Ajeitou
cuidadosamente as patas do gatinho. Deu dois passos atrás e apreciou sua obra.
Perfeita. Os gritos histéricos da mãe o tiraram de seus devaneios, a
seus pés o corpo do animal reproduzia uma rosa dos ventos com a cabeça no
centro. O tronco, devidamente dividido, juntamente com as patas, apontava as
quatro direções.
Disso
resultaram sessões de terapia infantil. Era a tentativa familiar de mudar o
destino do monstro que se insinuava nas ações inocentes da criança. Influência da televisão, vaticinou o
pai. Indiferença paternal, fulminou a
mãe.
Mas
para o pequeno Luis era apenas arte,
de um tipo diferente, é claro, mas arte.
Não entendia o assombro dos pais,
afinal, não matara o animal, encontrara-o já morto. Que mal havia em aproveitar
aquilo que a natureza se encarregaria de destruir mais tarde? Importava ao
animal se seria utilizado numa obra de arte ou simplesmente decomposto em
elemento mais simples? De fato, raciocinava ele, o último resultado era
inevitável, por que não interpor por ali o primeiro?
Luis
era ainda uma criança saindo ali da primeira infância, mas desde a mais tenra
idade seus pais já haviam percebido nele algo diferente, umas ações de
inteligência que fizeram crer ao orgulhoso pai ter em sua tutela um gênio das
alturas de um Einstein.
Sim,
o pequeno era inteligente, muito para a idade, é certo. Mas não estava nem
perto de brindar o mundo com uma nova relatividade ou criar um método qualquer
pelo qual a humanidade acenderia do atual estado dependente da queima de
hidrocarbonetos para a fantasia ilimitada das viagens interplanetárias.
Tinha
o pequeno Luis um talento diferente, um que produzia, a partir da anatomia
animal, uma série de figuras geométricas e pequenas ousadias que figuravam o
fractal.
O
que seria, para qualquer outro garoto, um desastre familiar e dias de profundo
remorso ouvindo as lamúrias intermináveis da mãe, vendo os olhos cheios de
dúvida e preocupação do pai e sendo exposto à interminável cantilena de um
desses ávidos discípulos de Piaget, foi para Luis a perfeita iluminação.
De
analisado se fez analisador e das palavras recheadas de programação
neurolinguística e sutis sugestões hipnóticas fez para si uma teoria complexa
e, a seu ver, completa sobre o modo de operação das mentes adultas e, o que era
melhor, o perfeito modelo de comportamento que deveria adotar para afastá-los
de suas preocupações e, por conseguinte, de sua imortal, posto que mortal,
arte.
Desde
então não houve criança mais carinhosa ou mais solícita com a mãe, nem mais
obediente ou aduladora com o pai. E das sessões logo recebeu alta, com louvores
que justificavam o extravagante valor
cobrado pelo terapeuta.
Cumpria
ser discreto, dizia de si para si o pequeno Luis. Sua arte era a expressão de
uma personalidade que apenas a uns poucos iluminados era dada a capacidade de
apreciar, se é que havia algum iluminado assim além dele mesmo. Afinal,
justificava, sua arte era, antes de tudo, uma forma profunda de benção que ele
dava a si mesmo, o produto do seu trabalho era a sua satisfação e não as
indulgências de uma numerosa turba de ignorantes afetados.
Luis
produzia sua arte no secretismo da sua mente, lá nos recônditos ele criava as
formas e as distribuía sobre um solo solícito e generoso. Consciente de que sua
arte chocava o vulgo, procurava não expor ao mundo seu talento. Vez por outro
reproduzia no silencia da alcova as obras que apenas imaginava. Colocava aqui
umas perninhas de besouro, ali umas antenas, acolá as cabecinhas de alguma
joaninha imprudente.
Sim,
os insetos remediavam por pouco a sua ânsia, eram fáceis de manipular, quase
não produziam sujeira e era fácil livrar-se dos resíduos depois. Entretanto, sentia que lhe faltava algo, que aquilo se afigurava apenas como treino, como
uma brincadeira que exigia uma complementação futura.
E
claro, havia o prazer inigualável de
preparar um mamífero, de ter sob as mãos o corpo flexível e macio, de
sentir nos dedos e nas pupilas o sangue.
