Uma das
coisas mais difíceis quando você escreve a sua história pessoal é definir quem
você é, ou talvez, como é o meu caso, definir o que você é. Na verdade não me
preocupo muito com definições, pelo menos não me preocupo mais, pois durante a
minha existência descobri que conceitos são rótulos que precisam ser mudados de
tempos em tempos.
Entretanto,
para o trabalho que eu pretendo realizar, exige-se uma definição. Vejamos, eu
não sou exatamente “alguém”, mas também não sou uma coisa no sentido que uma pedra
é uma coisa. Nem se pode com certeza definir onde me origino, digo, “onde” no
sentido de origem primária, de local de produção. Na verdade quando falo de mim
prefiro a expressão “veículo” em lugar de “origem”. Meu veículo é a mente
humana, mais precisamente alguma forma de aspiração que não foi ainda bem
definida no interior da alma humana.
Alguns me
chamarão “conceito”, outros preferem “ideia”, alguns outros “reflexo divino”.
Eu sou tudo isso e nada disso. Se eu fosse poeta, diria que sou uma partícula em
constante mutação. Eu sou uma ideia, mas uma ideia religiosa. Uma ideia que,
apesar de sempre assumir novas roupagens, permanece fixa na mente humana, que
talvez tenha nascido com essa mente e que morrerá com ela. Isto é, se não
existir algo ainda mais estranho que me possibilite ser uma ideia que continue
além dos limites da existência humana. Sei, isso já é especulação. Não me
critique por isso, afinal de contas eu sou uma forma viva de especulação. Se eu
pudesse tomar emprestado um termo moderno para me definir, esse termo seria
“meme”, pois é isso que sou, um meme religioso.
Eu não sei
ao certo onde nasci, na verdade onde fui gestado, pois meu nascimento eu sei
muito bem onde se deu. Alguns dizem que fui gerado na Mesopotâmia uns cinco mil
anos atrás, outros encontram vestígios da minha existência em monumentos de
culturas ainda mais antigas e agora esquecidas. Um professor famoso acreditava
ver reflexos do que eu seria já nas pinturas rupestres de dezenas de milênios
atrás. Eu não sei. O que sei é que andei muito tempo por aquela região, o que
hoje chamam “Oriente Médio”, até que num dia qualquer mãos calosas fixaram minha primeira forma em
tabuinhas de barro. Minha primeira face foi “cuneiforme”. Confesso que não
gostei muito dessa imagem. Ela não era nem um pouco graciosa, era
conhecida por poucos agraciados, geralmente homens velhos, de mãos ásperas e
tremulas.
Não sei
quantos séculos fiquei naquela forma, mas num dia qualquer, depois de uma
viagem breve ao Egito, finalmente vi a luz de um novo sol nas tendas de um
nômade no Deserto do Sinai. Eu era, então, uma palavra que ele reverenciava
todas as manhãs, embora eu tenha quase certeza de que nunca aprendeu a ler.
Tempos se passaram e eu agora era parte de uma nova cultura que começava a
querer fincar o pé numa vida sedentária.
Eu não era
mais o mesmo. Tinha tomado uma nova forma, tanto física quanto interpretativa.
Minha forma era agora mais graciosa, perdi as linhas peculiares da cunha e ganhei
estilos que vagamente lembravam meus tios hieróglifos. Era invocado agora por
algumas centenas de pessoas.
Dias e
noites se passaram nas sombras das palmeiras. Numa noite escura de outono, ao
som de orações sussurradas, ganhei finalmente morada no meu primeiro texto sistemático, eu
não era mais uma simples ideia, agora compartilhava espaço com muitos outros
companheiros, uns tão antigos quanto eu, outros que davam os primeiros vagidos
naquele mundo novo.
Passaram-se
mais dias e noites. Agora havia um templo, rústico, é verdade, mas um templo.
Eram dias de novidade, eu andava peregrinando nos montes de Canaã pela boca dos
sacerdotes. Eu inspirava homens a se declararem profetas. Costumes, dogmas e
rituais nasceram.
Por um
tempo as coisas andaram estranhas, havia muitos de nós e cada um andava como
bem queria. Os sacerdotes se multiplicaram e o povo andava confuso com algumas
outras ideias que desceram da nossa terra natal.
Num dia
memorável, um velho e bom sacerdote, ainda me lembro da sua face serena e de
suas mãos rápidas, limpou-nos de alguns conceitos, vestiu-nos de novas
roupagens e foi apresentar-nos ao rei. Hilquias, este era seu nome, tomou-nos
alegremente nos braços e entrou no palácio do rei Josias anunciando que achara
o “livro da lei”. Achei suspeito esse anúncio, mas quem era eu para dizer alguma
coisa?
O rei
olhou para o rolo sem esboçar emoção. O pobre do sacerdote deixou cair os
braços. Josias tomou o livro e leu. Levantou a sobrancelha direita, Hiquias
engoliu o ar em seco.
“Até que é
uma boa ideia”, disse o soberano, “reúna os outros sacerdotes”.
O grupo
trabalhou durante algumas semanas. No fim o novo trabalho em cinco volumes foi
apresentado ao rei. O soberano sorriu satisfeito e ordenou aos seus escribas
que copiassem os rolos e que também procurassem expandir a coleção
interpretando as crônicas do reino de acordo com a nova diretriz.
