quinta-feira, 11 de maio de 2017

No fim do mundo


A gente cruzou o campo com lama cobrindo os calcanhares em poucos minutos. Tropecei num braço. Só o braço. Érica ia na frente, com a arma na posição de tiro e uma simulação de passo swat enlameado. Jorge, Pedro e Lia vinham em seguida. Eu cuidava da retaguarda. 


Tiros. Os miolos do Pedro encheram minha cara, eu atirei nem sei para onde. Lia já comia barro também, misturada com o que sobrava da cabeça de Pedro. "Por que a gente tem que se matar, a porcaria do mundo já não acabou mesmo?" - Até parece que alguém se importava, a gente ia acabar essa porcaria assim, com o último metendo uma bala, se sobrar alguma bala, na cabeça. A Érica gritava alguma coisa, mas eu só conseguia olhar para o que restou da cabeça do Pedro, uma pedaço da mandíbula ou sei lá o que. E talvez fosse um olho. Érica está chacoalhando meu ombro e apontando para baixo. Jorge tem uma mancha de sangue no peito, mas parece vivo. Lia o puxa, ela não se ferrou. Só caiu junto com Pedro. 

E a gente nem tem tempo para chorar. Mas chorar por quê? Sorte ter uma morte rápida assim. A gente puxou o Jorge para trás de um pedaço de muro. "Ele dançou" - disse. Mas Érica disse que não ia perder mais ninguém. Louca. Não percebe que já perdeu tudo, que não tem o que perder mais. O mundo acabou, eu queria gritar, mas o desgraçado continuava atirando na gente. 

E a Érica continuava me xingando. Porcaria, já não tava ruim o suficiente? Senti vontade de atirar na Érica, e acabar com a Lia e o Jorge de uma vez. Cara, eu não aguento mais isso, mas também não quero dar um tiro na cabeça. Mas não dá. Não é esperança, é algum tipo de teimosia, uma vontade de vingar essa porcaria toda na cara de alguém... Como se alguém fosse culpado pelas bombas, quando elas caíram, quando o mundo acabou e essa merda toda de sociedade mostrou as presas afiadas. O homem é o lobo do homem, e eu não sabia. Eu ainda acreditava na bondade humana. 

Que sentimento era aquele? Coisa nova, nem medo, nem ódio. Seria o tal instinto ancestral ou era só adrenalina mesmo? Eu pulei pro meio da lama, chovia bala. Eu tropecei no Pedro e caí. Mas levantei logo, pulei para trás de uma carcaça de carro. Que carro era? Chovia. Então pude ver de onde vinha. Uma lage. Corri por um corredor cheio de gente apodrecida. E subi por trás. Não olhei, atirei. Uma vez, duas, até descarregar a arma. 

Então fiquei lá, ouvindo o clique do cão cada vez que acionava o gatilho da arma vazia. 

Era uma garota. Eu conhecia a garota da lage. Da escola. De mãos dadas. Geografia, história e cantina. 

A chuva continuou caindo. Eu de joelhos, que sentido há no mundo? Nenhum. E tudo continua, até o último, até a última bala....

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