Num dia em que a mãe estava ocupada com uma reforma na casa, pôs as mãos sobre um ratinho, ainda vivo, arrebatado das garras de uma gato. O animal jazia sem forças em sua mão, seus olhos se deslocavam da mancha vermelha sobre a cabeça para as pequenas ondulações produzidas pela respiração no ventre da criatura estertorante.
Correu
para o quarto, fechou a porta apressado e, depois de preparar o local, ficou a
estudar a matéria prima que o destino pusera em suas mãos. Vez por outra colocava o dedo com infinita perícia sobre o ventre do animal para sentir o
pequeno coração.
Nunca
matara, todo ser que tivera em mãos chegara lá já desprovido do sopro vital.
Sabia que essa era a diferença entre a arte e o assassinato, que dispor de um
corpo morto era diferente de dispor da vida.
Mais
uns minutos e o roedor deu seu último suspiro. Estava pronto o teatro para a
entrada do artista. Antes, porém, de desmembrar a criatura, sentiu nascer dentro
de si a ideia clara daquilo que seria seu caminho pelo resto da vida. Entendeu
que estava acima da sua dignidade simplesmente matar, pois não tinham em si
todos os seres essa capacidade? Mas uma obra autentica necessita de arte até na
configuração da matéria prima. Posto assim entendeu que, produzida com
expressão artística, a morte em si não era um obstáculo à sua arte, antes era a
via adequada a ela.
Luis
cresceu. Não se tornou o produtor de uma nova teoria revolucionária, como
queria o pai. Graduou-se engenheiro mecânico e ao fim do primeiro ano de formação
arrumou um emprego em outra cidade. Deixou o lar entre as lágrimas da mãe e os
tapinhas nas costas dados pelo pai.
O
tempo passou. Luis era agora um respeitado funcionário da Newtec S/A, conhecido
e reconhecido por seus colegas como um homem reservado, porém gentil e educado. Nunca
se casou, ocupava seus dias de folga com leituras e passeios a pé pelos parques
da cidade e suas noites com sua incomunicável arte.
No
princípio Luis saciou sua necessidade artística com cães, gatos e outros
pequenos animais. Certa vez procurou uma propriedade interiorana e comprou uma rês,
a qual transformou em arte numa tarde muito satisfatória.
O
primeiro ser humano lhe veio às mãos numa tarde de inverno, um mendigo que
encontrou numa de suas caminhadas. Era um velho meio cego, com uma barba cinza
que alcançava metade da barriga e crostas de sujeira que estavam lá havia muito
tempo.
Ele
atraiu o homem com promessas de comida e uma boa garrafa de cachaça. É claro
que o homem não acreditou imediatamente em Luis, na verdade este o estava
cevando havia algumas semanas. Luis não era amador, apesar da inexperiência com
seres humanos. Ele havia preparado tudo para este momento, tinha até produzido
uma engenhoca que poria fim à infeliz existência do homem de forma limpa,
rápida e à altura de sua arte.
O
engenho era uma cadeira com vários apetrechos instalados nela. Era feita de tal
forma que o seu acionamento era o resultado das ações da pessoa lá instalada,
de forma que Luis mantinha sua dignidade intacta não sendo o autor direto de um
assassínio. Assim satisfazia a ética, pensava.
Luis
finalmente chagara ao ápice de sua arte. Ápice que aguardava paciente a
inserção de seres humanos. Depois
disso, Luis nunca mais quis trabalhar com animais, a preparação de sua infância.
A maturidade exigia matéria prima adequada.
Assim
como Luis passara dos animais aos seres humanos, cumpria ascender na hierarquia
social humana. Não que ele acalentasse algum tipo de preconceito social, ele
era, na verdade, indiferente a toda questão desse tipo. Sua única preocupação
era sua arte e as máximas dos filósofos, seus iguais. Insistia consigo mesmo
que Aristóteles fora um dos seus, que suas dissecações eram, na verdade, uma
expressão artística que encontrava agora sua plena manifestação nele.
Atingiu a perfeição no desmembramento do corpo humano, conhecia cada junção de
cor, sabia de olhos vendados onde estavam os vasos sanguíneos, e conhecia os
órgãos pela textura em suas mãos.
Mas
um artista maduro exige, com o tempo, um público, embora ignorante, bem
sabia ele. Era preciso imortalizar sua arte, já não se satisfazia apreciando
sozinho os resultados do seu trabalho.