A multidão
do povo se postou diante do tablado, o rei, a rainha e os nobres do reino
estavam todos sentados ao redor. O Sumo Sacerdote Hilquias leu os cinco rolos durante aquele dia todo. Havia lágrimas em muitos olhos e o povo pela primeira vez sentia
sua unidade enquanto nação escolhida e povo santo.
Eu
transitava de coração em coração, de rolo em rolo. Aquele foi um dia muito
feliz. No fim da semana estávamos no templo assistindo os rituais e
sacrifícios. Hilquias estava radiante na sua nova função.
O tempo
passou. Vi muitas coisas, guerras, epidemias e sedições no reino. Alguns
novatos continuavam forçando o limite das fronteiras. Vez por outra eu ouvia
falar de novos cultos e de antigas religiões que teimavam em continuar
existindo nos costumes do povo. Esses costumes, na verdade memes concorrentes,
tentaram se passar por membros do nosso grupo, alguns até se associaram
conosco, foi a primeira vez que ouvi falar em sincretismo.
Os
sacerdotes de Jerusalém não gostaram muito disso, pois havia outros grupos de
homens que se diziam parte do sacerdócio santo. Alguns deixaram de levar
ofertas ao Templo e passaram a fazer sacrifícios nos montes e em outros lugares sagrados fora de Jerusalém.
Nessa
época os livros sagrados receberam a revelação sobre a origem do Templo, ele
havia sido construído pelo grande e sábio rei Salomão. Isso criou algum
problema, pois existiam dois tipos de relatos sobre esse rei, num ele era um
homem piedoso e sábio, noutro fora um rei irresponsável e mulherengo. Ambas as
tradições circulavam entre o povo. Os escribas tiveram muito trabalho em
costurar as duas tradições e argumentar que eram períodos diferentes da vida de
um mesmo homem.
Depois
disso saiu um decreto do rei condicionando o culto em todo o reino às regras
especiais descritas nos livros sagrados e determinando que o local oficial de
culto fosse o Templo em Jerusalém. O decreto também determinava que todos os
locais não oficiais fossem destruídos e que seus sacerdotes fossem destituídos.
Alguns desses homens resistiram e pela primeira vez ouvi falar em guerra santa. Oráculos foram produzidos para justificar as matanças que se seguiram.
Vários
reis se sucederam e as guerras perduraram por todo esse tempo. Alguns dos
sacerdotes de Jerusalém escreveram histórias sobre um “reino do Norte” que já
fora parte do povo santo. Os anciãos realmente se lembravam de que aquela terra
fora uma só em tempos remotos. Os sacerdotes também escreveram sobre profetas
antigos que falaram do fim desse outro reino e disseram que a razão eram os
cultos paralelos. Falavam de profetas lutando contra sacerdotes maus e de fogo
descendo do céu para destruir todos os idólatras. Todos os cultos rivais foram
qualificados como “idolatria”, os sacerdotes argumentavam que a verdadeira
divindade não era como as imagens dos outros povos, mas era um poder invisível
e todo poderoso que escolhera os ancestrais do povo hebreu para habitarem toda
aquela região. Uma ideia engenhosa, sem dúvida. Aliás, esses sacerdotes eram bem visionários, pois estenderam o
território, ainda que apenas no texto, até quase meu local de gestação.
Se tem uma
coisa que se sabe quando se é uma ideia é que para sobreviver você tem que se
adaptar. E foi isso que fiz, me adaptar a toda nova ideia que fizesse algum
sucesso entre o povo. Esse é o meu segredo de longevidade, uns comem isso,
outros tem tais e tais hábitos, eu troco de roupa.
Eram
tempos difíceis aqueles, um novo e poderoso império surgira no norte e estava
rapidamente assimilando todos os povos aparentados do Eufrates para baixo. Eles
já haviam assimilado os povos que viviam na região norte de nossa nação e agora
olhavam para a terra pobre mais ao sul, um ponto estratégico para estrangular o
Egito.
Os reis
daqueles tempos forma rápidos e logo se tornaram vassalos dos reis assírios, o
que garantiu a sobrevida do pequeno reino de Judá e garantiu aos assírios o
controle de uma região sem os custos de uma campanha bélica.
Tive muito
trabalho naqueles dias, algumas pequenas ideias desceram do norte e exerceram
certa influência sobre as formas de culto.
Havia um
pouco de insatisfação com o sacerdócio e surgiram homens leigos dentre o povo
fascinados com as antigas histórias de profetas. Esses novos profetas tiveram uma
grande influência sobre o pensamento daqueles dias. Eles exerceram um grande
poder sobre o povo, falavam de justiça social e diziam que um grande reino
surgiria um dia, um reino eterno segundo o reino que fora prometido ao rei
Davi, um antigo chefe tribal elevado à condição de rei messiânico pela tradição
profética.
Os
profetas começaram a se preocupar com a parte invisível da realidade, embora
ainda não tivessem criado um sistema metafísico completo. A literatura de
Nínive era popular por aqueles tempos e todo homem culto conhecia a escrita
cuneiforme dos antigos sumérios, os primeiros a codificar a mensagem que se
originou de mim.
