domingo, 25 de março de 2018

Comparações Impróprias

Em 1996 passei por uma situação que foi definidora do meu modo de pensar nos anos que se seguiram.
O gerente da empresa em que eu trabalhava estava me chamando a atenção por algo, vejo hoje, que não era errado. Talvez por simpatizar comigo ou para tentar assumir uma posição "professoral", ele começou a discursar sobre a importância do trabalho.
"O trabalho, disse ele, é mais importante que a família, pois sem trabalho não há família".
Eu era jovem, e com pouca experiência. Não disse nada, como de costume, baixei a cabeça e "preparei a toalha". Mas depois aquilo me incomodou, havia algo errado com aquele argumento.
É claro que eu me protegi negando internamente aquilo, mas eu sabia que essa era uma RESPOSTA AFETIVA, e não uma "solução".
O fato é que família e trabalho costumam vir juntos em muitas listas, assim como religião, estudo e lazer.
Mas família e trabalho pertencem ao mesmo "conjunto"? Sim. Família e trabalho pertencem a um grande conjunto que podemos chamar de "vida social". Mas eles estão separados em subconjuntos, pois embora sejam do "mesmo campo", não são do mesmo "valor". Logo não são mutuamente comparáveis.
O item "Família" pode ser comparado com os itens "amigos", "colegas", etc. Em alguns casos os termos assumem igualdade, pois temos amigos que são como irmãos para nós e grupos que passam a ser nossa "família". Mas comparar trabalho, um conjunto de atividades, com "família" um conjunto de afinidades, é impróprio.
Essa comparação imprópria de valores de conjuntos diferentes está na base de muitas distorções da vida moderna, com muita angústia, decepção, frustração, egoísmo, etc, como produtos.
E também está na base da incapacidade de diálogo entre os diversos atores sociais, tanto nos núcleos internos da nossa convivência, quanto nos palcos dos confrontos de ideias. Não nos entendemos porque comparamos valores diferentes, ou comparamos valores a partir de escalas desiguais. Entenda, a partir de pressupostos que são eles mesmos de espécies diferentes.
Eu não mudei o mundo com isso, nem tive uma carreira brilhante desde então, mas pelo menos consegui para mim mesmo alguma paz de espírito e aprendi a trilhar a estrada da reflexão.
E aquele gerente? Foi mandado embora dias depois. Descobriram que ele estava desviando dinheiro e superfaturando insumos. Esses eram os seus valores.

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