sábado, 28 de dezembro de 2013

Templo da Amizade- uma igreja secular?



As luzes em neon anunciavam o início da reunião. Na entrada do Templo da Amizade fui recebido por um rapaz e uma moça, ambos sorridentes e solícitos. Eles me deram informações sobre a reunião e, após anotar meu nome,  me indicaram um lugar mais ou menos no meio da “nave” do templo.

Quando se olha o Templo por dentro sem muita atenção aos detalhes ele não é diferente de uma igreja evangélica : um salão, cadeiras plásticas e um lugar mais elevado onde numa igreja você encontraria o púlpito.  Entretanto um olhar mais atento perceberia que as paredes eram adornada com ícones da cultura POP e referências aos grandes líderes da humanidade.
A reunião daquela noite estava lotada, havia algo como 150 pessoas reunidas, em sua maioria, jovens. 

As luzes diminuíram, aquele era o sinal para o início do “culto”.  Uma moça de uns 20 anos pediu que todos dessem as mãos  e que  por um minuto tentassem olhar para si mesmos, deixar  o egoísmo e as preocupações de fora. A banda tocava algo suave, uma valsa. Então as luzes diminuíram mais ainda e o “altar” foi  iluminado com uma  série de luzes coloridas, a moça começou a cantar Imagine,  num telão logo atrás dela a letra era projetada, o grupo começou a acompanhar a melodia.

Em seguida ela cantou algo um pouco mais rápido, uma música que falava de amizade e flores. As pessoas levantavam os braços e dançavam nos seus lugares. Foi assim por uns 45 minutos.

Depois disso um rapaz de uns 16 anos subiu ao púlpito. Ele deu uma séria de lembretes, falou algo sobre trabalhos voluntários que eram realizados pelo grupo, falou sobre ensaios de peças, sobre um acampamento de fim de semana e da final do campeonato de futebol.

Cantaram mais algumas músicas. Houve um “momento da amizade” em que as pessoas abraçaram umas as outras.  Depois disso os visitantes foram apresentados, eles diziam nossos nomes e nós nos colocávamos em pés.

Houve um momento de “relaxamento”  orientado por uma ‘psicóloga” (não pude confirmar), mais alguns avisos e mais música. Por fim as luzes foram acesas e o “pregador” assumiu seu lugar. 

Era um homem na faixa dos trinta anos, alto, atlético e com um sorriso permanente.  Ela falou sobre “construir valores num mundo de valores esquecidos”.  Confesso que ao ouvir o tema esperava uma enxurrada de frases retiradas de livros de autoajuda, mas para minha surpresa o tema foi  baseado em um trecho da Ética a Nicômaco de  Aristóteles, com passagens de Sêneca, La Bruyère, Gracián e Jose Ingenierus.  Ele utilizou exemplos da cultura popular, do cinema dos quadrinhos, dos videogames, da história recente do Brasil e das máximas de Jesus Cristo.

Não falou em momento nenhum em religião, embora tudo nele parecesse religião, da forma como “pregava” ao apelo emocional presente em seus gestos. Entretanto ele transbordava conhecimento sério, o que tornou a apresentação uma experiência emocionante e intelectualmente produtiva. Por fim ele levantou um desafio, o de sair pela porta aquela noite com o profundo desejo de fazer a diferença na sociedade, de representar da melhor forma possível tudo aquilo que significava ser humano.

Não era só uma pregação sobre moralidade ou sobre fazer a coisa da forma certa, mas era, acima de tudo, um libelo contra nosso modo fácil e inconsequente de ser.

A reunião acabou, mas muitas pessoas permaneceram por ali conversando. Entre eles o sorridente pregador. Aproveitei a oportunidade e fui conversar com ele. Seu nome era João, professor universitário, Doutorando em Ciências Sociais, corredor nas horas vagas e ativista de diversas causas sociais.  Sem religião, mas espiritualizado, embora não tenha me explicado o que isso significava.

