quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Antigamente...


Antigamente, quando eu não tinha tantas coisas para me preocupar, eu gostava de me perder pelos campos. Eu abria os braços e sentia o vento me levar, assim como o sol a acariciar meu rosto. O capim, havia muito capim naquela época, dançava ao meu redor, e o barulho era alguma coisa ancestral, difícil demais de reproduzir, mas numa linguagem que falava mesmo com o coração da gente.
Então eu me jogava sobre as touceiras de capim, e uma ave saía voando. Nessa época, você andava pelo campo e não via nada, então de repente uma codorna voava com uma barulho engraçado. De vez em quando você topava com uma cobra, mas as cobras, apesar de venenosas, eram mais honestas que as de hoje. Uma daquelas cobras antigas era perigosa como o diabo, e sorrateira, mas você sabia o que esperar dela, o bicho não tinha segredos. As de hoje não são assim, aliás, elas parecem qualquer coisa de bom, menos uma cobra. Às vezes você acha que elas são belas gaivotas, ou coelhinhos felpudos. E elas até agem como gaivotas ou coelhinhos. Mas então, se você baixar a guarda...
E tinha também os preás. Um preá é tipo um rato sem rabo. Melhor, é uma capivara anã. Mas que estou dizendo? O preá, se quer mesmo saber, é como um porquinho da índia. Só que um porquinho desses bem discretos, sem todas aquelas cores chamativas. Não pense que os preás eram feios, nada disso. Eles eram até que simpáticos, só que não eram muito ligados nesse negócio de socializar, como os porquinhos de hoje. Eles ficavam na deles, e, como as codornas, davam no pé ao menor sinal da gente.
Mas não foi suficiente. A gente quase que acabou com eles. Antes eles só se preocupavam com as cobras, mas o bicho gente é bem pior que qualquer cobra de verdade. Ainda vejo alguns deles de vez em quando num parque aqui da cidade. Os de hoje são bem menos ariscos. Algo que eu nunca entendi. deve ser porque há menos cobras, e a gente é mais dissimulado que elas.
Depois do campo eu gostava de cair no rio. Não me importava se houvesse os tais "peixes japoneses". Eu ainda não entendia esse negócio todo de ameaças microscópicas. Era só desviar do "tróço", ou "trôço", e tudo ia bem. Se bem que eles eram raros naquele tempo. As pessoas tinham lá suas privadas que devolviam ao solo o que do solo era. Hoje a gente não tem mais privadas. A gente tem esses belos banheiros higienizados. Nada daquele prazer ancestral de ir até a casinha no fundo do quintal, sentir as moscas zumbindo debaixo do traseiro e escutar o mergulho das fezes. Tempo bom! Hoje não tem privada, e nem vida privada. A privada de antigamente ocultava as nossas cagadas. Hoje não há vida privada que resista às nossas cagadas!
Quem sentiu o ventre cheio de madrugada, e conhecia as histórias de lobisomem, sabe bem como é ter a privada fora de casa. Era uma aventura, quando a necessidade era maior que o medo, atravessar o quintal na quaresma ou em noites de lua cheia! Se não nos pegasse o lobisomem, era bem que capaz que o fizesse uma visagem.
É claro que a gente não tinha essas frescuras todas, e a privada era quase um luxo. Se a coisa apertasse, a gente se aliviava onde desse, e se limpava, se, com o que tivesse. Às vezes era urtiga...


Nossa! Comecei esse texto tão poético e quase o termino afundado em merda. Mas é que quando a gente vive atolado nelas, até as merdas de antigamente parecem mais puras.
Mas isso foi quando eu não me preocupava com tantas coisas. Foi naquele tempo em que uma coisa boa era sentida até se esgotar, e não com esse prazer rápido das coisas que não passam de imagens descartáveis que tanto nos ocupam hoje.
Foi naquele tempo. Foi num tempo. Foi num lugar no tempo que só pode ser visitado com a saudade embalada no pensamento. Uma visita que termina rápida, e sem muito sentido, como esse texto.

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