quinta-feira, 11 de maio de 2017

Piá

Piá tinha uns sete anos nessa época. O mundo ainda era muito recente para ele, e ele recente para o mundo. Quando ainda não sabia ler, ele gostava de ficar olhando aquelas duas colunas da Bíblia. Era um mistério impenetrável, mas tão belo! Como quando o primeiro ocidental pôs os olhos sobre um mural egípcio e considerou os hieróglifos como belos ornamentos sem outro sentido. Mas já não bastava olhar para as linhas indecifráveis. Foi quando Piá começou a separar as páginas. Anos depois, sob aquele teto cinza, ele ainda se perguntava o que se passava por sua cabeça naquele tempo. Seria o papel, as linhas ou era alguma outra fantasia que agora nenhum sentido tinha para ele?
O mundo era recente, e era grande. Tudo parecia descomunal. Não quando anos depois ele passou pelos mesmos lugares e percebeu que as coisas eram normais, o mundo, pelo menos aquele seu mundo, não era tão grande nem tão fantástico.
Naqueles dias as lendas andavam vivas, e quase todo mundo conhecia alguém que conhecia alguém que conheceu alguém que teria visto um lobisomem ou a mula-sem-cabeça. Para os primeiros havia até uma estratégia para lhes conhecer a identidade. Bastava dizer ao licantropo, de abrigo bem seguro, que viesse no dia seguinte à sua casa buscar açucar. Uns diziam que era sal. Piá nunca teve oportunidade de fazer o teste. Na verdade nem coragem teria. Poucos anos depois passou na tv um filme de Lobisomem que se passava em Londres. Ele viu o filme, e passou noites sem dormir. Piá definitivamente não iria convidar uma fera horrenda como aquela para vir buscar sal ou açucar em sua casa!
Uma família nova se mudou para o lado da casa de Piá. Eram três meninas na casa, e uma delas da sua idade. Mirando o teto cinza, e as paredes cheias de mensagens de gerações que por ali passaram, ele pensava na menina. "Se o amor existe"- pensou- "foi ali que o descobri". Ele lembrava de um dia estar brincando com a menina, já não era analfabeto, muito menos andava rasgando as páginas da Bíblia. Ela olhou para ele com seus olhinhos verdes, pôs a mãozinha no seu braço e encostou seus lábios nos seus. Piá ficou petrificado, o coração pulava no peito. A menina riu e disse "agora somos namorados".
Eu disse que ela tinha cabelos curtos? Cortou por causa do tratamento. Tempos depois não havia mais cabelos. Uma vizinha de Piá morrera de câncer. Ele estava na rua brincando. Uma ambulância parou. Então a mulher saiu de casa amparada pelo marido. Estava muito pálida. Os olhos de Piá cruzaram os olhos da mulher. No velório ela estava de olhos fechados, mas ele sabia que ela não tinha olhos verdes.
"Agora somos namorados". E ele não sabia o que eram dos seus olhos verdes agora que as coisas não eram mais tão recentes.
Piá temia lobisomens e mulas-sem-cabeça. E agora Piá sabia que eles tinham um nome, câncer.

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