segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Os olhos da Serpente



“A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito”. Gênesis 3:1

Os grandes olhos vermelhos pareciam encará-lo a partir da imagem em relevo que adornava a fachada do Templo Ofita. Uma serpente enrolada num cálice, simbolizando, estava no panfleto, a sabedoria destilada pelo réptil do Éden sobre o sacrifício, também simbólico, do Cristo na cruz.

Na entrada uma jovem com não mais que vinte anos, usando uma longa túnica marrom clara, o saudou na maneira habitual dos ofitas, com um logo beijo na face esquerda, o lado do coração.

Com um beijo” – pensou- “Judas traiu Jesus”.

Mas os ofitas celebravam a sacralização do inverso, o que para as outras seitas cristãs era a traição suprema, para eles era o ritual de entrada no “pleroma de Sophia”, na plenitude da sabedoria.

A jovem o conduziu para um dos assentos reservados aos visitantes. Uma segunda jovem, trajada com uma túnica azul, trouxe uma bandeja em que estavam dispostas taças com serpentes estilizadas contendo a água sacralizada, a versão ofita da água benta católica.
Oliveira pegou a taça com receio, olhou um tempo para ela.

- Nós não envenenamos nossos visitantes- disse sorrindo a moça que o servira. – Nossa missão é ser o antídoto para o veneno da ilusão deste mundo.

Oliveira esboçou um sorriso forçado e bebeu a água. Sentiu-se um tolo, pois esperava sentir algo estranho, um amargor, alguma alteração no sabor. Era provavelmente água, apenas água que passara por algum ritual com rezas e transubstanciações místicas.

Ele era, como diziam seus colegas, um especialista em tradições religiosas. Mas não foi por seus interesses metafísicos que Oliveira adentrou o Templo Ofita naquele dia, ele estava ali investigando uma série de desaparecimentos e algumas denúncias vagas sobre rituais envolvendo sacrifício humano.

Nada daquilo fazia sentido para ele. O culto ofita inspirava-se em escolas gnósticas dos primeiros séculos da era cristã e não havia nesses cultos a prática sacrificial, fosse ela animal ou humana. O culto gnóstico era um culto de mistérios que exaltava a gnose, o conhecimento como única forma de salvação. Para os gnósticos, a matéria era produto das mãos de um demiurgo, um deus mau, e era imperativo livrar-se da matéria para alcançar o verdadeiro divino. A gnose era uma leitura cristã de rituais místicos e escolas de mistério com uma visão peculiar da metafísica platônica. Entre os gnósticos havia diversas escolas, algumas eram chamadas de “ofitas” por verem na serpente do Éden um ser salvífico que era o responsável pela entrada do conhecimento do bem e do mal no mundo. Entretanto, os ofitas modernos apenas se baseavam nesses cultos antigos, pois a sua leitura, embora lembrasse muito os ofitas dos primeiros séculos da era cristã, era uma forma mística de adoração ao ideal presente no símbolo da serpente, ao mesmo tempo em que pregava a plena regeneração da humanidade decaída através de uma espécie de catarse mística, uma união com o inefável, nos seus êxtases rituais.

A lua estava alta quando Oliveira deixou o templo, estava um pouco decepcionado, esperava ter algum elemento para fechar logo esse trabalho. Acreditou que pudesse haver ali algum tipo de pregação alienante que levasse as pessoas com tendências suicidas a concretizarem sua fixação. O gnosticismo pregava o desapego total pela matéria. Entretanto, os ofitas modernos não agiam dessa forma, embora acreditassem no mundo como uma ilusão, pregavam a experiência sensorial como um dos meios do êxtase místico, o “mergulho em Sophia”, inclusive o sexo, quando praticado de acordo com algumas regras estabelecidas pelo clero da organização. Normas claramente tomadas de empréstimo do tantrismo. A isso chamavam de “sacralização do inverso”.

Eram umas oito quadras de caminhada até a estação de metrô mais próxima. Ele gostava de caminhar, costumava dizer que era peripatético, mas para consigo mesmo.

Quando passava em frente a um prédio pouco iluminado, pareceu ter visto algo se movendo pelas paredes. Uma sombra do tamanho de um homem.

“Minha mente deve estar me pregando peças”- pensou.

Deu mais um passo e ouviu algo atrás de si, virou-se a tempo de ver o mesmo vulto voar para dentro de uma das janelas quebradas.

-Mas que diabos é isso?

