_______________________________________________________________________
Essa é a terceira e última parte da história. Espero que você tenha gostado da nossa viagem e que você curta esse final. Caso esteja chegando agora essa é a PARTE 1 e essa é a PARTE 2.
_______________________________________________________________________
A
escuridão sem vozes foi crescendo, se adensando, criando raízes, espalhando-se
numa distância imaterial, subindo em fibras que se alongavam e se enrolavam
numa dança sensual de serpentes acasalando e lançando galhos para dentro do
nada, de onde folhas emergiam, sorvendo uma luz inexistente, e lançando-se
como flores de onde explodiam
estranhos frutos no silêncio.
O
mundo ao redor tinha mãos frias com dedos longos que acariciavam o corpo imóvel
de L. Aos poucos ele foi tomando consciência de si, e a escuridão já não
parecia mais tão silenciosa. Ele apoiou as mãos num chão indiscernível e
levantou a cabeça e o que pode do tronco. Ele entendia que a sua face estava
voltado para o “chão”, e que acima de suas costas estava o teto, o céu, ou seja
lá o que houvesse para cima. Entendia que havia um lado esquerdo e um direito. E
mesmo assim ele sentia como se nada ao seu redor fosse de fato “cima” ou “baixo”.
Era uma estranha desorientação que enchia seus sentidos, mas escapava da sua
razão. Lembrou-se dos astronautas em microgravidade, dele mesmo no fundo de uma
piscina. Tinha doze anos.
A
calma era imensa, e havia o silêncio. Ele gostava de fazer isso com os olhos
fechados, sentir a água, a sensação de ausência de peso, e a
massagem ao redor do seu corpo. Isso ele sabia que era ilusão, não tinha como
sentir a água parada massageando seu corpo. Mas gostava de pensar que era assim,
como se umas mãos invisíveis estivessem ao seu redor. Lastimava o bronquite e a
pouca capacidade pulmonar. Se pudesse escolher um superpoder, seria o de permanecer indefinidamente sob a água. A tia algumas vezes já o flagrara imóvel
no fundo da piscina. E o seu mundo aquático era perturbado por um tio, um
primo, um vizinho. Houve tempo em que proibiram sua entrada ali sozinho, mas
ele sempre dava um jeito de burlar as regras da tia.
Um
dia ele mergulhou mais do que devia no seu mundo interno. No início achou que
seus pulmões iam explodir, mas a sensação era tão boa, tanta calma. Sentiu-se
flutuando para dentro de algo indefinível. Encontraram-no sem sentidos. E
durante muito tempo sua mãe achou que ele tinha alguma lesão no cérebro por
causa da privação de oxigênio. Ele achava que não, mas não tinha certeza.
L
ainda não via nada, mas sabia que havia um corredor. Um corredor
muito longo, talvez infinito. Ele conseguiu ficar em pé, ou pelo menos achava
que estivesse em pé. Não tinha certeza.
Pareceu
ver uma luz muito distante, e sons que não eram sons, mas vibrações pelo espaço.
Cambaleou na direção do que supunha ser luz.
Ele agora pensava de modo mais claro, lembrava de ter saído do
escritório e corrido para longe. Sentia vergonha e confusão. Como P podia ter
dito aquilo? Como ele ousou ter pensado aquilo? Arrependeu-se de não ter
espancado o outro, um empurrão era pouco. Mas P merecia isso? É certo que o
ofendera, mas mostrara algum afeto que era diferente do que ele estava
acostumado com a mãe, a tia e todos aqueles outros parentes estranhos. Sentira
aquilo antes, foi na piscina.
Mas
não era como se a água tivesse afeto por ele. Ela permitia que ele sentisse um
afeto que estava além da sua compreensão. Então lembrou do olhar azul. E dos
olhos puxados. K invadiu a sua vida. Era culpa dela, a confusão, a dor que
agora sentia pelo corpo. Isso o confundia, não eram ilusões? Agora não sabia. Então
ele ouviu o gemido.
Vinha
de algum lugar à sua direita. Era um som abafado, doloroso. Havia uma porta. Ele
alcançou a maçaneta. Estava destrancada. Abriu e entrou. Era uma sala pequena,
cinza do chão ao teto. No meio da sala havia uma cadeira, e alguém amarrado. O
coração de L acelerou, suas têmporas saltavam. Aproximou-se. Não acreditou no
que viu. Não podia ser. Mas era. K estava amarrada na cadeira.