João me explicou que o Templo da Amizade não era uma iniciativa religiosa, mas que, antes, tinha sua origem no desejo de um humanismo consciente para o século xxi. Me explicou que Auguste Comte havia percebido que havia a necessidade de criar uma “religião da humanidade”, mas que essa iniciativa ficou restrita a um grupo pequeno pessoas intelectualizadas, pois ignorou o “método”. Me explicou que o sucesso das igrejas evangélicas não se devia somente à mensagem que pregavam, mas também ao modo como recebiam as pessoas.  O ser humano é gregário por natureza, um animal social. Existe um desejo ancestral de se congregar nas pessoas. Antigamente as pessoas satisfaziam essa necessidade no seio de suas famílias, que eram maiores, e nas pequenas comunidades onde viviam. A sociedade moderna retirou isso das pessoas, pois as famílias são hoje menos do que há trinta anos e a agitação da vida moderna faz com que se vejam apenas por uns poucos minutos durante o dia.

Para João, as igrejas evangélicas vieram suprir essa necessidade de ter uma família, de pertencer a um “clã”.  A civilização nasceu ao redor das fogueiras que celebravam os poderes anímicos da natureza.  Milhares de anos de evolução cultural não apagaram da nossa psique o prazer dessa reunião sob a luz do misterioso fogo civilizatório, algo dentro de nós deseja  danças sob as estrelas e sentir-se parte de algo maior.

O templo, continuou o sorridente João, nasceu do desejo de pessoas simples de terem comunhão sem dogmas, valores sem imposição e sem castigos além-túmulo. 

“Estamos perdendo “, continuou ele, “a conexão com o espírito ancestral que nos fez deixar as savanas africanas e ir construir pirâmides no Egito e jardins elevados na Mesopotâmia”.

Os primeiros “filotemplários” (termo meu) eram pessoas intelectualizadas, mas ainda conectados com as necessidades sociais. Eles percebiam que as igrejas tinham sucesso em arrebanhar tantas pessoas porque  elas ofereciam um lugar onde praticar a catarse emocional e se socializar com outros seres humanos. Por que não aproveitar essa estrutura, mas com uma mensagem humanística, secular? Por que não trocar as ameaças  do inferno  ou a prosperidade sem consciência por cultura? Por valores reais? Por amizade?

Perguntei se havia uma estrutura clerical como nas igrejas e como eles mantinham a confiabilidade com relação às entradas financeiras. Ele me disse que a estrutura era horizontalizada, que não havia hierarquia, mas “monitoria”. Que as pessoas não cresciam na instituição verticalmente, mas ganhavam confiança em si e nos outros.  Me disse que cada membro podia discutir, questionar e fiscalizar as ações do grupo nas frequentes reuniões administrativas. Havia comissões eleitas pelos membros para cuidar dos vários setores da instituição e que o setor financeiro era um dos mais abertos, todas as ações eram transparentes. Afirmou que as pessoas doavam tempo e dinheiro para a “obra”. Que cada membro era incentivado a dar contribuir com a humanidade com um dia por semana. “O trabalho voluntário é um dos mais sagrados bens”, disse ele. 

Não havia salário, mas algumas pessoas, em situações bem especiais, poderiam receber uma “ajuda de custo”.

O Templo mantinha “missionários” que iam colaborar em ações humanitárias, médicos, professores, dentistas , professores...

Havia atividade no Templo todos os dias, eram cursos, palestras, lançamentos de livros, festas...

E religião?

“Cada pessoa é livre para crer no que quiser ou não crer em nada.”

“Costumamos debater temas religiosos, como qualquer outro tema e até admitimos reuniões para meditação e outras práticas religiosas, só não permitimos que o pensamento religioso dite regras, castre as pessoas”.

“Todos queremos dar sentido à nossa vida, ser parte de algo”. Arrematou.

E deu certo. Hoje o Templo da Amizade congrega semanalmente milhares de pessoas em busca do fim da solidão, mantêm escolas, creches e clínicas para recuperação de dependentes químicos.  

Enquanto voltava para casa pensava em qual seria a melhor definição para o Templo. Uma igreja secular, grupo de escoteiros, clube de valores, maçonaria aberta?

Tudo, ou, talvez, nada disso.

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Sinto muito, o Templo da Amizade não existe (ainda). O texto é ficcional.



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