Oliveira caminhou até uma das portas abertas e deu uma boa olhada para dentro. Não via nada, exceto montes de lixo e alguns colchões velhos. O local era dormitório para mendigos.
Deu um passo para dentro. Sentiu uma corrente de ar gelado vindo do interior, mas a noite estava quente. Os pelos da sua nuca estavam arrepiados. Tentava controlar sua respiração e sua mente, mas por alguma razão pensava nos djins pré-islâmicos e em Lilith, a primeira mulher de Adão pela Cabala.

Alguma coisa obstruiu a porta, quando tentou se virar, Oliveira foi tolhido por algo que o arrastou para as sombras. Ele não conseguia ver o que era, mas sentia a pele fria e escamosa, como se um enorme réptil o tivesse arrebatado para as sombras. Tentou golpear o local onde imaginava estar a cabeça, mas o seu golpe atingiu o vazio. Rolaram pelo chão, algo cortou as costas do policial. A coisa estava em volta dele, tentando sufocá-lo como uma cobra faria com sua presa. Ele estendeu a mão e alcançou um objeto, era uma garrafa. Bateu com força . Deu um segundo e um terceiro golpe e quando ergueu o braço para um novo golpe algo chicoteou sua mão, estilhaçando a garrafa contra uma das paredes.

Oliveira estava desesperado, sentia as garras do que quer que fosse rasgando sua carne. Imaginou-se morto como uma cobaia, engolido e digerido lentamente em algum canto escuro.

Então, como se algo tocasse sua mente, percebeu que sua mão estava sobre o cabo da pistola .40 que trazia em sua cintura. Disparou tomando o cuidado de não acertar a si mesmo, a criatura soltou um gemido rouco e afrouxou seu aperto mortal, mais dois disparos e ela parou de se mexer.

Oliveira ficou alguns segundos deitado de barriga para cima, ofegante. Levantou-se lentamente, seu corpo inteiro doía e sangue escorria da sua testa. Pegou seu celular e apontou a luz do display para o local onde estava seu agressor.

Ele estava paralisado de terror e surpresa, diante dele havia apenas um jovem com não mais que dezenove anos. Estava  nu.

***

Em poucos meses Oliveira ouvia sua sentença, sentado e fitando o ladrilho, cujas formas lembravam vagamente duas serpentes enroladas num coito infernal e cercadas por chamas.

O Tribunal do Juri estava lotado e muitas pessoas faziam vigília no lado de fora. O crime perpetrado por alguém que deveria proteger os inocentes chocou a cidade e continuou sendo explorado por jornalistas sensacionalistas quando a grande mídia já o esquecia.

Oliveira escapou da pena por homicídio doloso, como a princípio fora acusado, quando foi levantada a hipótese de crime passional. Foi condenado a três anos e meio no regime aberto em prisão domiciliar.

Foram consideradas e profundamente exploradas, por acusação e defesa, todas as nuances do crime. O fato de ter sido cometido num local escuro onde o acusado não tinha condições de avaliar o número de agressores e as possíveis armas utilizadas. Por outro lado, a promotoria insistiu no fato de que Oliveira era um policial com mais de três mil horas de treinamento em sua carreira, que tinha condições de avaliar o perigo real e responder de forma adequada ao tipo de agressão perpetrada, “ainda mais que”, considerou o promotor, “o acusado é um alto graduado na técnica de luta e defesa pessoal israelense,  Krav Magá”.

Uma das coisas que serviu para amenizar a pena foi o fato de Oliveira ter sido encontrado profundamente confuso e com ferimentos que poderiam ter sido produzidos por mais de um agressor.

Isso, entretanto, não salvou seu emprego, ele fora excluído dos quadros da polícia seis meses antes. Esperava ser inocentado nesse julgamento, o que ensejaria um processo que poderia reconduzi-lo ao cargo. Um processo administrativo para exclusão corre à revelia do processo criminal, pois tanto o interesse em vista, quanto a legislação utilizada, correm caminhos diferenciados. Para o procurador que o exonerou, era evidente que houvera imprudência, imperícia e negligência por parte do policial no trato com a situação. Ele deveria e poderia ter evitado tirar uma vida , ainda mais que esse jovem morto era uma das pessoas desaparecidas que levaram a polícia a investigar o Templo Ofita.

***

Um ano inteiro se passou. Oliveira agora leciona História numa escola particular mantida por um familiar distante. Foi muito difícil arrumar um emprego, considerando a exposição que seu caso recebeu.

Os dias passavam lentos e pesados, vez por outra Oliveira via seu nome citado como um exemplo de impunidade. Familiares do rapaz morto davam entrevistas, faziam manifestações, deixavam mensagens com ameaças em sua caixa de correio e criavam tantas dificuldades quanto pudessem para que ele não tivesse uma vida normal.