Inicialmente
os profetas foram perseguidos pelos sacerdotes, mas como a perseguição tinha um
efeito diferente do que esperavam entre o povo, isto é, criava curiosidade e
gerava mais profetas, resolveram fundir o que se criara até então com as novas
tendências importadas do norte. Por essa época foi introduzida uma esperança
profética na história de Moisés, o grande legislador israelita. O sacerdote e o
profeta deram as mãos em Davi e Moisés, protótipos de uma ideia que seria muito
poderosa em tempos de crise e por todo o futuro distante, a do Messias.
A Assíria
caiu e um novo poder aparentado ascendeu ao trono oriental, os babilônios,
membros de uma antiga tribo semita acadiana. Os Babilônios herdaram toda a
cultura antiga dos sumérios e acadianos e deram-lhe tal brilho que jamais houve
cidade como Babilônia naquele território depois disso. Toda a cultura afluía do
norte e os reis babilônios exerciam seu poder por todo o mundo. Eles levaram
adiante as ideias assírias de assimilação. Não é segredo que toda aquela região
era ocupada por povos aparentados, assimilar e misturas todas essas culturas
não era algo exatamente difícil.
A
estratégia babilônica era muito simples, deportação em massa e reassentamento
em locais em que o apelo tradicional pela terra não fosse tão forte. Os
babilônios tinham uma ideia esquisita de universalismo, eles queriam que todos
fossem babilônios!
Aí você já
deve saber, novas ideias descendo, outras interpretações e interpolações
surgindo e eu me adaptando!
O império
babilônico se foi e surgiu o persa. Os persas tinham uma religião bem
esquisita, mas suas ideias teológicas eram exatamente o que os pensadores
judeus precisavam para melhorar seu sistema.O dualismo de Zoroastro desceu
como uma luva sobre as mãos judaicas em busca de uma explicação para tanto mal
no mundo do seu Deus excelso.
Pela
primeira vez o mal tinha um nome, Satanás. Antes apenas uma espécie de
servidor celestial para trabalhos pouco ortodoxos, levar pestes e acusar os
homens. Deus já não criava o mal, apenas permitia para “provar os homens”. O mal vinha de Satanás.
Você sabe,
mais profetas. Mas agora para chamar o povo de volta à sua antiga fé. Eles
apelaram para laços de sangue, para promessas novas com cara de antigas e
fizeram do rei-profeta o assunto central de sua pregação. O Messias reinaria
não só sobre Israel, mas sobre todo o Mundo. Era o velho universalismo
babilônico. Aliás, Babilônia permaneceu no imaginário profético como cidade de
Satanás, daí para frente o meme foi usado a abusado nas alucinações
escatológicas de todos os apocalipses.
Agora eu
tinha firmado meu pé na escatologia, era necessário sempre reafirmar o fim de
tudo e o julgamento iminente e dar alguma esperança ao povo oprimido por
guerras e ideias religiosas extravagantes.
Comunidades
de judeus se espalhavam pelo mundo todo incorporando elementos platônicos no
judaísmo da diáspora. Nesses dias eu lutava para me manter em meio a muitas
ideias diferentes, havia os que apelavam à lei, os que, inspirados por ideias
do extremo oriente, se entregavam à ascese, os que eram adeptos de uma leitura
legalista intransigente, os nacionalistas, os messiânicos...
Aliás,
essa última “onda” me deu uma ideia, isto é, se uma ideia pode dizer que teve
uma ideia, é claro.
Roma
comandava por esses dias. E os romanos adoravam as ideias gregas. Ideias que já
tinham entrado com força nos grupos judaicos, desses um despontava como o
possível herdeiro do universalismo babilônico.
Eram
comuns os pregadores itinerantes, mas havia um, Jesus da Galileia, que sabia interpretar
as novas ideias de acordo com o modelo dos rabis. Ele era muito esperto, tinha
ideias novas que casavam muitos bem com os conceitos proféticos dos antigos, o
homem era um gênio, e melhor, um gênio sincero.
Ele
reinterpretou todas as ideias antigas de um reino e um rei universais. Agora
Rei e Reino eram celestes e todos os homens do mundo eram chamados a participar
dele. Jesus era o Messias, mas um Messias espiritualizado que reinava sobre um reino invisível. Era a chance que eu esperava.
Como fora
antes novamente as lideranças perseguiram a nova seita. Mataram o mestre, e
isso foi perfeito para o que eu esperava.
Havia
algumas seitas diferentes naqueles dias, mas todas elas com pontos em comum. O
mestre Jesus foi reinterpretado e adaptado por esses outros sectários. Tudo
convergiu para ele, eu via ali as sementes de uma nova religião e decidi sair
de vez do judaísmo, agora eu iria ganhar Roma, o que significava ganhar o
mundo!
Um dia no
futuro um bigodudo iria falar de um "eterno retorno", se bem que um antigo sábio
tímido já tinha feito o mesmo. As coisas sempre se repetem, sempre. Não há nada de novo sob o sol. Os
herdeiros de Jesus, agora conhecidos como “cristãos”, saíram para ganhar o
mundo. A grande ideia foi prometer a vida eterna a quem tombasse em “serviço”,
uma ideal forte que estimulou multidões de mártires. Entrei no grupo mais
promissor, o dos paulinistas. Essa vertente se tornou, mais tarde, a principal.
