segunda-feira, 26 de março de 2018

Me Deixe Sair – Parte Final



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Essa é a terceira e última parte da história. Espero que você tenha gostado da nossa viagem e que você curta esse final. Caso esteja chegando agora essa é a PARTE 1 e essa é a PARTE 2
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A escuridão sem vozes foi crescendo, se adensando, criando raízes, espalhando-se numa distância imaterial, subindo em fibras que se alongavam e se enrolavam numa dança sensual de serpentes acasalando e lançando galhos para dentro do nada, de onde folhas emergiam, sorvendo uma luz inexistente, e lançando-se como flores de onde explodiam estranhos frutos no silêncio.

O mundo ao redor tinha mãos frias com dedos longos que acariciavam o corpo imóvel de L. Aos poucos ele foi tomando consciência de si, e a escuridão já não parecia mais tão silenciosa. Ele apoiou as mãos num chão indiscernível e levantou a cabeça e o que pode do tronco. Ele entendia que a sua face estava voltado para o “chão”, e que acima de suas costas estava o teto, o céu, ou seja lá o que houvesse para cima. Entendia que havia um lado esquerdo e um direito. E mesmo assim ele sentia como se nada ao seu redor fosse de fato “cima” ou “baixo”. Era uma estranha desorientação que enchia seus sentidos, mas escapava da sua razão. Lembrou-se dos astronautas em microgravidade, dele mesmo no fundo de uma piscina. Tinha doze anos.

A calma era imensa, e havia o silêncio. Ele gostava de fazer isso com os olhos fechados, sentir a água, a sensação de ausência de peso, e a massagem ao redor do seu corpo. Isso ele sabia que era ilusão, não tinha como sentir a água parada massageando seu corpo. Mas gostava de pensar que era assim, como se umas mãos invisíveis estivessem ao seu redor. Lastimava o bronquite e a pouca capacidade pulmonar. Se pudesse escolher um superpoder, seria o de permanecer indefinidamente sob a água. A tia algumas vezes já o flagrara imóvel no fundo da piscina. E o seu mundo aquático era perturbado por um tio, um primo, um vizinho. Houve tempo em que proibiram sua entrada ali sozinho, mas ele sempre dava um jeito de burlar as regras da tia.

Um dia ele mergulhou mais do que devia no seu mundo interno. No início achou que seus pulmões iam explodir, mas a sensação era tão boa, tanta calma. Sentiu-se flutuando para dentro de algo indefinível. Encontraram-no sem sentidos. E durante muito tempo sua mãe achou que ele tinha alguma lesão no cérebro por causa da privação de oxigênio. Ele achava que não, mas não tinha certeza.

L ainda não via nada, mas sabia que havia um corredor. Um corredor muito longo, talvez infinito. Ele conseguiu ficar em pé, ou pelo menos achava que estivesse em pé. Não tinha certeza.

Pareceu ver uma luz muito distante, e sons que não eram sons, mas vibrações pelo espaço. Cambaleou na direção do que supunha ser luz.  Ele agora pensava de modo mais claro, lembrava de ter saído do escritório e corrido para longe. Sentia vergonha e confusão. Como P podia ter dito aquilo? Como ele ousou ter pensado aquilo? Arrependeu-se de não ter espancado o outro, um empurrão era pouco. Mas P merecia isso? É certo que o ofendera, mas mostrara algum afeto que era diferente do que ele estava acostumado com a mãe, a tia e todos aqueles outros parentes estranhos. Sentira aquilo antes, foi na piscina.

Mas não era como se a água tivesse afeto por ele. Ela permitia que ele sentisse um afeto que estava além da sua compreensão. Então lembrou do olhar azul. E dos olhos puxados. K invadiu a sua vida. Era culpa dela, a confusão, a dor que agora sentia pelo corpo. Isso o confundia, não eram ilusões? Agora não sabia. Então ele ouviu o gemido.

Vinha de algum lugar à sua direita. Era um som abafado, doloroso. Havia uma porta. Ele alcançou a maçaneta. Estava destrancada. Abriu e entrou. Era uma sala pequena, cinza do chão ao teto. No meio da sala havia uma cadeira, e alguém amarrado. O coração de L acelerou, suas têmporas saltavam. Aproximou-se. Não acreditou no que viu. Não podia ser. Mas era. K estava amarrada na cadeira.