Durante algum tempo ele quase naufragou num estado de depressão que o teria levado ao suicídio, mas então, lentamente, foi se recuperando. Embora a dor de ter matado aquele jovem fosse quase irremediável, havia nele a certeza de que o episódio escondia algo mais, que garotos de dezenove anos não podem derrubar um homem adulto e forte como ele com as mãos nuas e que o corpo que sentira naquela noite era algo mais que humano.

Tinha pesadelos quase todas as noites, sentia a pele fria a escamosa enrolada no seu corpo, esmagando seus ossos e engolindo-o ainda vivo. Sentia as entranhas do mostro e seus líquidos digestivos reduzindo-o a uma massa disforme. Acordava trêmulo e todo suado e jurava a si mesmo descobrir o que houvera naquela noite.

Durante meses Oliveira se preparou. Exercitava-se diariamente e gastava horas e horas todas as semanas pesquisando dados que poderiam levá-lo à resolução do mistério. Sabia que estava ligado ao Templo Ofita, seria muita coincidência ter sido atacado daquela forma depois de sair de um culto à serpente.

 Pesquisou os diversos ramos da Gnose antiga, as tradições místicas que tinham algum tipo de simbolismo ofídico. Procurou relatos na Bíblia sobre as imagens relacionadas, tais como o dragão, que segundo o Apocalipse de João, era uma das variações da Serpente do Éden e estava relacionada com Satanás, a personificação cristã do mal. Pesquisou tradições medievais ligadas a São Jorge, o épico de Beowulf e suas imagens que remetiam aos últimos anos da Idade Antiga. Estudou tradições e mitos do oriente.

Numa parede de seu porão, Oliveira colou as principais informações. Havia imagens antigas, citações de obras pouco conhecidas de alquimistas medievais, lendas árabes e recortes de jornais onde havia algum tipo de notícia vinculada ao tema, mesmo que de forma superficial. Pesquisou as lendas modernas envolvendo o avistamento de serpentes ou monstros marinhos similares, desde Loch Ness até os relatos da Amazônia.

Descobriu que, quando se tratava da Serpente, as informações eram sempre ambíguas, muitas vezes era o mal, noutras o bem. A Serpente era tentação, mas era sabedoria e prudência. Basilisco, Jörmundgander, Nessie...ele parecia estar num beco sem saída.

Então tudo mudou. Numa manhã, abriu sua caixa de correio e dentro encontrou um envelope com o símbolo do Templo Ofita. A serpente no cálice.  Oliveira olhou para todos os lados esperando ver alguém, ou algo. A rua estava deserta. Entrou para dentro de casa e desceu ao porão. Olhou para o envelope durante algum tempo, como se esperasse que a serpente começasse a falar ou saísse de lá e se enrolasse na sua garganta. Foi tomado por indecisão, algo entre o medo de ser engolfado por algo maligno e a certeza de que precisava ser engolfado por esse algo para descobrir a solução desse mistério que ameaçava acabar com sua vida.

Dentro do envelope havia um convite.

***

O Arqueon Andreas caminhava ao lado de Oliveira pelo gramado. Era um belo dia de sol. Uma brisa suave mantinha o frescor. Eles falavam e sorriam como velhos amigos. Andreas era alto e forte e não aparentava os quase sessenta anos que tinha. Oliveira entrou no seu gabinete três meses antes, trazendo uma vida destruída e um potencial desejável para a organização de Oph, o Espírito-Serpente de Sophia.

-Eu matei aquele jovem – disse o aflito Oliveira.

-Ah! Aquilo? Sim, foi lamentável, mas cumpriu uma função maior, nós  ofitas  entendemos que o mal é sempre uma porta para o bem. Oph tinha algo para você, mas nosso mensageiro não foi hábil na transmissão dessa mensagem. Entretanto alcançamos nosso objetivo. O mundo e a vida são ilusões. O que seria a morte nisso? Que poder ela tem sobre algo que nem mesmo existe?

Vieram muitas conversas depois e a cada uma delas maior era o sentimento de amizade entre ambos, embora, no seu íntimo, Oliveira ainda buscasse respostas. Convinha fazer o jogo, aprender, descobrir. Ser paciente. Prudente como serpente e simples como pombo.

Ele sentia que o Arqueon, o Eon Superior, não era alguém mau, que vivia o que cria. O que o levava a suspeitar de alguma outra ordem dentro da instituição. Ele ouvia muitos relatos fantásticos, comuns entre místicos, mas buscava manter suas dúvidas muito bem guardadas.

Logo percebeu que o ofismo era uma ordem de “iniciações”, que escondia seus segredos por trás de uma sequência de graus em que cada nova etapa trazia novos conhecimentos. Nesse sentido, o Templo Ofita funcionava como uma ordem maçônica.

