Encontrei Varden na
praça, como era de costume. Ele estava sentado no banco mais central, olhando
absorto o movimento das pessoas. Sentei
ao seu lado e o cumprimentei com um aceno de cabeça, ele respondeu com aquele
seu meio sorriso.
Durante alguns minutos observei o movimento sem nada dizer.
Do outro lado da praça um pequeno grupo ouvia um desses pregadores de rua. Não
era possível ouvir o que ele dizia, mas seus gestos eram rápidos e bruscos,
como se ele cortasse alguma substância invisível com uma espada imaginária, uma
imagem um tanto caricatural do guerreiro proposto por São Paulo na sua carta
aos Efésios. Rompi o silêncio entre nós.
-Varden, você crê em Deus?
-Claro – respondeu sem me olhar- ele está aí em todos os
cantos, em todas as mentes.
-Em todas as mentes? Como assim? Você crê que Deus é produto
da nossa imaginação ou adota algum tipo de panteísmo?
Ele virou seu rosto em minha direção, reparei que sua barba
começava a ficar grisalha, ele continuou:
-Deus é um produto da humanidade, ele não existiria sem ela,
mas isso não quer dizer que ele seja uma invenção humana. Deus existe porque
existe o homem.
-Entendo, você encara a crença como fruto do processo
civilizatório. Deus é a expressão do desejo humano por ordem, o mesmo desejo
que o faz alterar o mundo...
-Não!
-Explique, você me confunde.
-Deus é uma entidade que existe como o resultado da
interação entre todas as mentes humanas. Ele se manifesta na totalidade da
humanidade como o princípio subjacente ao inconsciente coletivo.
-Ora, isso é uma consumada estupidez! Prefiro não crer em
Deus do que crê-lo assim!
Varden lançou a cabeça para trás numa gargalhada que chamou
a atenção dos passantes.
-Vocês idealistas são muito engraçados, resumem o mundo a um
quadro geométrico em branco e preto!
Fechei a cara
indignado e me preparava para levantar quando meu interlocutor me tocou
gentilmente o ombro como que pedindo mais um minuto, aquiesci.
-Dogmas são perigosos meu amigo – continuou- são selos de
formas inalteráveis em blocos de gelo derretendo ao sol do meio dia! Não é por
rotular as coisas que lhes definimos a essência. Entenda meu ponto de vista.
Deus não é um ser, ele é uma emanação instintiva. O homem é um ser social muito
semelhante às formigas, mas que tem a ilusão de ser isolado dos outros, e o é
realmente, mas apenas num nível consciente.
Não sabemos como, mas nossas mentes estão interligadas em um nível muito
profundo, talvez em uma época muito remota, quando a consciência individual era
muito fraca para nos distinguir dos outros animais, essa emanação que chamamos “Deus”
foi o que permitiu que nossos ancestrais começassem o processo civilizatório.
-Você diz que essa “mente” produziu a civilização e, em
outras palavras, dirigiu nossa evolução?
-Eu não usaria palavras que denotam intenção, eu chamaria
mais de “efeito”. Essa mente coletiva não é consciente, não vê a si mesma
individualmente, ela é o efeito da interação de todas as mentes e “dirige”
nosso desenvolvimento no sentido em que manifesta nossos desejos instintivos.
E, ironicamente, dirigindo-nos para a civilização ela acabou por destruir em
nós, isto é, na nossa mente individual, a noção de que todos partilhamos um
depósito comum. Por alguma razão essa ilusão de isolamento nos permite
manifestar individualmente certas características que são o fruto da
experiência de centenas de gerações vivendo imersas no oceano da mente
coletiva.
-Suas idéias são bizarras Varden!
-Não acho.
-Sim, são sim. Se todas as mentes partilham um depósito
comum, como explicar partes da humanidade vivendo e agindo como se os outros
não existissem? Como explicar a ascensão de idéias racistas de supremacia de
uma raça sobre as outras? Como explicar o Nazismo?
-Um organismo não é uma equação meu caro idealista! Ele se
adapta para sobreviver. E o faz por meio de tentativa e erro, dar autonomia aos
seus membros integrantes pode ser um bom caminho, mas pode levar a distorções.
Você deveria pensar o seguinte: APESAR das idéias de supremacia ainda estamos
aqui., todos nós. Talvez essa mente um
dia se torne consciente, talvez nesse dia a individualidade morra, assim como a
criatividade. É uma forma de estabilidade que não desejo!
-Depois me chama de idelista! Você é um consumado otimista
Varden! A humanidade é muito desigual para ser um só organismo...
-Você nunca teve um desejo ruim? Nunca desejou matar alguém
ou ferir a si mesmo?
-Não, nunca!
-Mentiroso!
Do outro lado da praça o pregador continuava seu discurso
inflamado, talvez alertando os homens sobre o fogo consumidor que era Deus.
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