Seu principal pensador foi Saulo, um judeu de Tarso que soube como ninguém
casar o pensamento grego com as ideias judaicas fazendo suas próprias inserções
e leituras variantes das tradições ligadas ao mestre nazareno. Foi uma aposta
alta me unir a esse grupo, mas percebi seu escopo universalizante e seu
potencial para ganhar todos os homens e culturas em vez de ficar relegado a um
país pequeno e ilhado num mar de cultura grega.
Pensamentos
sincretistas e tradições herméticas tomaram o cristianismo. Cristo (a palavra
grega para “Messias”) foi divinizado e associado ao Logos dos filósofos. O
culto de Mitra contribuiu com o sacrifício e o conceito de remissão.
As ideias
platônicas, já presentes no pensamento cristão, oriundas do encontro com os
gregos, tomaram força quando pagãos convertidos ao cristianismo utilizaram as
ferramentas da filosofia grega para defender sua nova fé, foi a época dos
grandes apologistas!
Foram dias
de efervescência cultural. Ideias iam e vinham. Os mártires se multiplicavam
com igual vigor.
É estranho
como as coisas são feitas de idas e vindas, algumas tradições com as quais já
tínhamos tido contato voltaram a exercer certa influência em nós e, o que é
pior, criar linhas alternativas e, em alguns casos, concorrentes. Eu não me
preocupei muito com isso, minha preocupação era estar sempre na linha principal
ou na que melhores condições tivesse de sobreviver. Como fora nos tempos sacerdotais,
houve uma guerra interna pela primazia. Eu só precisei escolher a facção certa.
Minha lógica me dizia que o melhor grupo era aquele que estava ao lado
do poder, portanto meu lugar era Roma. Fui deixando as roupagens gregas e me
revestindo de Cícero, Plauto e Virgílio.
O grande
império dos romanos cindiu-se em dois, um latino e outro grego. Fiquei com os
latinos, mas muitos achavam que com os gregos estavam melhor, uma escolha até
certo ponto acertada, mas que não se mostraria a melhor quando mil anos se
passassem sobre nós.
Invasores
vieram do norte (sempre de lá!) e tomaram Roma, mas desta vez não houve
sincretismo nem penetração de ideias religiosas, os conquistadores foram
conquistados pela opulência romana. Exerceram certa influência, mas graças aos
pensadores latinos, principalmente Agostinho de Hipona, pude me manter intacto.
Alguns desses conquistadores eram arianos, uma vertente cristã que negava a
plena divindade de Jesus, mas que no resto pouco divergia de nós. As duas
tradições combateram por um tempo, mas nossa vertente passou adiante, pois o
paganismo, principio basilar por trás da religião romana, tinha pouca
tolerância ao monoteísmo extremo comum aos judeus e aos arianos. Um filho de
Deus excelso, ele mesmo Deus, era muito mais atrativo. Obviamente isso
levantava alguns problemas, mas os apologistas já vinham há séculos formulando
hipóteses e propondo soluções criativas. Uma delas, a menos instintiva, o que
impressiona, venceu. Era a doutrina da Trindade. Nela não só o Logos era divino,
como havia também um terceiro participante da Divindade, o Espírito Santo. Isso
resolveu uma montanha de problemas e ajudou a associar o cristianismo a uma
série de tradições religiosas de várias partes do mundo conhecido que
acreditavam numa divindade plural. Os hindus tinham a sua Trindade, assim como
os egípcios e mesmo os gregos. Alguns viram nisto uma forma sutil de
politeísmo, mas os cristãos, principalmente um padre chamado Atanásio,
resolveram o problema afirmando que, embora houvesse três pessoas na divindade,
Deus era um só. Estavam casados os princípios pagãos com o monoteísmo judeu.
Isso aconteceu antes da queda de Roma e a discussão estava no seu auge quando
os bárbaros desceram do norte.
Depois da
queda de Roma veio uma época que viria a ser conhecida como "Idade Média" num
futuro distante. Roma caiu, mas suas instituições permaneceram vivas no seio da
Igreja Cristã, o grande poder por mil anos! Na igreja casaram-se os poderes
espirituais e seculares, o bispo de Roma, o Papa, era, para todos os efeitos,
imperador do mundo. Isso exigiu novas interpretações e extensa formulação
doutrinária, pois o cristianismo não tinha essa característica inicialmente.
Jesus, na verdade, fez separação entre igreja e estado quando disse “Dai a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus”, coitado, se ele soubesse em que
dariam suas ideias vanguardistas!
Quanto a
mim, que posso dizer? Eu preciso sobreviver, escolhe o melhor lado para isso,
não posso me dar ao luxo de fazer escolhas morais, embora, suprema ironia,
moralidade seja o tema central das ideias religiosas!
Não houve
mais grandes desafios para nossa vertente. Havia grupos pagãos espalhados por
toda a Europa, mas eram tradições ágrafas, e nossas experiências mostraram que
o poder estava em eternizar as ideias por meio da escrita. Nossa preocupação
sempre foi manter nossa coleção de livros em ordem. Foi assim desde a Suméria.