Era um jogo de assimilação, ele lia tudo o que lhe davam e continuava suas pesquisas por fora. Procurava em tudo parecer um ofita tradicional, imitava gestos, palavras e o tipo de piedade comum daqueles homens e mulheres.

Algo que o impressionou era a ausência de apelo financeiro e, contudo, a organização parecia não ter necessidade de nada. De onde vinha o dinheiro para tudo, considerando a suntuosidade do próprio Templo, todo revestido com mármore negro?

Sim, Oliveira sabia, havia uma hierarquia e um conselho de homens espiritualmente mais evoluídos, mas no dia a dia todos se tratavam como irmãos e iguais, inclusive o Arqueon, espécie de sumo-sacerdorte, que costumava ele mesmo cuidar dos jardins do templo.

A importância do Templo era limitada, alguns rituais e as reuniões públicas eram realizadas lá, mas os principais rituais aconteciam na Associação do Templo, uma chácara que ficava numa região rural e completamente fechada a olhares estranhos.

Nesse meio tempo Oliveira passou por dois rituais, um batismo em água semelhante ao ritual cristão e um batismo em cinzas que lembrava uma velha tradição popular. Entretanto, em nenhum dos dois ele viu mais que  simples simbolismo. Não havia nem mesmo a menção de um sacrifício humano, como o que era celebrado pelo cristianismo histórico.

Oliveira ficou sabendo que a base do culto ofita era uma Interação com Oph ou Mergulho em Sophia, algo muito citado, mas pouco ou nada explicado. Ele imaginou, a princípio,  em algo semelhante à relação do cristão com a figura do Espírito Santo, mas depois veio a saber que Oph não era o Espírito Santo, mas a própria Serpente do Éden. Seria o ofismo, na realidade, Satanismo? Não importava. Apesar de ter se especializado em crenças, ele não era um homem supersticioso.

***

Numa noite em que foi convidado para uma ritual secreto tudo mudou. Havia muitos homens guarnecendo as entradas da chácara do Templo, alguns portavam armas. A atmosfera no salão principal, local onde eram realizados os principais rituais, era espectral. Todas as paredes estavam cobertas por cortinas vermelhas e no altar uma grande pira ardia. O salão estava cheio, as pessoas trajavam túnicas verdes com capuzes. Ele recebeu uma túnica semelhante.

 Sobre o altar havia uma mesa de pedra e sobre ela uma espada curta com uma cabeça de serpente entalhada no cabo. Aquela cena preocupou Oliveira, ele seria testemunha de um sacrifício humano?

Andreas estava ao lado do altar, mas não era o mesmo homem, havia nele algo de estranho, de maligno, seus olhos eram negros como a noite e as chamas pareciam circundá-lo de modo intencional, como se elas fossem seres vivos.

Oliveira procurou aproximar-se para ver melhor. Viu quando quatro pessoas subiram ao tablado e se ajoelharam ao redor da imensa pira. Andreas passou a espada sobre a cabeça de cada um deles. A multidão entoava uma canção numa linguagem que Oliveira identificou com um dialeto aramaico, talvez canaanita.

Seu coração estava acelerado, ele tentava imaginar qual seria o próximo lance, mas nada em seus conhecimentos parecia ajudar naquela hora. Uma das pessoas que estava ajoelhada ao redor da pira se levantou e baixou seu capuz, era a jovem que recebera Oliveira em sua primeira ida ao templo. Ela se aproximou em passos leves do altar e deixou cair sua túnica, estava nua. Oliveira estava desesperado, procurava chegar mais perto, mas o grupo estava muito unido. A jovem deitou sobre a mesa de pedra e Andreas ergueu a espada. Oliveira gritou desesperado, mas sua voz não saiu. Entretanto o que ele esperava não ocorreu, Andreas baixou a espada delicadamente e a colocou sobre o corpo alvo e nu da jovem, com o cabo entre seus seios.

Oliveira estava bem próximo do altar, ele lutava para alcançar o tablado, mas as pessoas pareciam um só corpo impedindo a passagem.

Ele colocou a mão esquerda na beira do tablado procurando um ponto de apoio para subir. Nesse momento algo chamou sua atenção, as chamas da pira aumentaram sem que ninguém houvesse alimentado o fogo. Aumentaram e se tornaram escuras, alaranjadas perto da base a praticamente azuis no topo.