Ela levantou a cabeça, os cabelos cobriam sua face, mas ela soprou a franja para o lado e os seus azuis inundaram o olhar de L.

-Vai ficar aí me olhando seu imbecil? Me desamarre, ela  deve voltar a qualquer momento – Disse no seu costumeiro tom entre a irritação e o sarcasmo.
-Por que eu faria isso? Nem sei quem está voltando. Devo estar delirando.
K baixou a cabeça e suspirou, disse um palavrão silencioso e voltou a olhar para ele, mas agora sorria de um modo diferente, quase amigo.
-Eu preciso que você me solte. Não há tempo agora para explicações, mas eu juro que assim que sairmos daqui eu te explico tudo.
-Eu não vou fazer isso. Minha vida virou uma bagunça, e você é culpada disso.
- Não virou. Você não entende. Você criou isso. As coisas não são como você pensa, na verdade é você quem está preso. Me solte, por favor.
K começou a soluçar, e L agora não sabia o que fazer. Queria sair dali, nunca mais ver aquele rosto, mas também sentia que precisava entender aquilo. Louco ou não, era necessário embarcar de vez na loucura e ir até o fim. Ele dizia isso para si mesmo, mas não tinha essa certeza. Na verdade sentia apenas vontade de permanecer naquele escuro para sempre.
-Não L! Não se entregue! É isso que ela quer.

K implorava, chorava, soluçava, mas ele não ouvia. Era como aquele dia na água, aquele dia.

Quando L sentiu o golpe, ele já estava no chão. E ela continuou batendo nele. K, a K oriental, estava furiosa. Ela batia, chutava, arranhava, mordia.

A dor era imensa, mas era algo distante. Mesmo os gritos de K não passavam de sussurros distantes no fundo da sua mente. L via-se refletido no chão cinza, uma imagem opaca que aos poucos foi ficando mais nítida. Não era o rosto que ele costumava ver no espelho, o rosto que ele achava que via no espelho todas as manhas. Aqueles olhos azuis, aquela outra personalidade. E foi como se um mergulhasse para dentro do outro. L ficou flutuando por um tempo que não soube determinar. Nada consciente, as ideias fluíam de um modo natural, sem imagens, sem palavras. Era apenas informação que estivera guardada. Quando abriu os olhos, viu a K chinesa ainda batendo nele. Mas ele não estava de cara para o chão, estava amarrado onde antes estivera K. Ele era K. E não era. Era L amalgamado com K. Ainda incompleto, mas diferente. O vazio diminuíra.

-Desgraçado! Desgraçado!
K batia nele/nela. E chorava. Seu nariz escorria, seus lábios estavam apertados de uma forma estranha, meio raivosa, meio triste. Os olhos puxados muito vermelhos, e o nariz escorrendo. Sentiu pena.
-Por que você fez isso comigo? Por quê?
-Eu precisava, você sabe.
- Não! Você não precisava, você foi egoísta. Você sempre é egoísta!

Então a K chinesa começou a arrastar L/K pelo corredor com cadeira e tudo. Eles se debatiam tentando se soltar, ao mesmo tempo em que imploravam que K tivesse misericórdia. Mas ela não queria ouvir. O mundo acabara, dizia. Era o momento final. Ela tentou resolver do melhor modo, mas nunca era ouvida, logo ela que era a parte racional de tudo isso.

-Escuta K, a gente está junto agora, podemos sair disso. Você não percebe que está sendo irracional?

K soltou a cadeira. K/l sentiu o baque no chão duro. Um cheiro de flores envolvia o local. K sentou na barriga de L/K. Seu rosto estava desfigurado pelo choro.

-Irracional? Eu? Sim, você faz uma merda dessas e eu sou irracional? Por que você tinha que sair correndo do escritório por causa do que P disse? E se não bastasse isso, ainda se jogou na frente de um carro e talvez a gente nem esteja mais vivos! Você não notou esse lugar escuro e esse cheiro? Acabou! Vocês ferraram com tudo!
-Para onde você está me levando?- Perguntou K/L sem muita esperança de que saber isso mudaria alguma coisa.
-Eu não sei. Nunca estive aqui, mas espero que tenha algum buraco ou algum lugar alto para eu dar um fim em vocês.

