sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Abismo


Sob meus pés o abismo agitava-se em espasmos de ferro derretido e línguas de uma chama vermelha...


Então elas vieram, desceram sem pressa todas as lembranças. Como fênix brancas renascidas do ventre infernal.

A chuva cobria cada passo do caminho quando me deixei levar para além das curvas. A estrada e a lama eram uma só coisa.

Ajoelhado no elemento básico cruzei os braços no peito desejando que a última hora viesse sobre minha cruz disforme.


Entre as árvores as sombras agitavam-se freneticamente lançando-me insultos e dolorosas verdades.

E dentro de mim um acusador incansável feria minha alma com sua língua verdadeira.

Eu não tinha forças, nem vontade, para continuar. Era um aborto tardio expelido à força do ventre.

Meu castigo era estar em mim mesmo.

Sob a luz inclemente deitei meu corpo nu, e vi as asas negras migrando no céu azul quando a chuva se fora.

Todas as garrafas de bebida vazias jaziam ao meu lado como cadáveres insepultos depois e uma batalha inútil.

E eu ainda respirava, inspirando crimes e expirando lamentos...

No campo estendi as mãos calejadas em direção à árvore sonolenta, mas mil ferrões me feriram e das mil feridas abertas jorravam negros humores...

As árvores passavam gritando com rostos irados, mas rostos sem face.

Deitado na relva me perguntei quando teria fim a loucura e os ares pestilentos se agitaram num uivo ancestral: "Nunca"!

Então finas mãos se insinuaram para mim e quando eu me entregava ansioso me atingiram a já insensível face.

De joelhos eu tateava o caminho e ouvia de cada elemento a lista dos meus desvarios...

O céu se fez negro e densas nuvens lançaram sobre a terra toda a fúria contida por longos milênios.

Com dores terríveis nos pés machucados corri para o abrigo da cidade em ruínas.

Entre as paredes sem teto deixe-me estar...mas eu não estava sozinho.

Os velhos demônios agitavam as mãos ao meu redor e seus olhos injetados de sangue gritavam por minha carne.

Com uma pedra solta esmaguei a cabeça do primeiro e como um animal selvagem cravei meus dentes no pescoço do segundo até que o amargor dos seu sangue negro me desceu pela garganta.

Enquanto eles fugiam assustados eu encarava suas carcaças inertes enquanto o tempo as ia levando vagarosamente, até que só sobrassem os ossos, talvez nem isso...

Caminhei sozinho pela longa estrada por um século sem que um só viajante encontrasse.

As vezes eu via cidades vazias e imaginava suas praças inundadas por luz e crianças correndo, mas a praga que me consumia logo mudava essas imagens em quadros de horror e crimes sem sentido.

Numa noite quando os chacais vieram lamber minhas feridas eu a vi pela última vez. A Lua com seu quase brilho e sua face quebrada por mil guerras.

E ela foi murchando e se enegrecendo até que deixou de ser vista para sempre. Chorei amargamente por aquela noiva que nunca alcançara suas bodas.

Por dias vaguei pelo deserto do mundo, e sentia vontade de encontrar alguns velhos e arcados amigos.

O mundo era meu vazio, já não havia amigos e todos os inimigos estavam presos dentro de mim.

Numa noite quente e densa encontrei o abismo depois de observar de longe a negra coluna de fumo e fuligem.

Não tive coragem de erguer minha face para encarar seu rosto duro. Ele cravou em mim suas duras palavras que diziam de alvores e entardeceres.

Contou-me de esposas de guerra esperando em vão seus companheiros e de órfãos famintos perdidos pelas aldeias.

Implorei seu perdão, mas ele me negou isso. Disse-me que eu não era responsável sozinho e que o manto de atrocidades que eu trouxera não era unicamente meu.

E me negou a punição que pagaria meu débito funesto.

Chorei o choro débil de todas as almas mortas. Já farto do meu lamento ele se abriu para mim e me chamou para si, para o abraço comum de todos os desgraçados.

Sob meus pés o Abismo agitava-se. Derramei a última lágrima como a última libação do mundo e me lancei.

E não havia dor, nem lamento, nem vozes de acusação... nem lembranças de crimes passados ou de mortes inocentes.

Não havia calor ou frio, nem paredes ou sombras...

Só queda.

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