Com os judeus levamos isso quase à perfeição. Os cristão apenas levaram isso
adiante. Quando Roma caiu já tínhamos uma coleção autorizada de escritos
cristãos. Verdade é que muita coisa teve que ser deixada pelo caminho, outras
tantas tiveram que receber novas redações e formas “mais claras” em
traduções ”autorizadas”. Se tudo que em algum momento foi considerado inspirado
tivesse sido incluído na coleção de escritos cristãos, teríamos uma Bíblia dez
vezes maior hoje. Tivemos que fazer escolhas, cortes, interpolações. O grande
problema é que não é tão simples assim corrigir o que foi escrito, pois muitos
documentos variantes acabam surgindo do processo e sempre tem alguém que
descobre uns manuscritos do período anterior que negam o texto do momento. No
futuro até vai surgir uma “crítica textual” para fundir todas essas variantes
num só texto, como se elas, originalmente, fossem parte comum de um documento
único! Idiossincrasias do pensamento cristão!
Confesso
que não gostei muito desse período latino, ele era muito severo, fechado,
sisudo. Eu que já falara idiomas semíticos, que dançara ao redor de fogueiras
nas bases do Sinai, que adorara o fogo junto aos edifícios de Susa, que estivera nos casamentos e celebrações religiosas judaicas me vi forçado a manter minha
existência nos mosteiros ouvindo intermináveis ladainhas em latim eclesiástico!
Mas minha
longa experiência não me deixou perder as esperanças, eu sabia que em algum
momento os ponteiros do eterno variar dos ciclos iriam se mover. Eu sabia
exatamente o que viria a seguir. Quando uma coisa se institucionaliza logo
surgem vertentes leigas para questionar seu estado. Na época dos judeus o
profetismo sucedeu o sacerdotalismo seco. Logo, eu imaginava, surgiriam os
profetas!
Algumas
das ideias perdidas pelo caminho, aquelas de forte inclinação gnóstica e
doceta, e algumas monoteístas extremadas, encontraram um bom acolhimento num
novo profeta que surgiu nas tendas da Arábia. Mohamed bebeu dessas fontes
esquecidas por meio de algumas seitas cristãs remanescentes e do judaísmo da
comunidade judaica de Meca. Ele soube readaptar aquela velha inserção que fora
feita na história de Moisés, que em outra vertente fortaleceu a crença da vinda
do messias, e nominou-se o “profeta semelhante a mim” da velha profecia. Mohamed não teve o
problema da eterna dicotomia sagrado/ profano dos cristãos. No seu sistema não
existia algo como a separação dos poderes espiritual e secular. Quando Mohamed
morreu seus seguidores continuaram sua luta e levaram seu império às portas da
Igreja Cristã. Uma frutífera civilização islâmica floresceu em lugares tão
distintos quanto Bagdá, no Iraque, e Sevilha, na Espanha.
Isso me
preocupou um pouco, pois se o islamismo ocupasse a Europa eu poderia acabar
esquecido ou relegado a uma seita marginal! Exceto se eu conseguisse ser
incorporado naquele sistema, algo bem complicado, pois muçulmanos desde cedo
puseram suas crenças por escrito no seu Alcorão.
Uma
pequena luz surgiu na Europa. Um profeta cristão surgiu pregando o retorno às
origens gregas. Retorno aos conceitos presentes no texto bíblico sem as
inserções tradicionais introduzidas pela ramo majoritário do cristianismo romano. A
comunidade dos Valdenses prosperou. Eu comecei a prestar mais atenção neles. Na
época não parecia que tinham chance de se tornar algo mais que uma seita
marginal, mas a ideia era poderosa. O latinismo tinha seu meio milênio de
influência, mas o helenismo tinha raízes que remontavam à Babilônia.
Por essa
época os cristãos começaram a se preocupar com a penetração islâmica, algumas
cruzadas foram organizadas e a guerra religiosa se espalhou trazendo morte, mas
também uma certa efervescência cultural com a chegada de novas ideias à Europa.
Foram redescobertos antigos textos gregos de filosofia que estiveram sob a
guarda dos árabes, também chegaram novos conceitos científicos e ferramentas
matemáticas. De certa forma, foi meu primeiro contato com o mais poderoso
inimigo que eu viria a enfrentar quase um milênio adiante, a ciência.
Houve
também contato com comunidades cristãs e judaicas separadas há séculos, isso
impulsionou o estudo das línguas originais das escrituras judaico-cristãs, o grego e o
hebraico. Com esse novo conhecimento espalhando-se rapidamente pela Europa, o
interesse pelo helenismo aumentou muito. Clássicos gregos conhecidos somente
através de traduções latinas inundaram a Europa. Alguns textos, considerados perdidos, foram reencontrados.
O
interesse pelos clássicos também influenciou alguns a buscar nos documentos
gregos a essência original da doutrina cristã. Novos profetas pregando a
reforma da Igreja surgiram. Eles queriam um retorno à pura doutrina escritural.
Claro, como eu já expliquei antes, a história é cíclica. Na esteira do questionamento
veio a resposta violenta. A guerra agora não era entre cristãos e muçulmanos,
mas entre vertentes cristãs. A igreja se fechou, tudo o que era considerado ameaça
ao seu poder foi perseguido, toda ideia diferente era heresia e a punição era
a morte. Não morreram só pessoas de fé, mas muitos tipos de pensadores, desde
filósofos e cientistas até ocultistas e visionários.
