As
luzes em neon anunciavam o início da reunião. Na entrada do Templo da Amizade
fui recebido por um rapaz e uma moça, ambos sorridentes e solícitos. Eles me
deram informações sobre a reunião e, após anotar meu nome, me indicaram um lugar mais ou menos no meio da
“nave” do templo.
Quando
se olha o Templo por dentro sem muita atenção aos detalhes ele não é diferente
de uma igreja evangélica : um salão, cadeiras plásticas e um lugar mais elevado
onde numa igreja você encontraria o púlpito. Entretanto um olhar mais atento perceberia que
as paredes eram adornada com ícones da cultura POP e referências aos grandes
líderes da humanidade.
A
reunião daquela noite estava lotada, havia algo como 150 pessoas reunidas, em
sua maioria, jovens.
As
luzes diminuíram, aquele era o sinal para o início do “culto”. Uma moça de uns 20 anos pediu que todos dessem
as mãos e que por um minuto tentassem olhar para si mesmos,
deixar o egoísmo e as preocupações de
fora. A banda tocava algo suave, uma valsa. Então as luzes diminuíram mais
ainda e o “altar” foi iluminado com
uma série de luzes coloridas, a moça começou
a cantar Imagine, num telão logo atrás
dela a letra era projetada, o grupo começou a acompanhar a melodia.
Em
seguida ela cantou algo um pouco mais rápido, uma música que falava de amizade
e flores. As pessoas levantavam os braços e dançavam nos seus lugares. Foi
assim por uns 45 minutos.
Depois
disso um rapaz de uns 16 anos subiu ao púlpito. Ele deu uma séria de lembretes,
falou algo sobre trabalhos voluntários que eram realizados pelo grupo, falou
sobre ensaios de peças, sobre um acampamento de fim de semana e da final do
campeonato de futebol.
Cantaram
mais algumas músicas. Houve um “momento da amizade” em que as pessoas abraçaram
umas as outras. Depois disso os
visitantes foram apresentados, eles diziam nossos nomes e nós nos colocávamos
em pés.
Houve
um momento de “relaxamento” orientado
por uma ‘psicóloga” (não pude confirmar), mais alguns avisos e mais música. Por
fim as luzes foram acesas e o “pregador” assumiu seu lugar.
Era
um homem na faixa dos trinta anos, alto, atlético e com um sorriso permanente. Ela falou sobre “construir valores num mundo
de valores esquecidos”. Confesso que ao
ouvir o tema esperava uma enxurrada de frases retiradas de livros de autoajuda,
mas para minha surpresa o tema foi baseado
em um trecho da Ética a Nicômaco de Aristóteles,
com passagens de Sêneca, La Bruyère, Gracián e Jose Ingenierus. Ele utilizou exemplos da cultura popular, do
cinema dos quadrinhos, dos videogames, da história recente do Brasil e das
máximas de Jesus Cristo.
Não
falou em momento nenhum em religião, embora tudo nele parecesse religião, da
forma como “pregava” ao apelo emocional presente em seus gestos. Entretanto ele
transbordava conhecimento sério, o que tornou a apresentação uma experiência
emocionante e intelectualmente produtiva. Por fim ele levantou um desafio, o de
sair pela porta aquela noite com o profundo desejo de fazer a diferença na
sociedade, de representar da melhor forma possível tudo aquilo que significava
ser humano.
Não
era só uma pregação sobre moralidade ou sobre fazer a coisa da forma certa, mas
era, acima de tudo, um libelo contra nosso modo fácil e inconsequente de ser.
A
reunião acabou, mas muitas pessoas permaneceram por ali conversando. Entre eles
o sorridente pregador. Aproveitei a oportunidade e fui conversar com ele. Seu
nome era João, professor universitário, Doutorando em Ciências Sociais,
corredor nas horas vagas e ativista de diversas causas sociais. Sem religião, mas espiritualizado, embora não
tenha me explicado o que isso significava.
João
me explicou que o Templo da Amizade não era uma iniciativa religiosa, mas que,
antes, tinha sua origem no desejo de um humanismo consciente para o século xxi.