Ela
levantou a cabeça, os cabelos cobriam sua face, mas ela soprou a franja para o
lado e os seus azuis inundaram o olhar de L.
-Vai
ficar aí me olhando seu imbecil? Me desamarre, ela deve voltar a qualquer momento – Disse no seu
costumeiro tom entre a irritação e o sarcasmo.
-Por
que eu faria isso? Nem sei quem está voltando. Devo estar delirando.
K
baixou a cabeça e suspirou, disse um palavrão silencioso e voltou a olhar para
ele, mas agora sorria de um modo diferente, quase amigo.
-Eu
preciso que você me solte. Não há tempo agora para explicações, mas eu juro que
assim que sairmos daqui eu te explico tudo.
-Eu
não vou fazer isso. Minha vida virou uma bagunça, e você é culpada disso.
-
Não virou. Você não entende. Você criou isso. As coisas não são como você pensa,
na verdade é você quem está preso. Me solte, por favor.
K
começou a soluçar, e L agora não sabia o que fazer. Queria sair dali, nunca mais
ver aquele rosto, mas também sentia que precisava entender aquilo. Louco ou
não, era necessário embarcar de vez na loucura e ir até o fim. Ele dizia isso
para si mesmo, mas não tinha essa certeza. Na verdade sentia apenas vontade de
permanecer naquele escuro para sempre.
-Não
L! Não se entregue! É isso que ela quer.
K
implorava, chorava, soluçava, mas ele não ouvia. Era como aquele dia na água,
aquele dia.
Quando
L sentiu o golpe, ele já estava no chão. E ela continuou batendo nele. K, a K
oriental, estava furiosa. Ela batia, chutava, arranhava, mordia.
A
dor era imensa, mas era algo distante. Mesmo os gritos de K não passavam de
sussurros distantes no fundo da sua mente. L via-se refletido no chão cinza,
uma imagem opaca que aos poucos foi ficando mais nítida. Não era o rosto que
ele costumava ver no espelho, o rosto que ele achava que via no espelho todas
as manhas. Aqueles olhos azuis, aquela outra personalidade. E foi como se um
mergulhasse para dentro do outro. L ficou flutuando por um tempo que não soube
determinar. Nada consciente, as ideias fluíam de um modo natural, sem imagens,
sem palavras. Era apenas informação que estivera guardada. Quando abriu os
olhos, viu a K chinesa ainda batendo nele. Mas ele não estava de cara para o
chão, estava amarrado onde antes estivera K. Ele era K. E não era. Era L
amalgamado com K. Ainda incompleto, mas diferente. O vazio diminuíra.
-Desgraçado!
Desgraçado!
K
batia nele/nela. E chorava. Seu nariz escorria, seus lábios estavam apertados
de uma forma estranha, meio raivosa, meio triste. Os olhos puxados muito
vermelhos, e o nariz escorrendo. Sentiu pena.
-Por
que você fez isso comigo? Por quê?
-Eu
precisava, você sabe.
-
Não! Você não precisava, você foi egoísta. Você sempre é egoísta!
Então
a K chinesa começou a arrastar L/K pelo corredor com cadeira e tudo. Eles se
debatiam tentando se soltar, ao mesmo tempo em que imploravam que K tivesse
misericórdia. Mas ela não queria ouvir. O mundo acabara, dizia. Era o momento
final. Ela tentou resolver do melhor modo, mas nunca era ouvida, logo ela que
era a parte racional de tudo isso.
-Escuta
K, a gente está junto agora, podemos sair disso. Você não percebe que está
sendo irracional?
K
soltou a cadeira. K/l sentiu o baque no chão duro. Um cheiro de flores envolvia
o local. K sentou na barriga de L/K. Seu rosto estava desfigurado pelo choro.
-Irracional?
Eu? Sim, você faz uma merda dessas e eu sou irracional? Por que você tinha que
sair correndo do escritório por causa do que P disse? E se não bastasse isso,
ainda se jogou na frente de um carro e talvez a gente nem esteja mais vivos!
Você não notou esse lugar escuro e esse cheiro? Acabou! Vocês ferraram com
tudo!
-Para
onde você está me levando?- Perguntou K/L sem muita esperança de que saber isso
mudaria alguma coisa.
-Eu
não sei. Nunca estive aqui, mas espero que tenha algum buraco ou algum lugar
alto para eu dar um fim em vocês.
