantos navegantes partiam e outros vinham a surgir.
E assim me calava chorando as dores que não tinha
Nos tantos momentos romanticos que não experimentara,
Marli, oh Marli...
Quisera eu ser verdade, mas era apenas um amor de criança.
Um dia meu pai me deu uma triste notícia
Deixariamos o vilarejo e p'ras bandas do poente
Faríamos novo viver.
Meu pai não faça isso comigo, não me impeça de viver
Meu coração é jovem, mas sem ela vai morrer...
É claro que não disse isso a papai, homem rude e duro
Mas desejei mil vezes ter sido alvo de um tiro
Ou pisoteado pelas patas dum boi morrer sem dor
Quase como se estivesse dormindo.
Na última tarde esperei sua passagem com lágrimas nos olhos
E ao avistá-la surgindo na curva do rio corri a lhe encontrar
E disse quase num soluço : "Amanhã, bem cedo, vou me mudar
Vou deixar esse lugar e você nunca mais me verá".
Ela me olhou toda terna e colocou a mão direita sobre minha face esquerda
Me olhou com aqueles olhos de mel e percebeu num momento
Que aquele menino sofria por a deixar.
Hoje, tantos anos mais tarde, ainda lembro aquela tarde
Mesmo com o coração endurecido, ainda sinto...
Ela me beijou, foi o primeiro beijo da minha vida
Ali comecei a me tornar homem, ali começou a morrer o menino.
Tudo durou um segundo, mas nos seus lábios passaram
Séculos e séculos, e uma eternidade desceu sobre mim
Um estouro de boiada, de água represada, de potros em disparada.
Quando abri meus olhos ela sorria para mim
Então corri, corri como o vento que traz a chuva
E saltei sobre cercas ganhando os campos na maior euforia
Que minha alma juvenil já experimentara.
Na alvorada do dia seguinte fizemos nossa mudança
E na terra estranha vagava um menino de olhos sonhadores
Pensando num amada que ficara longe.
Era meu aniversário de catorze anos.
Anos depois nos encontramos
Quando nossos olhos se cruzaram as lembranças afloraram
Senti seu olhar triste posto sobre mim,
Mas não éramos mais os mesmos,
Dali tomamos cada qual o seu rumo e nunca mais nos vimos
Mas eu soube por aquele olhar , naquele beijo
Que ela também me amara!
Marli! Marli! Como era doce a Marli
Para nunca mais retornar.
O homem puxou seu chapéu sobre os olhos
Para esconder as lágrimas descendo
Tossiu três vezes e deixou ao lado o amigo violão
Saiu sem olhar para os homens e andou na noite
Em direção aos campos vazios
Para sentir o vento na face
E contemplar as cintilantes estrelas
Suspirando um frescor deixado no tempo
Mas vivo na memória, liquido e certo na forma rude do pensamento.
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