Luis
montou um pequeno laboratório fotográfico em casa e estudou pormenorizadamente
todas as características dessa arte, até que chegou a um ponto satisfatório. Obviamente,
o interesse de Luis não era a fotografia em si.
Costumava fotografar sua arte e revelar a foto antes de se desfazer dos
resíduos, se não ficava boa, ele alterava a luz, mudava o foco, a direção.
Colocava nas fotos o mesmo ardor com que fazia sua arte.
Fazia
cópias e as enviava para a polícia, para os jornais, para as famílias das
vítimas, mas tinha sempre o cuidado de não deixar impressões digitais ou
qualquer outro resíduo que pudesse servir para identificá-lo. Acabar seus dias
numa prisão não estava em seus planos, aliás, segundo sua lógica, suas fotos
deveriam ser expostas em um museu, considerando que a arte em si era perecível,
e seu busto ocupar espaço em praça pública.
Os
jornais o chamavam de o novo Jack, o
Estripador. As vítimas foram se avolumando e ficava cada vez mais difícil
dar uma destinação correta aos resíduos.
Todos
os dia ele peregrinava ritualisticamente entre as bancas de jornais para
verificar os resultados de seu empenho. Procurava não banalizar sua arte, dava
sempre um espaço de tempo para que as pessoas pudessem se recuperar.
Divertia-se
ouvindo pelo rádio que a polícia estava perto de capturar o novo Jack, que sua prisão
era coisa de horas. Luis sabia que não havia indícios que o ligassem aos fatos
investigados, continuava sossegado, dono de si, mas com um plano em mente, algo
que iria coroar sua vida artística.
Escreveu ao maior jornal da cidade sob o pseudônimo “artista” dizendo que nos
próximos meses daria pistas que levariam a sociedade apreciar a maior de suas
artes.
A
cada novo corpo, e foto, Luis incluía um item que levava a outro corpo com
outra diga. Muita
gente acompanhava com cuidado as dicas de Luis. Criaram-se, inclusive, clubes
para estudar sua obra e tentar descobrir sua identidade. Um doador anônimo
ofereceu uma gorda recompensa por informações que levassem à prisão do Artista.
Uma solteirona conhecida se ofereceu como “modelo” para uma de suas próximas manifestações
artísticas.
Cada
nova carta enviada ao jornal era esperada com suspense pela população, esperada
como o Natal pelas crianças.
Numa
manhã o jornal publicou aquela que se intitulava a “última carta”. Nela Luis
agradecia o empenho de seus admiradores, sugeria algumas ações para que sua
obra não fosse esquecida pelas futuras gerações e dava uma série de informações
crípticas que, devidamente compreendidas, levariam à sua última e maior obra.
Grupos
de estudantes das obras de Luis se uniram para decifrar o enigma. As
informações foram sendo decifradas e compartilhadas pelos grupos, mas ninguém
ainda tinha decifrado o problema inteiro.
Foi
um garoto, muito parecido com o Luis criança, que, no segundo dia depois da
publicação, ligou para o jornal dizendo saber o paradeiro e a identidade do
Artista.
A
polícia isolou a casa, uma multidão aguardava do lado de fora. A porta foi
arrombada e ao entrar na casa os policiais deram de cara com uma maquina que
ocupava o teto todo da sala, com ganchos e corrente que iam até o chão.
Sobre
um grande tapete havia um circulo produzido, ao que tudo indicava, com os
restos da última vítima do insano artista. Na parte inferior interna desse
círculo havia imagens feitas com montinhos de carne que representavam uma criança
esquartejando animais. As imagens iam se alterando conforme o olhar ia subindo.
Os montículos iam contando uma história chocante sobre o autor daqueles
assassínios, deixando escancarada toda a força daquela mente doentia.
A
máquina fora perfeitamente projetada para moer o corpo e produzir as imagens,
como num mural macabro feito com carne humana.
No
centro do círculo estava o único pedaço inteiro, a cabeça, qual um sol
irradiando luz para todas as cenas ali morbidamente encenadas.
A
cabeça estava virada para cima, apoiada num pequeno pedestal. Os olhos fechados de forma serena e algo tornava a imagem ainda mais chocante do que
seria apenas a manifestação física de tal pesadelo.
Ele
sorria.
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