sábado, 9 de julho de 2016

Essa noite eu fui um soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Essa noite eu fui um soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro...
Subíamos uma viela estreita, eu e meu parceiro, com as laterais da viatura quase tocando as paredes. O rádio zumbia captando sei lá que onda de estática. Era ronda, ronda rotineira. Que é isso parça? Três anos fazendo isso, de boa. É só mais um plantão.
O parceiro parecia perdido com as mãos ao volante, talvez pensando nas doze horas que teria no BICO após terminar o plantão. Instintivamente eu acariciava a coronha da .40 que jazia apoiada sobre a minha perna direita.
Um garoto, uns 11 anos, está na frente do veículo. Paramos. Ele nos olha com o ódio do mundo, com o inverno nos olhos que anunciam a morte do mundo! E faz um gesto como se tivesse uma arma nas mãos. Vai morrer PM!
Mal o menino se enfiara por um beco, um projétil estilhaçou o para-brisas dianteiro lançando um milhão de pequenas estrelas de gelo na nossa cara.
O rádio gritava! O morro brilhava com o tracejado das balas correndo como Berserkers enfurecidos que buscam a glória de Odin.
Saímos com dificuldade da viatura, eu tenho sangue na farda, sangue na cara, sangue na arma...
De cima das lajes olhos infernais nos contemplavam. Mas eu nasci na periferia, eu sou filho de morro, meus irmãos, meus amigos...
O mundo era fumaça, brilho incerto e barulho de tiros. Os gritos de guerra enchiam a rua de formas negras, de perspectivas escuras.
E a bala lançada por sorte atinge a fronte do meu camarada, 38 anos, 15 de PM, três filhos e um segundo casamento, com um bom tanto de sonhos, de sonhos? De SONHOS!!!
O tempo a n d a  d e v a g a r, cada imagem é um frame eterno nos meus olhos sujos da vida. A bala ardente gira no espaço. Baila quando atinge o cranio tão mole.Eu vejo a onda de choque que avança pela carne, pela cabeça, assomando pela nuca. A carne se parte, a cabeça se abre, e os miolos cobrem a noite escura desse dia tão denso.
A carne estilhaçada, vermelha, pulsante, enche a farda, e se espalha sobre o carro, a calçada, a minha cara.
E aqueles 38 anos de vidas, de sonhos, se vão como a fumaça da manhã num dia quente de verão.
Eu atiro. Mas para onde? Em quem? Eu vou morrer, mas quem teme a morte vivendo todo dia no limiar do seu templo? e a morte é minha medida, a incerta linha que me separa do agora para o agora que se avizinha.
Eu atiro, e um corpo cai. Eu atiro e as sirenes gritam. Eu atiro, e o sangue fervilha e eu canto a canção negra de ódio dos eternos guerreiros que matam e morrem sem saber porquê.
E as ruas se inundam de sangue. A violência abraça o morro, mas o morro não se abala, pois não conhece outra realidade.
Quando os tiros cessam, e o barulho se afasta, eu olho ao redor. E só vejo o menino com a barriga para cima e os olhos vidrados no céu.
O menino ainda empunhando sua arma invisível com o fuzil visível do lado.
Um IPM, cadeia. Os jornais falam da criança morta por policiais. Até organismos internacionais falam do meu crime. Eu não queria matar uma criança. Mas nessa guerra que nos lançaram somos todos crianças, morrendo e morrendo na viela escura.
E eu acordei.

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