domingo, 15 de janeiro de 2023

O Primeiro Dia

Um conto com ambientação de ficção científica e uma história singela. 

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O senhor Anton manipulava  de modo automático a placa dourada que trazia seu nome e o cargo que ocupara pelos últimos dez anos,  diretor geral da província da Urânia. Seus pensamentos,  porém, estavam longe. Pensava no seu ancestral, o colono Yaroslav, que chegara ao setor 11 de Mir-3 vindo da antiga província terrana da Eslávia havia três séculos. 

Os colonos encontraram uma terra nua, selvagem e muito diferente da região populosa de onde vieram.  Yaroslav fora membro sênior da primeira comissão que organizou os assentados em suas glebas e as defesas contra os aborígenes. O prédio central da administração de Urânia ficava sobre a colina onde o padre Piotr rezara a primeira missa ortodoxa do planeta poucas horas depois do primeiro ataque.  "Eram eles ou nós"- consolou-se Anton. 

"Com sua licença, senhor diretor, posso limpar sua sala agora, para que iniciemos o processo?" 

Era o faxineiro, o senhor Grigory. 

"Senhor Grigory, acho que ficarei mais um pouco.  Venha, sente-se comigo, tomemos juntos um pouco de Canut para comemorar sua aposentadoria" .

Grigory apoiou-se na escovão que trazia e pareceu considerar aquilo. 

"Por que não? É meu último dia" 

Anton serviu uma boa dose de canut, o fermentado produzido a partir da erva local de mesmo nome, e entregou a cratera a Grigory.  Lamentou não ter vodca, fazia muito tempo que esse produto não chegava da Terra. O homem sorveu o líquido com prazer. 

"E assim termino meus cinco anos,  com uma dose de canut. Sou um homem abençoado, senhor diretor, nosso Bog me guiou até aqui, slava Bogu!" . 

Mas Anton não prestara atenção.  Seus olhos estavam sobre o retrato do seu antecessor.  O homem tivera a dura incumbência de submeter a última resistência autóctone. Agora estavam extintos. 

"Eu sei o que pensa, senhor diretor, mas eram eles ou nós"

"Sim, Grigory, mas isso não diminui o peso da escolha e ainda assim sou grato por ter tido um governo tranquilo em consequência disso". 

"Alguns homens precisam viver com suas escolhas e seus deveres, senhor.  Foi isso que nossos primeiros colonos descobriram quando foram atacados. Vieram as reservas e eles podiam estar vivendo em paz nelas até hoje". 

"Sim, mas era a terra deles". 

"Senhor, nós mesmos somos descendentes de invasores e de povos escravizados e exterminados, creio que o senhor não ignora a história de nossos ancestrais. Eu durmo em paz". 

Anton mirou os olhos azuis sinceros daquele velho homem e invejou sua fé no que não passava de um processo de morte e destruição de povos sempre substituídos por outros destinados ao mesmo fim.  

"Mas que insensibilidade essa minha, Grigory, é seu último dia e aqui estou eu lamentando o que não pode ser lamentado. Slava Bogu!". 

"Não senhor"- retorquiu Grigory- " eu o entendo bem, o senhor fez um bom trabalho. Tratar as cicatrizes muitas muitas vezes é mais pesado que abrir as feridas"

Grigory tomou o restante do líquido num só gole e estendeu a cratera a Anton, que lhe serviu mais uma dose. 

"Proponho um brinde, caro senhor Anton, ao sucesso do que fizemos e ao sucesso do que o senhor fará. Cinco anos atrás eu também iniciei meu trabalho aqui com apreensões maiores, mas aqui estou,  um homem limpo pelo trabalho, como um bom eslavo, sem arrependimentos e muita dedicação". 

Anton invejou a grandeza daquele homem.  Desejou estar à altura dele dentro de alguns anos.  

Grigory terminou sua bebida, Anton já havia acabado.

"Está pronto, senhor Anton?"

Anton mirou a placa dourada com seu nome,  suspirou fundo e então encarou Grigory com um sorriso sincero. 

"Claro, senhor Grigory, será uma honra" 

Grigory levantou-se, como seu antecessor fizera cinco anos antes, pegou a placa dourada e lançou-a no triturador. Em seguida apanhou uma pequena caixa que trouxera consigo, abriu e retirou de lá uma moldura com a imagem tridimensional do senhor Anton, que já se despia da toga de diretor, e a acoplou na parede ao lado da sua  imagem. 

Em seguida entregou a Anton a farda de faxineiro, sua insígnia e o escovão. 

"Foi uma honra" - disse Grigory. 

"Será uma honra" - respondeu ritualmente Anton. 

Grigory e Anton deixaram a sala no momento em que o novo diretor entrara. Anton estava aliviado, Grigory sereno. 

O faxineiro conduziu seu antecessor até a saída, ambos trocaram apertos de mão e desejos de saúde e sucesso. Grigory foi para casa, Anton foi limpar as latrinas. O novo diretor tomava canut.

Slava Bogu!

*Slava Bogu, "Graças a Deus" em russo e ucraniano : Слава Богу.

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