K/L estremeceu. O medo era angustiante, ele penetrava seus poros como a escuridão silenciosa fizera antes. Sentiu vontade de chorar e chorou. Estava presa ali, seu corpo inteiro doía e aquela pessoa que amava queria...aquela pessoa que amava? K/L  surpreendeu-se com esse pensamento. K/L amava K com todas as suas forças! Era como aquele dia na piscina, um amor tão grande, tão profundo, que absorveu seu mundo inteiro num silêncio confortável. E aconteceu.

K estava de joelhos num solo árido e pedregoso. Ela soluçava alto. Tudo ao redor era cinza, mas um cinza morto. Até onde a vista alcançava, era tudo cinza. O céu era cinza. Um imenso deserto. K/L não estava mais na cadeira. Estava em pé e contemplava a dor de K e entendia que o imenso deserto cinza era a prisão onde ela estivera durante muito tempo. Até o dia em que K, a de olhos azuis, rompera o véu da ilusão.

K sentiu o toque suave sobre suas costas. A dor imensa era como uma pedra no seu estomago. Mas a mão quente era mais forte. K fechou os olhos. O mundo esvaiu-se por um ralo qualquer, e o céu evaporou.

O silêncio durou muito tempo. Então os olhos se abriram. Diante de si um campo florido que se perdia no horizonte distante. A dúvida não existia. A dor era um cicatriz profunda, mas podia ser tratada e seria. Uma multidão de borboletas azuis movia-se ao seu redor e produziam um som agradável como uma orquestra muito bem afinada. O sol brilhava, aquecia, mas não perturbava. E o cheiro que antes parecia morte agora indicava a vida, a plena vida. A mente integral, e a personalidade resgatada.
As borboletas começaram a girar ao seu redor, o sol não era mais visto, nem as flores e o verde. O azul das borboletas foi se adensando, escurecendo. Então tudo retornou ao silêncio.


                                                                         ***

A primeira coisa que viu foi o sorriso cheio de dentes da mãe, e sentiu a segurança do seu abraço perfumado.
-Você acordou! Eu chorei tanto! Graças a Deus e à Nossa Senhora!
-Quantos dias?
-Quase uma semana, mas o doutor Thiago disse que você tem muita sorte, não quebrou nada! Quando eu vi o carro achei sinceramente que você tinha morrido, quase morri junto! Mas o Doutor, aquele médico bonitão, disse que está tudo bem. Você teve uma concussão ou algo assim , mas agora está bem.
-Mãe...
-O quê?
-Eu te amo!
Os olhos da mãe marejaram, os lábios tremeram e ela desabou. Há muito anos não ouvia aquilo. Muitos anos, desde aquele maldito dia!

Saiu do hospital poucos dias depois. Sentia algumas dores pelo corpo, e levaria um tempo para se curar totalmente das escoriações. Mas estava muito feliz.
No dia do seu retorno ao trabalho, levantou bem cedo e passou quase uma hora se arrumando diante do espelho novo que o pai comprara. Só via o seu próprio rosto, o seu verdadeiro rosto. Comprara roupas novas e pediu que a mãe doasse toda aquela roupa esquisita que acumulara durante anos. Reformou seu quarto.

Sentia-se a pessoa mais linda do mundo, e talvez fosse mesmo. Abriu a porta e sentiu a brisa fresca. Usava roupas leves e coloridas, não de um colorido pesado, mas o de um campo florido.

Desceu os degraus que levavam até o portão. O carro do pai já estava diante do portão. Parou por um momento para apreciar o rosto refletido nos vidros do carro. Seu rosto brilhava com uma felicidade que há anos não experimentava, seus cabelos negros e encaracolados estavam muito bem alinhados. Os grandes olhos castanhos refletiam a vida que estivera escondida. A pele cor de ébano do rosto não trazia mais as marcas do atropelamento. Leila sentia-se uma bela mulher naquela manhã. Pensou em Pedro. Sorriu timidamente. O pai apressou-a de dentro do carro, iam chegar atrasados. Jogou um beijo para a mulher negra que observava da janela da sua casa, a mãe retornou o agrado. 

Abriu a porta,  entrou no carro e nada mais foi como antes.


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