sábado, 23 de novembro de 2013

Diálogo sobre Deus


Encontrei  Varden na praça, como era de costume. Ele estava sentado no banco mais central, olhando absorto o movimento das pessoas.  Sentei ao seu lado e o cumprimentei com um aceno de cabeça, ele respondeu com aquele seu meio sorriso.

Durante alguns minutos observei o movimento sem nada dizer. Do outro lado da praça um pequeno grupo ouvia um desses pregadores de rua. Não era possível ouvir o que ele dizia, mas seus gestos eram rápidos e bruscos, como se ele cortasse alguma substância invisível com uma espada imaginária, uma imagem um tanto caricatural do guerreiro proposto por São Paulo na sua carta aos Efésios. Rompi o silêncio entre nós.

-Varden, você crê em Deus?

-Claro – respondeu sem me olhar- ele está aí em todos os cantos, em todas as mentes.
-Em todas as mentes? Como assim? Você crê que Deus é produto da nossa imaginação ou adota algum tipo de panteísmo?

Ele virou seu rosto em minha direção, reparei que sua barba começava a ficar grisalha, ele continuou:
-Deus é um produto da humanidade, ele não existiria sem ela, mas isso não quer dizer que ele seja uma invenção humana. Deus existe porque existe o homem.

-Entendo, você encara a crença como fruto do processo civilizatório. Deus é a expressão do desejo humano por ordem, o mesmo desejo que o faz alterar o mundo...

-Não!

-Explique, você me confunde.

-Deus é uma entidade que existe como o resultado da interação entre todas as mentes humanas. Ele se manifesta na totalidade da humanidade como o princípio subjacente ao inconsciente coletivo. 

-Ora, isso é uma consumada estupidez! Prefiro não crer em Deus do que crê-lo assim!

Varden lançou a cabeça para trás numa gargalhada que chamou a atenção dos passantes.

-Vocês idealistas são muito engraçados, resumem o mundo a um quadro geométrico em branco e preto!
Fechei  a cara indignado e me preparava para levantar quando meu interlocutor me tocou gentilmente o ombro como que pedindo mais um minuto, aquiesci.

-Dogmas são perigosos meu amigo – continuou- são selos de formas inalteráveis em blocos de gelo derretendo ao sol do meio dia! Não é por rotular as coisas que lhes definimos a essência. Entenda meu ponto de vista. Deus não é um ser, ele é uma emanação instintiva. O homem é um ser social muito semelhante às formigas, mas que tem a ilusão de ser isolado dos outros, e o é realmente, mas apenas num nível consciente.  Não sabemos como, mas nossas mentes estão interligadas em um nível muito profundo, talvez em uma época muito remota, quando a consciência individual era muito fraca para nos distinguir dos outros animais, essa emanação que chamamos “Deus” foi o que permitiu que nossos ancestrais começassem o processo civilizatório.

-Você diz que essa “mente” produziu a civilização e, em outras palavras, dirigiu nossa evolução?

-Eu não usaria palavras que denotam intenção, eu chamaria mais de “efeito”. Essa mente coletiva não é consciente, não vê a si mesma individualmente, ela é o efeito da interação de todas as mentes e “dirige” nosso desenvolvimento no sentido em que manifesta nossos desejos instintivos. E, ironicamente, dirigindo-nos para a civilização ela acabou por destruir em nós, isto é, na nossa mente individual, a noção de que todos partilhamos um depósito comum. Por alguma razão essa ilusão de isolamento nos permite manifestar individualmente certas características que são o fruto da experiência de centenas de gerações vivendo imersas no oceano da mente coletiva.

-Suas idéias são bizarras Varden!

-Não acho.

-Sim, são sim. Se todas as mentes partilham um depósito comum, como explicar partes da humanidade vivendo e agindo como se os outros não existissem? Como explicar a ascensão de idéias racistas de supremacia de uma raça sobre as outras? Como explicar o Nazismo?

-Um organismo não é uma equação meu caro idealista! Ele se adapta para sobreviver. E o faz por meio de tentativa e erro, dar autonomia aos seus membros integrantes pode ser um bom caminho, mas pode levar a distorções. Você deveria pensar o seguinte: APESAR das idéias de supremacia ainda estamos aqui., todos nós.  Talvez essa mente um dia se torne consciente, talvez nesse dia a individualidade morra, assim como a criatividade. É uma forma de estabilidade que não desejo!

-Depois me chama de idelista! Você é um consumado otimista Varden! A humanidade é muito desigual para ser um só organismo...

-Você nunca teve um desejo ruim? Nunca desejou matar alguém ou ferir a si mesmo?

-Não, nunca!

-Mentiroso!


Do outro lado da praça o pregador continuava seu discurso inflamado, talvez alertando os homens sobre o fogo consumidor que era Deus.

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