K/L
estremeceu. O medo era angustiante, ele penetrava seus poros como a escuridão
silenciosa fizera antes. Sentiu vontade de chorar e chorou. Estava presa ali,
seu corpo inteiro doía e aquela pessoa que amava queria...aquela pessoa que
amava? K/L surpreendeu-se com esse
pensamento. K/L amava K com todas as suas forças! Era como aquele dia na
piscina, um amor tão grande, tão profundo, que absorveu seu mundo inteiro num
silêncio confortável. E aconteceu.
K
estava de joelhos num solo árido e pedregoso. Ela soluçava alto. Tudo ao redor
era cinza, mas um cinza morto. Até onde a vista alcançava, era tudo cinza. O
céu era cinza. Um imenso deserto. K/L não estava mais na cadeira. Estava em pé
e contemplava a dor de K e entendia que o imenso deserto cinza era a prisão
onde ela estivera durante muito tempo. Até o dia em que K, a de olhos azuis,
rompera o véu da ilusão.
K
sentiu o toque suave sobre suas costas. A dor imensa era como uma pedra no seu
estomago. Mas a mão quente era mais forte. K fechou os olhos. O mundo esvaiu-se
por um ralo qualquer, e o céu evaporou.
O
silêncio durou muito tempo. Então os olhos se abriram. Diante de si um campo
florido que se perdia no horizonte distante. A dúvida não existia. A dor era um
cicatriz profunda, mas podia ser tratada e seria. Uma multidão de borboletas
azuis movia-se ao seu redor e produziam um som agradável como uma orquestra
muito bem afinada. O sol brilhava, aquecia, mas não perturbava. E o cheiro que
antes parecia morte agora indicava a vida, a plena vida. A mente integral, e a
personalidade resgatada.
As borboletas começaram a girar ao seu
redor, o sol não era mais visto, nem as flores e o verde. O azul das borboletas
foi se adensando, escurecendo. Então tudo retornou ao silêncio.
***
A
primeira coisa que viu foi o sorriso cheio de dentes da mãe, e sentiu a
segurança do seu abraço perfumado.
-Você
acordou! Eu chorei tanto! Graças a Deus e à Nossa Senhora!
-Quantos
dias?
-Quase
uma semana, mas o doutor Thiago disse que você tem muita sorte, não quebrou nada!
Quando eu vi o carro achei sinceramente que você tinha morrido, quase morri
junto! Mas o Doutor, aquele médico bonitão, disse que está tudo bem. Você
teve uma concussão ou algo assim , mas agora está bem.
-Mãe...
-O
quê?
-Eu
te amo!
Os
olhos da mãe marejaram, os lábios tremeram e ela desabou. Há muito anos não
ouvia aquilo. Muitos anos, desde aquele maldito dia!
Saiu do hospital poucos dias depois. Sentia algumas dores pelo corpo, e levaria
um tempo para se curar totalmente das escoriações. Mas estava muito
feliz.
No
dia do seu retorno ao trabalho, levantou bem cedo e passou quase uma hora se
arrumando diante do espelho novo que o pai comprara. Só via o seu próprio rosto, o seu verdadeiro rosto. Comprara roupas novas e pediu que a mãe
doasse toda aquela roupa esquisita que acumulara durante anos. Reformou seu
quarto.
Sentia-se
a pessoa mais linda do mundo, e talvez fosse mesmo. Abriu a porta e sentiu a
brisa fresca. Usava roupas leves e coloridas, não
de um colorido pesado, mas o de um campo florido.
Desceu
os degraus que levavam até o portão. O carro do pai já estava diante do portão. Parou
por um momento para apreciar o rosto refletido nos vidros do carro. Seu rosto
brilhava com uma felicidade que há anos não experimentava, seus cabelos negros e
encaracolados estavam muito bem alinhados. Os grandes olhos castanhos refletiam
a vida que estivera escondida. A pele cor de ébano do rosto não trazia mais as
marcas do atropelamento. Leila sentia-se uma bela mulher naquela manhã. Pensou em
Pedro. Sorriu timidamente. O pai apressou-a de dentro do carro, iam chegar atrasados.
Jogou um beijo para a mulher negra que observava da janela da sua casa, a mãe
retornou o agrado.
Abriu a porta, entrou
no carro e nada mais foi como antes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário