“A
serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus
tinha feito”. Gênesis 3:1
Os
grandes olhos vermelhos pareciam encará-lo a partir da imagem em relevo que
adornava a fachada do Templo Ofita. Uma serpente enrolada num cálice,
simbolizando, estava no panfleto, a sabedoria destilada pelo réptil do Éden
sobre o sacrifício, também simbólico, do Cristo na cruz.
Na
entrada uma jovem com não mais que vinte anos, usando uma longa túnica marrom
clara, o saudou na maneira habitual dos ofitas, com um logo beijo na face
esquerda, o lado do coração.
“Com
um beijo” – pensou- “Judas traiu Jesus”.
Mas
os ofitas celebravam a sacralização do inverso, o que para as outras seitas
cristãs era a traição suprema, para eles era o ritual de entrada no “pleroma de
Sophia”, na plenitude da sabedoria.
A
jovem o conduziu para um dos assentos reservados aos visitantes. Uma segunda
jovem, trajada com uma túnica azul, trouxe uma bandeja em que estavam dispostas
taças com serpentes estilizadas contendo a água sacralizada, a versão ofita da
água benta católica.
Oliveira
pegou a taça com receio, olhou um tempo para ela.
-
Nós não envenenamos nossos visitantes- disse sorrindo a moça que o servira. –
Nossa missão é ser o antídoto para o veneno da ilusão deste mundo.
Oliveira
esboçou um sorriso forçado e bebeu a água. Sentiu-se um tolo, pois esperava
sentir algo estranho, um amargor, alguma alteração no sabor. Era provavelmente
água, apenas água que passara por algum ritual com rezas e transubstanciações
místicas.
Ele era, como diziam seus colegas, um especialista em tradições religiosas. Mas não
foi por seus interesses metafísicos que Oliveira adentrou o Templo Ofita
naquele dia, ele estava ali investigando uma série de desaparecimentos e
algumas denúncias vagas sobre rituais envolvendo sacrifício humano.
Nada
daquilo fazia sentido para ele. O culto ofita inspirava-se em escolas gnósticas
dos primeiros séculos da era cristã e não havia nesses cultos a prática
sacrificial, fosse ela animal ou humana. O culto gnóstico era um culto de
mistérios que exaltava a gnose, o conhecimento como única forma de salvação.
Para os gnósticos, a matéria era produto das mãos de um demiurgo, um deus mau,
e era imperativo livrar-se da matéria para alcançar o verdadeiro divino. A
gnose era uma leitura cristã de rituais místicos e escolas de mistério com uma visão
peculiar da metafísica platônica. Entre os gnósticos havia diversas escolas,
algumas eram chamadas de “ofitas” por verem na serpente do Éden um ser
salvífico que era o responsável pela entrada do conhecimento do bem e do mal no
mundo. Entretanto, os ofitas modernos apenas se baseavam nesses cultos antigos,
pois a sua leitura, embora lembrasse muito os ofitas dos primeiros séculos da
era cristã, era uma forma mística de adoração ao ideal presente no símbolo da
serpente, ao mesmo tempo em que pregava a plena regeneração da humanidade
decaída através de uma espécie de catarse mística, uma união com o inefável,
nos seus êxtases rituais.
A
lua estava alta quando Oliveira deixou o templo, estava um pouco decepcionado,
esperava ter algum elemento para fechar logo esse trabalho. Acreditou que pudesse haver ali algum tipo de pregação alienante que levasse as pessoas com tendências suicidas
a concretizarem sua fixação. O gnosticismo pregava o desapego total pela
matéria. Entretanto, os ofitas modernos não agiam dessa forma, embora
acreditassem no mundo como uma ilusão, pregavam a experiência sensorial como um
dos meios do êxtase místico, o “mergulho em Sophia”, inclusive o sexo, quando
praticado de acordo com algumas regras estabelecidas pelo clero da organização.
Normas claramente tomadas de empréstimo do tantrismo. A isso chamavam de
“sacralização do inverso”.
Eram
umas oito quadras de caminhada até a estação de metrô mais próxima. Ele gostava de caminhar, costumava dizer que era peripatético, mas para consigo
mesmo.
Quando
passava em frente a um prédio pouco iluminado, pareceu ter visto algo se
movendo pelas paredes. Uma sombra do tamanho de um homem.
“Minha
mente deve estar me pregando peças”- pensou.
Deu
mais um passo e ouviu algo atrás de si, virou-se a tempo de ver o mesmo vulto
voar para dentro de uma das janelas quebradas.
-Mas
que diabos é isso?
Oliveira
caminhou até uma das portas abertas e deu uma boa olhada para dentro. Não via
nada, exceto montes de lixo e alguns colchões velhos. O local era dormitório
para mendigos.
Deu
um passo para dentro. Sentiu uma corrente de ar gelado vindo do interior, mas a
noite estava quente. Os pelos da sua nuca estavam arrepiados. Tentava controlar
sua respiração e sua mente, mas por alguma razão pensava nos djins
pré-islâmicos e em Lilith, a primeira mulher de Adão pela Cabala.
Alguma
coisa obstruiu a porta, quando tentou se virar, Oliveira foi tolhido por algo
que o arrastou para as sombras. Ele não conseguia ver o que era, mas sentia a
pele fria e escamosa, como se um enorme réptil o tivesse arrebatado para as
sombras. Tentou golpear o local onde imaginava estar a cabeça, mas o seu
golpe atingiu o vazio. Rolaram pelo chão, algo cortou as costas do policial. A
coisa estava em volta dele, tentando sufocá-lo como uma cobra faria com sua
presa. Ele estendeu a mão e alcançou um objeto, era uma garrafa. Bateu com força
. Deu um segundo e um terceiro golpe e quando ergueu o braço para um novo golpe
algo chicoteou sua mão, estilhaçando a garrafa contra uma das paredes.
Oliveira
estava desesperado, sentia as garras do que quer que fosse rasgando sua carne. Imaginou-se morto
como uma cobaia, engolido e digerido lentamente em algum canto escuro.
Então,
como se algo tocasse sua mente, percebeu que sua mão estava sobre o cabo da
pistola .40 que trazia em sua cintura. Disparou tomando o cuidado de não
acertar a si mesmo, a criatura soltou um gemido rouco e afrouxou seu aperto
mortal, mais dois disparos e ela parou de se mexer.
Oliveira ficou alguns segundos deitado de barriga para cima, ofegante. Levantou-se
lentamente, seu corpo inteiro doía e sangue escorria da sua testa. Pegou seu
celular e apontou a luz do display para o local onde estava seu agressor.
Ele estava paralisado de terror e surpresa, diante dele havia apenas um jovem com
não mais que dezenove anos. Estava nu.
***
Em
poucos meses Oliveira ouvia sua sentença, sentado e fitando o ladrilho, cujas
formas lembravam vagamente duas serpentes enroladas num coito infernal e
cercadas por chamas.
O
Tribunal do Juri estava lotado e muitas pessoas faziam vigília no lado de fora.
O crime perpetrado por alguém que deveria proteger os inocentes chocou a cidade
e continuou sendo explorado por jornalistas sensacionalistas quando a grande
mídia já o esquecia.
Oliveira
escapou da pena por homicídio doloso, como a princípio fora acusado, quando foi
levantada a hipótese de crime passional. Foi condenado a três anos e meio no
regime aberto em prisão domiciliar.
Foram
consideradas e profundamente exploradas, por acusação e defesa, todas as
nuances do crime. O fato de ter sido cometido num local escuro onde o acusado
não tinha condições de avaliar o número de agressores e as possíveis armas
utilizadas. Por outro lado, a promotoria insistiu no fato de que Oliveira era
um policial com mais de três mil horas de treinamento em sua carreira, que tinha
condições de avaliar o perigo real e responder de forma adequada ao tipo de
agressão perpetrada, “ainda mais que”, considerou o promotor, “o acusado é um
alto graduado na técnica de luta e defesa pessoal israelense, Krav Magá”.
Uma
das coisas que serviu para amenizar a pena foi o fato de Oliveira ter sido
encontrado profundamente confuso e com ferimentos que poderiam ter sido
produzidos por mais de um agressor.
Isso,
entretanto, não salvou seu emprego, ele fora excluído dos quadros da polícia
seis meses antes. Esperava ser inocentado nesse julgamento, o que ensejaria
um processo que poderia reconduzi-lo ao cargo. Um processo administrativo para
exclusão corre à revelia do processo criminal, pois tanto o interesse em vista,
quanto a legislação utilizada, correm caminhos diferenciados. Para o procurador
que o exonerou, era evidente que houvera imprudência, imperícia e
negligência por parte do policial no trato com a situação. Ele deveria e
poderia ter evitado tirar uma vida , ainda mais que esse jovem morto era uma
das pessoas desaparecidas que levaram a polícia a investigar o Templo Ofita.
***
Um
ano inteiro se passou. Oliveira agora leciona História numa escola particular
mantida por um familiar distante. Foi muito difícil arrumar um emprego,
considerando a exposição que seu caso recebeu.
Os
dias passavam lentos e pesados, vez por outra Oliveira via seu nome citado como
um exemplo de impunidade. Familiares do rapaz morto davam entrevistas, faziam
manifestações, deixavam mensagens com ameaças em sua caixa de correio e criavam
tantas dificuldades quanto pudessem para que ele não tivesse uma vida normal.
Durante
algum tempo ele quase naufragou num estado de depressão que o teria levado
ao suicídio, mas então, lentamente, foi se recuperando. Embora a dor de ter
matado aquele jovem fosse quase irremediável, havia nele a certeza de que
o episódio escondia algo mais, que garotos de dezenove anos não podem
derrubar um homem adulto e forte como ele com as mãos nuas e que o corpo que
sentira naquela noite era algo mais que
humano.
Tinha
pesadelos quase todas as noites, sentia a pele fria a escamosa enrolada no
seu corpo, esmagando seus ossos e engolindo-o ainda vivo. Sentia as entranhas
do mostro e seus líquidos digestivos reduzindo-o a uma massa disforme. Acordava
trêmulo e todo suado e jurava a si mesmo descobrir o que houvera naquela noite.
Durante
meses Oliveira se preparou. Exercitava-se diariamente e gastava horas e horas
todas as semanas pesquisando dados que poderiam levá-lo à resolução do mistério. Sabia que estava ligado ao Templo
Ofita, seria muita coincidência ter sido atacado daquela forma depois de sair de um
culto à serpente.
Pesquisou os diversos ramos da Gnose antiga,
as tradições místicas que tinham algum tipo de simbolismo ofídico. Procurou
relatos na Bíblia sobre as imagens relacionadas, tais como o dragão, que
segundo o Apocalipse de João, era uma das variações da Serpente do Éden e
estava relacionada com Satanás, a personificação cristã do mal. Pesquisou
tradições medievais ligadas a São Jorge, o épico de Beowulf e suas imagens que
remetiam aos últimos anos da Idade Antiga. Estudou tradições e mitos do oriente.
Numa
parede de seu porão, Oliveira colou as principais informações. Havia imagens
antigas, citações de obras pouco conhecidas de alquimistas medievais, lendas
árabes e recortes de jornais onde havia algum tipo de notícia vinculada ao
tema, mesmo que de forma superficial. Pesquisou as lendas modernas envolvendo o
avistamento de serpentes ou monstros
marinhos similares, desde Loch Ness
até os relatos da Amazônia.
Descobriu
que, quando se tratava da Serpente, as informações eram sempre ambíguas, muitas
vezes era o mal, noutras o bem. A Serpente era tentação, mas era sabedoria e
prudência. Basilisco, Jörmundgander, Nessie...ele parecia estar num beco sem saída.