A sua atenção  se voltou para a jovem sobre a mesa, ela tremeu levemente e ficou translúcida. Quando olhou novamente, a moça não estava lá, mas o tablado era ocupado por uma forma negra e alongada que lembrava um lagarto enorme. A coisa levantou e abriu duas enormes asas como se fosse um morcego. Ela não se transformou naquele monstro, na verdade desapareceu completamente antes que ele tomasse seu lugar. A coisa alçou voo e deu um rasante sobre o grupo, que urrava de prazer. As outras três pessoas também haviam sumido e em seus lugares os mesmos tipos de criaturas espreitavam o salão.

Oliveira só percebeu quando estava no ar, ele estava sendo carregado por duas daquelas coisas. Foi lançado pesadamente sobre a mesa de pedra, algo se quebrou com a queda, ele desmaiou com a dor aguda em seu lado esquerdo.

Quando acordou viu a face sombria de Andreas.

-Este é um grande dia para você irmão. Nesta noite você terá o privilégio de encontrar Oph, de mergulhar em Sophia!

Atrás do Arqueon, as imagens negras o observavam com brilhantes olhos vermelhos. Ele estava nu e sobre seu peito descansava a espada. Andreas disse algumas palavras que ele não entendeu, as chamas assomaram-se ainda mais e as quatro criaturas soltaram urros estridentes.

Oliveira estava aterrorizado. Começou a chorar e a implorar, mas sua voz parecia presa. Houve um momento de silêncio e então um som como o de metal sendo retorcido tomou o ambiente. Diante do altar uma massa negra começou a tomar forma até assumir um formato triangular. Dois brilhantes olhos vermelhos surgiram.

Oliveira gemia e chorava. Fechou os olhos e tentou rezar, mas não encontrou as palavras, nem a fé, quando os abriu novamente percebeu que os olhos vermelhos estavam agora numa cabeça grotesca de uma criatura que lembrava as outras, exceto por seu tamanho, que era quase o dobro.

Andreas estava ajoelhado e com as mãos levantadas, mas a criatura o ignorou. Passou por ele e se colocou diante da mesa, suas presas salivavam. Oliveira olhou bem fundo naqueles olhos vermelhos esperando ver o inferno. Mas o que viu foi apenas maldade, não de um tipo sobrenatural, mas a maldade de uma criatura pensante como ele mesmo. Seu terror foi dando lugar à curiosidade e por fim ele estava analisando seu algoz. Uma língua bífida massageava seu rosto, como se o mostro esperasse sentir seu gosto antes de devorá-lo.

Quando o medo sumiu, seus olhos se fundiram com os da criatura e ele viu e ouviu coisas de um outro mundo, experimentou uma forma de raciocínio totalmente diferente da humana e a ausência de preocupações morais humanas. Aquela criatura queria apenas ser adorada, tudo aquilo era um espetáculo grotesco e sem sentido. Oph também se surpreendeu com a ligação  e, por um momento, Oliveira viu medo em sua mente.

Oph viu no humano a sua frente algo destrutivo, pela primeira vez ele tomava contado com essa faceta humana. Até então só conhecera mentes fanatizadas pelo desejo de superar a vida terrestre por uma revelação transcendental. Oliveira não era assim, ele era, em essência, um racionalista. Seu conhecimento das tradições metafísicas era a busca pelo humano e não pelo transcendente. Oliveira temia a morte, temia ser devorado num banquete ritual, mas não temia o deus que Oph simulava ser. O medo cresceu até se tornar terror. Oph entendeu o perigo que se ocultava naquela espécie para sua própria espécie, pois ele mesmo era o exemplar perfeito de ser que explorava naqueles primatas de pele fraca, uma criança brincando no escuro!

Oph afastou-se cambaleante pela revelação, mas Oliveira já estava em pé. Ele agora não era a presa, mas o predador sedento. Oph fitou os olhos negros de Oliveira e sentiu o inferno que tentava criar nos outros, ele, de costas ainda, deu um passo para o portal negro. Quando já sentia o frescor do portal, ouviu um grito aterrador vindo da garganta do primata branco enquanto este saltava.  

Andreas tentou alcançar Oliveira, mas era tarde. A espada atravessou o coração de Oph enquanto os dois flutuavam para dentro da escuridão do portal seguidos por Andreas e os quatro semelhantes de Oph.


Oliveira caiu sobre Oph e continuou golpeando o corpo imenso até que um lamento o tirou do torpor da raiva. A seu lado Andreas estava soluçando ajoelhado, gemendo como um animal ferido.

Então o som o atingiu. Sua respiração estava pesada e ele foi virando vagarosamente. Quando estava de costas para o corpo de Oph ele viu. A espada caiu de suas mãos e o queixo de sua face. Havia milhares deles ajoelhados. Uma pira gigantesca, um altar.

Ele estava sendo cultuado.

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