Nunca me
agradou essa matança toda. Eu sei que ela era fruto de alguma ideia mais
zelosa, mas eu nunca consegui identificar quem ela era. Da minha parte eu pouco
me preocupava com sincretismo, como eu disse antes, sou uma ideia com
capacidade ilimitada de mudança e adaptação. As únicas ideias que realmente me assustam são
as científicas, pois elas tem um correlação muito forte com o que é observado no
mundo e podem, a longo prazo, levar ao fim da religião. As ideias religiosas
nascem com a curiosidade e das aspirações humanas, curiosamente parecido com o
que ocorre com as ideias científicas. A diferença é que nós não temos
correlação real com o que ocorre no mundo, uma ideia religiosa não parte do
empirismo, ela é uma resposta mágica a um fato do mundo, mas nunca é uma
explicação coerente. Dependemos muito da superstição e do medo. A ciência tem o
poder de explicar o mundo e com isso banir o medo supersticioso das almas
humanas. Além disso ela oferece saídas para os perigos de uma realidade hostil
que vão muito além de orações e manifestações de arrependimento. Mas isso é
história futura, voltemos à minha narrativa.
Eu já
tinha uma certa ideia dos caminhos que deveria seguir, mas tive certeza quando
soube que um monge agostiniano tinha questionado abertamente a igreja fixando,
como era costume, quase uma centena de “teses” nas portas de Wittenberg. As
ideias desse monge, Martin Lutero, concordavam com as ideias dos valdenses, ele
também pregava um retorno às escrituras. A diferença é que ele era um membro
respeitado do clero e contava com a simpatia de boa parte da nobreza europeia
que estava cansada dos desmandos romanos. Não tive dúvidas, abandonei o catolicismo
romano, me tornei protestante!
O
Protestantismo deu um novo impulso à minha existência, ele era mais aberto,
mais humano, mais alegre. Eu me deliciava com as longas pregações de
Melanchthon e a ironia ácida das obras de Lutero. Entretanto havia algo que me
preocupava muito com a nova vertente, sua amizade com os poderes seculares. Eu
já sabia o que viria a seguir. Em pouco tempo surgiram novas seitas que trouxeram mais lutas e divisões. Lutero
mesmo ensinava que cada cristão poderia livremente interpretar sua Bíblia, . Havia pequenos grupos de anabatistas nas
terras protestantes. Os anabatistas pregavam o batismo de arrependimento. Eles
se inspiraram em João Batista. Alguns eram pacifistas, outros negavam o poder e
autoridade dos príncipes.
Eu sabia
que para continuar existindo precisava manter minha condição adaptativa. Desde
então decidi que não ficaria restrito a apenas um grupo, mas procuraria
estender minha influência ao maior número de grupos possível.
A ideia
exótica da sola scriptura e da livre interpretação criou uma enormidade de
grupos e vertentes cristãs. Alguns deles
ressuscitaram ideias do passado remoto, pequenas sutilezas docetistas, arianas
e maniqueístas. Alguns pregadores redescobriram Babilônia, vista agora como a
Roma do poder papal. Foi um duro golpe no sacerdotalismo pelo profetismo latente que permeia a imaginação humana.
Novos
ventos sopravam sobre a Europa. Missionários protestantes e católicos levavam a
fé para o extremo oriente e para as novas terras do novo Mundo.
Ideias
filosóficas, científicas e ocultistas pululavam. Grupos herméticos eram comuns
em toda a Europa. Alguns estados protestantes eram reconhecidos por sua
liberdade e para eles afluíam os melhores pensadores do Velho Mundo.
Eu a tudo
prestava atenção, tentava a todo custo me antecipar ao próximo lance religioso.
Soube que na Inglaterra surgira uma nova corrente mística. Encaminhei-me para
lá nas tralhas de um comerciante alemão. Encontrei dois grupos bem marcados e
que estavam sofrendo alguma perseguição da igreja estatal inglesa, dessa eu
guardei a devida distância. Incorporei-me num grupo Quaker. Os Quakers eram
muito estranhos, acreditavam numa manifestação mística do Espírito Santo quando
estavam todos sentados em silêncio. Voltaire escreveu algo sobre eles nas suas
Cartas Inglesas e eu aconselho que se alguém quiser saber mais do que digo que
procure esses escritos.
Eu me
mantive entre os quakers por um tempo, mas me assegurei de estar bem firme
entre outras seitas protestantes. Mais alguns anos se passaram e um verdadeiro
profeta surgiu na Inglaterra, um homem que influenciaria gerações de cristãos
de todos os credos, seu nome era John Wesley. A vertente criada por Wesley era
chamada de “Metodismo” devido à extrema disciplina com que os metodistas praticavam sua fé. Essa vertente
cresceu, pois ensinava que havia uma espécie de ralação pessoal entre o crente
e o divino. Quando Max Weber fala em “ascese intramundana” não consigo deixar
de pensar nos wesleyanos, outra denominação dada ao grupo dos seguidores de Wesley. Eles eram “monges seculares” e seu mosteiro era o mundo todo.
As coisas
não me pareciam muito boas no Velho Mundo. O secularismo dos filósofos naturalistas me preocupava. Resolvi emigrar. Tomei um navio em
Londres e aportei na América. Uma vez lá, me misturei a comunidades puritanas e grupos de quakers. Havia praticamente só protestantes naquela parte da América,
soube que os católicos se concentravam mais ao sul do continente e evitei esses locais.
A América
do Norte era espiritualmente efervescente. Vi muitos movimentos
nascerem e morrerem por ali. Um dos mais estranhos foi o iniciado por um
protestante chamado Joseph Smith. Ele criou todo um novo sistema em cima das
ideias cristãs, concebeu profetas no novo mundo a aumentou o número das
escrituras sagradas. Ele restaurou algumas ideias perdidas desde a morte do
paganismo e seus seguidores trataram de explicar isso de forma mais clara. Com
eles o politeísmo foi restaurado no cristianismo. Outra ideia forte e que
também foi uma forma de restauração (cristãos adoram reformas) foram os
movimentos sabatistas que deram origem ao adventismo. Eles partiram de uma
ideia escatologica, o retorno iminente de Cristo, e restauraram a observância
da Lei Judaica. Como eu disse antes, essa religião é cheia de idas e vindas.
Os tempos
passaram e pouco depois da virada do século XIX para o XX surgiu aquela que
seria a ideia majoritária em todo o protestantismo daí para frente, o Pentecostalismo. Grupos de crentes místicos sempre existiram no Cristianismo,
mas nem todos eles adotaram manifestações carismáticas como padrão de culto. Os
pentecostais eram, inicialmente, crentes oriundos de diversas denominações
cristãs que participaram do avivamento que acontecera na Rua Azuza, na igreja
do reverendo Willian Seymour. Seymour nasceu batista, mas encontrou sua luz na
igreja metodista. À partir da sua experiência particular ele criou sua própria
versão de cristianismo verdadeiro. Para ele e seus seguidores, as manifestações
descritas no Novo Testamento eram atuais e reais na vida de qualquer um que as
aceitasse. Todo crente poderia curar e fazer profecias. Seu carro chefe eram as
“Línguas estranhas”, um fenômeno conhecido pela Psicologia como “glossolalia”.
Nessa manifestação o indivíduo acredita estar falando numa língua real, mas
desconhecida para ele. Alguns acham que essas línguas são linguagens de outros
povos, outros creem que são línguas mortas, alguns que são línguas de anjos e
outros, ainda, que são linguagens especiais criadas por Deus para cada pessoa. Esse
conceito passou a ser central na mensagem pentecostal. No decorrer do século XX
muitas igrejas tradicionais aceitaram as manifestações pentecostais, ou pelo menos fizeram vista grossa, para
não perder fiéis. O pentecostalismo, na sua ênfase ainda mais vigorosa que o
Metodismo num relação direta do crente com Deus, é uma ideia poderosa. Hoje
quase toda igreja tradicional tem sua variante pentecostal. Até os católicos,
ferrenhos tradicionalistas, tem sua vertente carismática.
Eu não
podia perder essa chance, afinal, os pentecostais eram o que eu sempre desejei,
um grupo em que a superstição fosse o ápice da fé, eles são quase
indestrutíveis aos poderes da ciência e serão os guerreiros da fé quando todos
os demais estiverem capitulando!
Os
pentecostais fizeram o que nenhum grupo, exceto os muçulmanos pela espada,
fizera antes deles, se espalharam pelo globo com um fervor proselitista ainda maior que o dos primeiros paulinistas.
Eu finalmente havia encontrado o produto final da mensagem cristã! Um que
resgatou os primeiros movimentos da mente animista ancestral. Um pentecostal vê
milagres em toda parte, tudo é provisão ou vontade de Deus. São, em sua
maioria, arminianos, mas comportam-se como os mais obcecados calvinistas!
Competem
com basicamente toda vertente do pensamento humano. Combatem a ciência, a
filosofia, as religiões não cristãs e todas as vertentes que não compartilham
de seus pontos de vista. Adoram política, e isso não me agrada muito, mas não
tem, até agora, interesse em fundar uma república pentecostal. E criam milagres
que ajudam a manter sempre vida a onda de novos fiéis em suas igrejas. Os
pentecostais veem milagres onde outros seres humanos veem apenas fatos
corriqueiros, e explicam cada fato do mundo dessa forma. Não são como os
católicos que sempre exigem provas de curas e outros feitos, para eles basta o
testemunho, pois são incitados a nunca duvidar.
Durante um
tempo as vertentes pentecostais, havia muitas, permaneceram na periferia do pensamento
cristão, mas conforme foram conquistando fiéis e poder começaram a definir os
rumos de toda a cristandade.
O
pentecostalismo mostrou-se muito bom em sincretismo, as experiências pessoais
passaram a ser cada vez mais bizarras, incluindo elementos encontrados em
religiões africanas e conceitos presentes nas filosofias orientais. O
interessante é que, para esses cristãos, tudo isso era não só bíblico como
altamente aceitável e útil para uma vida cristã plena. Eu aproveitei ao máximo
essa tendência incluindo eu mesmo algumas melhorias no sistema.
Quando um
grupo religioso tem sucesso em arrebanhar novos seguidores é natural que as
organizações por trás dele se tornem cada vez mais opulentas, isso aconteceu
muitas vezes no passado e eu sabia que aconteceria novamente.
Eu pensava
num forma de conciliar isso com a mensagem cristã, algo nada fácil,
considerando a visão de Cristo e dos paulinistas sobre riquezas. Eu andava
preocupado com isso, ficava muito tempo pensando numa solução. Um dia reparei
numa conversa que dois pastores pentecostais estavam tendo. Um deles havia
comprado um carro moderno e o outro estava preocupado com o que diriam os fiéis
quando notassem isso, “afinal de contas”, argumentava o homem, “ a maior parte
da nossa membresia é composta de gente humilde”. O segundo argumentou que ver a
prosperidade como um mal não era algo realmente bíblico e que prosperidade era
um dom de Deus. Entendi na hora o caminho que deveria seguir.
