terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Liza


...você pre...precisa....

Seus olhos foram ficando distantes, como se a alma fosse se retirando devagarzinho, caindo rumo à inexistência, ela ainda disse:

...esperança, continu...

O mundo murchou ao meu redor, esqueci o risco de estar em campo aberto, desprotegido. 
O corpo inerte, aquele corpo tão conhecido, cheio de intimidades. Minhas lágrimas se misturaram com o sangue de Liza, aquele sangue ainda quente que me cobria a face.

Eu beijei Liza pela última vez e me doeu ainda mais saber que seu corpo ficaria ali, perdido, insepulto, aquele corpo que durante tão pouco tempo e, paradoxalmente, tudo o que eu lembrava ter sido a vida, tinha sido parte de mim, a melhor parte de mim. 

Uma lágrima descia pela sua face...a última lágrima, o mais doloroso adeus.
Deixei Liza entre o entulho do que fora nosso lar, nossa cidade. 

O que restava de mim era menos que um animal, até ali eu apenas tentara sobreviver, agora queria morrer com os dentes cravados na garganta do meu inimigo, desejava que o sangue de Liza fosse purgado pelo sangue do inimigo descendo pela minha garganta.

Sim, um animal desejoso de sangue e de morte, cuja morte era um alento, a própria morte que me lançaria nos braços quentes de Liza...

Durante semanas vaguei pelos entulhos da cidade, em momento algum vi outra alma viva, nem cães, nem pássaros...

Não havia mais choque, eu não sentia nada ao ver os restos dos meus irmãos, vísceras, membros...
"É isso o que somos, só isso, nada mais que terra e dejeto".

Então eu o vi, um deles, com sua pele metálica e os olhos vermelhos perscrutando os montes de entulhos.
"O que querem esses desgraçados? A humanidade não existe mais, somos poucos cães sarnentos escondendo-se assustados entre as ruínas da nossa civilização eterna".

Era preciso confundir os sensores, eu sabia como fazer... era só encontrar um carro que funcionasse, confundir o demônio com a vibração monótona do motor...esconder o próprio calor sob a carcaça ainda viva.

Havia carros, aos montes, com corpos decompostos neles...

A criatura olhava confusa, sentindo um milhão de impulsos sob a casca grotesca.

Saltei sobre ele, com o ferro afiado apontado para a nuca. Ele girou sobre si e eu fui abraçar o entulho. Continuava girando, confuso, o ferro cravado atrás da cabeça.

Subi no capô de um carro e saltei sobre ele, apoiei as duas mãos sobre o ferro e coloquei todo o meu peso ali. A casca caiu e eu vi a carne fétida da criatura, a carne onde cravei os dentes. Estávamos no solo, e eu ainda mordia, engolia e cuspia a carne imperfeita daquela criatura mais evoluída.

A noite caiu sobre nós. 

Eu sonhei com Liza, estávamos em casa no dia em que voltamos da Lua de Mel, na noite em que eles desceram...Liza, meu amor! 

E beijei a criatura fétida...

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