Então tudo mudou. Numa manhã, abriu sua
caixa de correio e dentro encontrou um envelope com o símbolo do Templo Ofita. A serpente no cálice. Oliveira olhou para todos os lados esperando
ver alguém, ou algo. A rua estava deserta. Entrou para dentro de casa e desceu
ao porão. Olhou para o envelope durante algum tempo, como se esperasse que a
serpente começasse a falar ou saísse de lá e se enrolasse na sua garganta. Foi
tomado por indecisão, algo entre o medo de ser engolfado por algo maligno e a
certeza de que precisava ser engolfado por esse algo para descobrir a solução desse mistério que ameaçava acabar
com sua vida.
Dentro do envelope havia um convite.
***
O Arqueon
Andreas caminhava ao lado de Oliveira pelo gramado. Era um belo dia de sol. Uma
brisa suave mantinha o frescor. Eles falavam e sorriam como velhos amigos. Andreas
era alto e forte e não aparentava os quase sessenta anos que tinha. Oliveira
entrou no seu gabinete três meses antes, trazendo uma vida destruída e um
potencial desejável para a organização de Oph,
o Espírito-Serpente de Sophia.
-Eu matei aquele jovem – disse o aflito Oliveira.
-Ah! Aquilo? Sim, foi lamentável, mas cumpriu uma
função maior, nós ofitas entendemos que o mal é sempre uma porta para o
bem. Oph tinha algo para você, mas nosso mensageiro não foi hábil na
transmissão dessa mensagem. Entretanto alcançamos nosso objetivo. O mundo e a
vida são ilusões. O que seria a morte nisso? Que poder ela tem sobre algo que
nem mesmo existe?
Vieram muitas conversas depois e a cada uma delas
maior era o sentimento de amizade entre ambos, embora, no seu íntimo, Oliveira
ainda buscasse respostas. Convinha fazer o jogo, aprender, descobrir. Ser
paciente. Prudente como serpente e
simples como pombo.
Ele sentia que o Arqueon, o Eon Superior, não era alguém mau, que vivia o que cria. O que o
levava a suspeitar de alguma outra ordem dentro da instituição. Ele ouvia
muitos relatos fantásticos, comuns entre místicos, mas buscava manter suas
dúvidas muito bem guardadas.
Logo percebeu que o ofismo era uma ordem de
“iniciações”, que escondia seus segredos por trás de uma sequência de graus em
que cada nova etapa trazia novos conhecimentos. Nesse sentido, o Templo Ofita
funcionava como uma ordem maçônica.
Era um jogo de assimilação, ele lia tudo o que lhe
davam e continuava suas pesquisas por fora. Procurava em tudo parecer um ofita
tradicional, imitava gestos, palavras e o tipo de piedade comum daqueles homens
e mulheres.
Algo que o impressionou era a ausência de apelo
financeiro e, contudo, a organização parecia não ter necessidade de nada. De
onde vinha o dinheiro para tudo, considerando a suntuosidade do próprio Templo, todo revestido com mármore negro?
Sim, Oliveira sabia, havia uma hierarquia e um
conselho de homens espiritualmente mais
evoluídos, mas no dia a dia todos se tratavam como irmãos e iguais,
inclusive o Arqueon, espécie de
sumo-sacerdorte, que costumava ele mesmo cuidar dos jardins do templo.
A importância do Templo era limitada, alguns rituais
e as reuniões públicas eram realizadas lá, mas os principais rituais aconteciam
na Associação do Templo, uma chácara que ficava numa região rural e
completamente fechada a olhares estranhos.
Nesse meio tempo Oliveira passou por dois rituais,
um batismo em água semelhante ao ritual cristão e um batismo em cinzas que
lembrava uma velha tradição popular. Entretanto, em nenhum dos dois ele viu
mais que simples simbolismo. Não havia nem mesmo a menção de um sacrifício
humano, como o que era celebrado pelo cristianismo histórico.