Uma nova
vertente surgiu, na verdade uma melhoria do pentecostalismo clássico, era o “neo-pentecostalismo”,
um movimento que incorporava tudo o que era ensinado pelos pregadores
pentecostais com ênfase na prosperidade e na origem satânica dos males humanos.
Esse grupo ensinava que assim como Abraão fora um homem próspero e Cristo fora
tão rico que tivera, inclusive, um tesoureiro particular era necessário ao
crente colher nessa vida os frutos da sua fé manifestados na benção material! Alcançar a benção era uma questão de sacrifício, ou seja, participar dos rituais e fazer doações às igrejas. Foi um sucesso! O pentecostalismo já ganhara o mundo, bastou ao
neo-pentecostalismo seguir suas pegadas. Afinal de contas, ambos nasceram no
maior império que já existira, os Estados Unidos da América.
Obviamente
isso suscitou alguns problemas de ordem teológica com as outras vertentes, mas
os teólogos da prosperidade apelaram para as emoções de seus membros, e mais, para
a ambição deles! Finalmente duas aspirações juntas, ganhar o mundo e o céu ao
mesmo tempo. Esse grupo conquistou pessoas com maior poder aquisitivo que os
pentecostais, pois a sua mensagem caía como uma luva nas formas de ver o mundo
das elites econômicas. Os neo-pentecostais trataram o Cristianismo como um produto
e aplicaram toda a sua astúcia em tornar esse produto algo vendável utilizando
ferramentas antes encontradas apenas no marketing e na propaganda. Eles também
introduziram técnicas de sugestão hipnótica e criaram fetiches para melhorar a
visualização dos fiéis. Vendiam correntes santas, água do rio Jordão, cruz
santificada e tudo o mais que pudessem para arrancar uns cobres dos mais
crédulos. Os neo-pentecostais transformaram o proselitismo numa arte agarrando
seus discípulos pela cobiça.
Eles
investiram em meios de comunicação, foram os primeiros a ter programas de
televisão. Investiram na política e tinham suas próprias instituições
teológicas.
Obviamente
foram perseguidos, não como no passado, mas com a pena dos apologistas
modernos. Claro que esses novos justinos e irineus não tiveram muito sucesso,
pois a Teologia da Prosperidade não era apenas uma religião nova, mas era
também a manifestação mais clara e eficaz do modo americano de ver a vida. E
não se destrói tão facilmente uma visão, ainda mais quando essa visão tem seu
poder maior no desejo humano de estar bem, de ser feliz aqui e agora.
Com o
tempo os pentecostais deixaram de perseguir os neo-pentecostais e acabaram até
por adotar muitas das suas práticas de sucesso a ponto de se tornarem
indistinguíveis. As flechas apologéticas se voltaram em outras direções. Na
luta contra a ciência, investiram no Criacionismo, a ideia exótica de que o
mundo veio a existir exatamente da forma como é narrado no livro bíblico do
Gênesis. Também iniciaram um luta intestina contra o modo secular de ver o
mundo, os ateus eram um mal a ser combatido em todas as suas formas. Em nome da
moralidade rejeitaram o "homossexualismo", o que, como é bem típico do
cristianismo, ensejou a criação de igrejas específicas para homossexuais. O
Cristianismo é assim, tudo nele que é combatido vira sucesso.
Às vezes
me perco a imaginar como seria o mundo se os cristãos não tivessem sido
perseguidos primeiro pelos judeus e depois pelos romanos. Talvez algumas
tradições pagãs tivessem evoluído e o mundo hoje fosse ainda mais variado nesse
quesito do que é. Talvez o Cristianismo fosse hoje apenas uma velha seita
judaica relegada a grupos marginais e comunidades hippies. Quem sabe?
O fato é
que depois de cinco mil anos de existência ainda não consegui um meio eficaz de
saber ao certo o que o futuro me reserva. Alguns pensam que a educação tornará
o homem imune às ideias religiosas. Eu não temo mais isso, a religião apela
para o irracional humano, aquilo entranhado na sua alma e que não pode ser
arrancado de lá.
Hoje eu
vivo uma vida confortável, tenho todas as ideias do mundo ao meu lado, não
preciso mais mudar porque incorporei tudo o que necessito para ter apelo. Os
homens continuam sofrendo e sempre buscarão meios de amenizar esse sofrimento
da forma mais fácil. Um homem vai ao médico e faz o tratamento prescrito, mas
só se sente feliz quando um pastor impõe a mão sobre sua cabeça e diz que Deus
o livrará desse mal. Eles conseguem fazer das conquistas médicas um negócio
divino!
Apesar de
tudo, tenho sentido cada vez mais saudades do meu passado distante. Às vezes pareço
ouvir os instrumentos de corda antigos e as estranhas canções nômades entoadas
sob a luz das estrelas ao redor de grandes fogueiras que brilhavam longe nas
solidões dos desertos. Penso na marcha lenta dos camelos e no cinzel marcando a
frieza da rocha. Acima de tudo, sinto falta dos deuses, semideuses e monstros
mitológicos vivendo e morrendo em escrita cuneiforme nas tabuinhas de argila da
Suméria...
muito bom !
ResponderExcluir10.000 anos em uma página . . .