domingo, 26 de novembro de 2017

Minha Vózinha.



"Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse". Grande Sertão:Veredas

A minha vózinha era um desses personagens do Guimarães Rosa, porque ele tomou desse povo guerreiro de Minas a substância que deu vida ao seu livro.
A vó Almerinda não se vestia de homem, nem lutou no cangaço, mas era uma mulher guerreira como poucas eu vi até hoje! Tinha os olhos verdes, e um brilho, uma vivacidade! Era "ruim" no sentido que dão lá na terra de gente que não se dobra, mas era doce, amável, ao mesmo tempo em que dura, porque dura era a sua terra, dura a sua realidade.

A vó teve mais de um dúzia de filhos e viu a maioria deles chegar à vida adulta. Filhos que ela mesma tirou do seu ventre. Minha vó era parteira e minha vó fazia seus partos sozinha. Trabalhava lá na terra dura, na velha casa de adobe e chão de terra batida, e quando sentia que a criança queria sentir o pó do mundo, ela mandava "o véi esquentá uma chalera de água" , entrava no quarto e logo se ouvia o choro pela casa.
Vó Almerinda viveu boa parte da vida em São João do Paraíso, cidade em que Joca Ramiro adentrou no livro. Joca Ramiro deve ter conhecido minha vó, e deve ter tomado uma pinga do alambique do vô junto com Riobaldo e Diadorim, enquanto um dos meus tios cuidava do belo cavalo branco do homem!
Ah! O livro! Tá tudo lá vó! O diabim na garrafa, os cantos bonitos dos crentes!
Minha vó era muito esperta do seu modo. Um dia um incauto lhe disse que a Bíblia tinha sido escrita por homens. Ela olhou para ele, com aqueles verdes esmartes olhos e disse:
"Uai, 'cê já viu um burro ou um cavalo estudando para pastor ou padre? É claro que a bíblia foi escrita por homem!".
Mas ultimamente ela andava cansada e muito doente. Já se precavera para a partida. Meu avô fazia falta. E ela se foi.
Eu lido com a minha dor, vovó, escrevendo. Eu sei que fui um pouco distante, sempre ocupado com essa correria, mas todas as vezes em que nos víamos eu sentia o seu orgulho. Eu sei que a senhora me valorizava, que seus olhos brilhavam ao me ver. Isso eu sempre vou levar comigo.
Na última vez em que nos vimos eu perguntei se ela tinha medo. Ela disse que não, que estava preparada. Eu entendi naquelas palavras, nos seus olhos, que diante de tudo o que vivera com coragem, não seria nessa hora em que ela teria medo.
A senhora se foi, mas eu sei onde te procurar, a senhora está nas páginas desse livro, correndo, amando, sofrendo, vivendo e morrendo.
"Naquela mesma da hora, Joca Ramiro dava partida também para o São João do Paraíso".
E a vó Almerinda lá estava para o receber, ele e Sô Candelário e Riobaldo e Diadorim. Meu avô já traz a garrafa da melhor cachaça, e o tio França vai dar um bom trato no cavalo branco.
Porque minha avózinha também foi para o seu São João do Paraíso! Travessia!

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