Oliveira ficou sabendo que a base do culto ofita era
uma Interação com Oph ou Mergulho em Sophia, algo muito citado,
mas pouco ou nada explicado. Ele imaginou, a princípio, em algo semelhante à relação do cristão com a
figura do Espírito Santo, mas depois veio a saber que Oph não era o Espírito
Santo, mas a própria Serpente do Éden. Seria o ofismo, na realidade, Satanismo?
Não importava. Apesar de ter se especializado em crenças, ele não era um
homem supersticioso.
***
Numa noite em que foi convidado para uma ritual
secreto tudo mudou. Havia muitos homens guarnecendo as entradas da chácara do
Templo, alguns portavam armas. A
atmosfera no salão principal, local onde eram realizados os principais rituais,
era espectral. Todas as paredes estavam cobertas por cortinas vermelhas e no
altar uma grande pira ardia. O salão estava cheio, as pessoas trajavam túnicas
verdes com capuzes. Ele recebeu uma túnica semelhante.
Sobre o altar
havia uma mesa de pedra e sobre ela uma espada curta com uma cabeça de serpente entalhada no cabo. Aquela cena preocupou Oliveira, ele seria testemunha de um
sacrifício humano?
Andreas estava ao lado do altar, mas não era o mesmo
homem, havia nele algo de estranho, de maligno, seus olhos eram negros como a
noite e as chamas pareciam circundá-lo de modo intencional, como se elas fossem
seres vivos.
Oliveira procurou aproximar-se para ver melhor. Viu
quando quatro pessoas subiram ao tablado e se ajoelharam ao redor da imensa
pira. Andreas passou a espada sobre a cabeça de cada um deles. A multidão
entoava uma canção numa linguagem que Oliveira identificou com um dialeto
aramaico, talvez canaanita.
Seu coração estava acelerado, ele tentava imaginar
qual seria o próximo lance, mas nada em seus conhecimentos parecia ajudar
naquela hora. Uma das pessoas que estava ajoelhada ao redor da pira se levantou
e baixou seu capuz, era a jovem que recebera Oliveira em sua primeira ida ao
templo. Ela se aproximou em passos leves do altar e deixou cair sua túnica,
estava nua. Oliveira estava desesperado, procurava chegar mais perto, mas o
grupo estava muito unido. A jovem deitou sobre a mesa de pedra e Andreas ergueu
a espada. Oliveira gritou desesperado, mas sua voz não saiu. Entretanto o que
ele esperava não ocorreu, Andreas baixou a espada delicadamente e a colocou
sobre o corpo alvo e nu da jovem, com o cabo entre seus seios.
Oliveira estava bem próximo do altar, ele lutava
para alcançar o tablado, mas as pessoas pareciam um só corpo impedindo a
passagem.
Ele colocou a mão esquerda na beira do tablado
procurando um ponto de apoio para subir. Nesse momento algo chamou sua atenção,
as chamas da pira aumentaram sem que ninguém houvesse alimentado o fogo.
Aumentaram e se tornaram escuras, alaranjadas perto da base a praticamente
azuis no topo.
A sua atenção se voltou para a jovem sobre a
mesa, ela tremeu levemente e ficou translúcida. Quando olhou novamente, a moça não
estava lá, mas o tablado era ocupado por uma forma negra e alongada que
lembrava um lagarto enorme. A coisa levantou e abriu duas enormes asas como se
fosse um morcego. Ela não se transformou naquele monstro, na verdade
desapareceu completamente antes que ele tomasse seu lugar. A coisa alçou voo e
deu um rasante sobre o grupo, que urrava de prazer. As outras três pessoas
também haviam sumido e em seus lugares os mesmos tipos de criaturas espreitavam
o salão.
Oliveira só percebeu quando estava no ar, ele estava
sendo carregado por duas daquelas coisas. Foi lançado pesadamente sobre a
mesa de pedra, algo se quebrou com a queda, ele desmaiou com a
dor aguda em seu lado esquerdo.
Quando acordou viu a face sombria de Andreas.