Me explicou que Auguste Comte havia percebido que havia a necessidade de criar
uma “religião da humanidade”, mas que essa iniciativa ficou restrita a um grupo
pequeno pessoas intelectualizadas, pois ignorou o “método”. Me explicou que o
sucesso das igrejas evangélicas não se devia somente à mensagem que pregavam,
mas também ao modo como recebiam as pessoas.
O ser humano é gregário por natureza, um animal social. Existe um desejo
ancestral de se congregar nas pessoas. Antigamente as pessoas satisfaziam essa
necessidade no seio de suas famílias, que eram maiores, e nas pequenas
comunidades onde viviam. A sociedade moderna retirou isso das pessoas, pois as
famílias são hoje menos do que há trinta anos e a agitação da vida moderna faz
com que se vejam apenas por uns poucos minutos durante o dia.
Para
João, as igrejas evangélicas vieram suprir essa necessidade de ter uma família,
de pertencer a um “clã”. A civilização
nasceu ao redor das fogueiras que celebravam os poderes anímicos da
natureza. Milhares de anos de evolução
cultural não apagaram da nossa psique o prazer dessa reunião sob a luz do
misterioso fogo civilizatório, algo dentro de nós deseja danças sob as estrelas e sentir-se parte de
algo maior.
O
templo, continuou o sorridente João, nasceu do desejo de pessoas simples de
terem comunhão sem dogmas, valores sem imposição e sem castigos além-túmulo.
“Estamos
perdendo “, continuou ele, “a conexão com o espírito ancestral que nos fez
deixar as savanas africanas e ir construir pirâmides no Egito e jardins
elevados na Mesopotâmia”.
Os
primeiros “filotemplários” (termo meu) eram pessoas intelectualizadas, mas
ainda conectados com as necessidades sociais. Eles percebiam que as igrejas
tinham sucesso em arrebanhar tantas pessoas porque elas ofereciam um lugar onde praticar a
catarse emocional e se socializar com outros seres humanos. Por que não
aproveitar essa estrutura, mas com uma mensagem humanística, secular? Por que
não trocar as ameaças do inferno ou a prosperidade sem consciência por cultura?
Por valores reais? Por amizade?
Perguntei
se havia uma estrutura clerical como nas igrejas e como eles mantinham a
confiabilidade com relação às entradas financeiras. Ele me disse que a
estrutura era horizontalizada, que não havia hierarquia, mas “monitoria”. Que
as pessoas não cresciam na instituição verticalmente, mas ganhavam confiança em
si e nos outros. Me disse que cada
membro podia discutir, questionar e fiscalizar as ações do grupo nas frequentes
reuniões administrativas. Havia comissões eleitas pelos membros para cuidar dos
vários setores da instituição e que o setor financeiro era um dos mais abertos,
todas as ações eram transparentes. Afirmou que as pessoas doavam tempo e
dinheiro para a “obra”. Que cada membro era incentivado a dar contribuir com a
humanidade com um dia por semana. “O trabalho voluntário é um dos mais sagrados
bens”, disse ele.
Não
havia salário, mas algumas pessoas, em situações bem especiais, poderiam
receber uma “ajuda de custo”.
O
Templo mantinha “missionários” que iam colaborar em ações humanitárias,
médicos, professores, dentistas , professores...
Havia
atividade no Templo todos os dias, eram cursos, palestras, lançamentos de
livros, festas...
E
religião?
“Cada
pessoa é livre para crer no que quiser ou não crer em nada.”
“Costumamos
debater temas religiosos, como qualquer outro tema e até admitimos reuniões
para meditação e outras práticas religiosas, só não permitimos que o pensamento
religioso dite regras, castre as pessoas”.
“Todos
queremos dar sentido à nossa vida, ser parte de algo”. Arrematou.
E
deu certo. Hoje o Templo da Amizade congrega semanalmente milhares de pessoas
em busca do fim da solidão, mantêm escolas, creches e clínicas para recuperação
de dependentes químicos.
Enquanto
voltava para casa pensava em qual seria a melhor definição para o Templo. Uma
igreja secular, grupo de escoteiros, clube de valores, maçonaria aberta?
Tudo,
ou, talvez, nada disso.
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Sinto muito, o Templo da Amizade não existe (ainda). O texto é ficcional.
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