quarta-feira, 13 de maio de 2020

Amor Pleno

O sol ia se esquivando devagarinho dos olhares. Sentados, eles fitavam o entardecer avermelhado. As mãos de leve se tocavam. Nenhuma palavra foi dita até que o entardecer se fez noite.
Acertaram que aquela pequena intimidade da infância era coisa séria, namoro. Dois dias depois estavam separados, a família do menino se fora da cidade, e a menina deitou sobre a janela de um outro fim de tarde as primeiras lágrimas desse broto de amor.
Os anos se passaram. Um dia o carteiro deixou um pequeno envelope com seu nome. A carta perfumada, as letras mal traçadas. No fim a assinatura vinha com um coração atravessado. As cartas se amontoaram, mas logo foram rareando.
O rapaz um dia veio visitar os parentes na cidade. Ela já não era aquela menininha. Sentiu que o coração ia sair pela boca, as faces coraram. Foram ver o entardecer. Ele falou da escola, dos planos de faculdade para depois do serviço militar que se aproximava. Ela falou da mãe, da vó que se fora, das irmãs já casadas e da universidade sem serviço militar. Riram. Mas não se tocaram.
Que noites tão longas naquela guarita! O fuzil ao lado, a lua alta no céu e os pensamentos voando para junto daquele rostinho sorridente. Foi naquela noite, cantarolando uma dessas músicas românticas que fazem chorar a mocidade, que decidiu por um termo naquele afastamento. Gostavam-se, ele sabia, que coisa aquela de não juntar a vontade com seu objeto.
No dia seguinte à baixa soube pelo primo que ainda morava na pequena cidade que a moça agora morava na capital, que cursava uma boa universidade e que estivera por ali com um desses rapazes urbanos desfilando num carro novinho em folha. A noite desceu sobre seu coração, uma noite sem lua.
No espelho ela via as lágrimas borrando sua maquiagem. Ia sair com o namorado, mas ao olhar pela janela para adivinhar o clima da noite, sentiu o coração bater mais rápido ao ver no céu o sinal da noite que se aproximava. As memórias voltaram, as cartas, a princípio mal traçadas, mas logo cheias de poesia, de sinceridade, de uma simplicidade que nunca mais encontrara. Esqueceu por um pouco o pragmatismo da vida. E chorou.
Ele foi trabalhar numa grande indústria da capital assim que terminou o curso de engenharia elétrica. Numa tarde qualquer pensou tê-la visto. Foi conferir, era ela. Seus olhos se encontraram, ela sorriu, mas havia algo naquele sorriso. Então ele percebeu, ela teria um bebê. O marido estava logo ali, falou com ela, foi suficiente para que ele se retirasse. Quando ela olhou novamente não o viu mais.
Ele também se casou. Pragmaticamente. Teve filhos, envelheceu, a esposa se foi. Veio a aposentadoria. Ela teve outro marido, e agora não tinha mais ninguém. Um dia se encontraram, falaram da vida, riram daquele amor que nunca se realizou. Agora parece tão tarde. Então suas mãos se tocaram. A vida toda se passou ali naquele toque interrompido pela netinha, dela.
A campainha tocou. Ela se moveu devagar até a porta. Uma mulher com um sorriso triste se apresentou. Era um dia cinzento de inverno. Ela entrou no quarto. Seus olhos estavam semicerrados, a boca coberta pelo respirador. Ela tocou sua mão uma vez mais. Ele pareceu sorrir. Lágrimas desceram. E seu coração parou com essa última emoção de um amor pleno, mas nunca realizado.

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