-Este é um grande dia para você irmão. Nesta noite
você terá o privilégio de encontrar Oph, de mergulhar em Sophia!
Atrás do Arqueon, as imagens negras o observavam com
brilhantes olhos vermelhos. Ele estava nu e sobre seu peito descansava a
espada. Andreas disse algumas palavras que ele não entendeu, as chamas
assomaram-se ainda mais e as quatro criaturas soltaram urros estridentes.
Oliveira estava aterrorizado. Começou a chorar e a
implorar, mas sua voz parecia presa. Houve um momento de silêncio e então um
som como o de metal sendo retorcido tomou o ambiente. Diante do altar uma massa
negra começou a tomar forma até assumir um formato triangular. Dois brilhantes olhos
vermelhos surgiram.
Oliveira gemia e chorava. Fechou os olhos e
tentou rezar, mas não encontrou as palavras, nem a fé, quando os abriu novamente percebeu que os
olhos vermelhos estavam agora numa cabeça grotesca de uma criatura que lembrava
as outras, exceto por seu tamanho, que era quase o dobro.
Andreas estava ajoelhado e com as mãos levantadas,
mas a criatura o ignorou. Passou por ele e se colocou diante da mesa, suas
presas salivavam. Oliveira olhou bem fundo naqueles olhos vermelhos esperando
ver o inferno. Mas o que viu foi apenas maldade, não de um tipo sobrenatural,
mas a maldade de uma criatura pensante como ele mesmo. Seu terror foi dando
lugar à curiosidade e por fim ele estava analisando seu algoz. Uma língua
bífida massageava seu rosto, como se o mostro esperasse sentir seu gosto antes
de devorá-lo.
Quando o medo sumiu, seus olhos se fundiram com os
da criatura e ele viu e ouviu coisas de um outro mundo, experimentou uma forma
de raciocínio totalmente diferente da humana e a ausência de preocupações
morais humanas. Aquela criatura
queria apenas ser adorada, tudo aquilo era um espetáculo grotesco e sem
sentido. Oph também se surpreendeu com a ligação e, por um momento, Oliveira viu
medo em sua mente.
Oph viu no humano a sua frente algo destrutivo, pela
primeira vez ele tomava contado com essa faceta humana. Até então só conhecera
mentes fanatizadas pelo desejo de superar a vida terrestre por uma revelação
transcendental. Oliveira não era assim, ele era, em essência, um racionalista.
Seu conhecimento das tradições metafísicas era a busca pelo humano e não pelo
transcendente. Oliveira temia a morte, temia ser devorado num banquete ritual, mas não temia o deus que Oph simulava ser.
O medo cresceu até se tornar terror. Oph entendeu o perigo que se ocultava
naquela espécie para sua própria espécie, pois ele mesmo era o exemplar perfeito
de ser que explorava naqueles primatas de pele fraca, uma criança brincando no
escuro!
Oph afastou-se cambaleante pela revelação, mas Oliveira já estava em pé.
Ele agora não era a presa, mas o predador sedento. Oph fitou os olhos negros de
Oliveira e sentiu o inferno que tentava criar nos outros, ele, de costas ainda,
deu um passo para o portal negro. Quando já sentia o frescor do portal, ouviu
um grito aterrador vindo da garganta do primata branco enquanto este
saltava.
Andreas tentou alcançar Oliveira, mas era tarde. A espada atravessou o coração
de Oph enquanto os dois flutuavam para dentro da escuridão do portal seguidos
por Andreas e os quatro semelhantes de Oph.
Oliveira caiu sobre Oph e continuou golpeando o
corpo imenso até que um lamento o tirou do torpor da raiva. A seu lado Andreas
estava soluçando ajoelhado, gemendo como um animal ferido.
Então o som o atingiu. Sua respiração estava pesada
e ele foi virando vagarosamente. Quando estava de costas para o corpo de Oph
ele viu. A espada caiu de suas mãos e o queixo de sua face. Havia milhares
deles ajoelhados. Uma pira gigantesca, um altar.
Ele estava sendo cultuado.
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