terça-feira, 28 de maio de 2013

História de uma ideia – Da Suméria à América

Uma das coisas mais difíceis quando você escreve a sua história pessoal é definir quem você é, ou talvez, como é o meu caso, definir o que você é. Na verdade não me preocupo muito com definições, pelo menos não me preocupo mais, pois durante a minha existência descobri que conceitos são rótulos que precisam ser mudados de tempos em tempos.

Entretanto, para o trabalho que eu pretendo realizar, exige-se uma definição. Vejamos, eu não sou exatamente “alguém”, mas também não sou uma coisa no sentido que uma pedra é uma coisa. Nem se pode com certeza definir onde me origino, digo, “onde” no sentido de origem primária, de local de produção. Na verdade quando falo de mim prefiro a expressão “veículo” em lugar de “origem”. Meu veículo é a mente humana, mais precisamente alguma forma de aspiração que não foi ainda bem definida no interior da alma humana.

Alguns me chamarão “conceito”, outros preferem “ideia”, alguns outros “reflexo divino”. Eu sou tudo isso e nada disso. Se eu fosse poeta, diria que sou uma partícula em constante mutação. Eu sou uma ideia, mas uma ideia religiosa. Uma ideia que, apesar de sempre assumir novas roupagens, permanece fixa na mente humana, que talvez tenha nascido com essa mente e que morrerá com ela. Isto é, se não existir algo ainda mais estranho que me possibilite ser uma ideia que continue além dos limites da existência humana. Sei, isso já é especulação. Não me critique por isso, afinal de contas eu sou uma forma viva de especulação. Se eu pudesse tomar emprestado um termo moderno para me definir, esse termo seria “meme”, pois é isso que sou, um meme religioso.

Eu não sei ao certo onde nasci, na verdade onde fui gestado, pois meu nascimento eu sei muito bem onde se deu. Alguns dizem que fui gerado na Mesopotâmia uns cinco mil anos atrás, outros encontram vestígios da minha existência em monumentos de culturas ainda mais antigas e agora esquecidas. Um professor famoso acreditava ver reflexos do que eu seria já nas pinturas rupestres de dezenas de milênios atrás. Eu não sei. O que sei é que andei muito tempo por aquela região, o que hoje chamam “Oriente Médio”, até que num dia qualquer  mãos calosas fixaram minha primeira forma em tabuinhas de barro. Minha primeira face foi “cuneiforme”. Confesso que não gostei muito dessa imagem. Ela não era nem um pouco graciosa, era conhecida por poucos agraciados, geralmente homens velhos, de mãos ásperas e tremulas.

Não sei quantos séculos fiquei naquela forma, mas num dia qualquer, depois de uma viagem breve ao Egito, finalmente vi a luz de um novo sol nas tendas de um nômade no Deserto do Sinai. Eu era, então, uma palavra que ele reverenciava todas as manhãs, embora eu tenha quase certeza de que nunca aprendeu a ler. Tempos se passaram e eu agora era parte de uma nova cultura que começava a querer fincar o pé numa vida sedentária.

Eu não era mais o mesmo. Tinha tomado uma nova forma, tanto física quanto interpretativa. Minha forma era agora mais graciosa, perdi as linhas peculiares da cunha e ganhei estilos que vagamente lembravam meus tios hieróglifos. Era invocado agora por algumas centenas de pessoas.

Dias e noites se passaram nas sombras das palmeiras. Numa noite escura de outono, ao som de orações sussurradas, ganhei finalmente morada no meu primeiro texto sistemático, eu não era mais uma simples ideia, agora compartilhava espaço com muitos outros companheiros, uns tão antigos quanto eu, outros que davam os primeiros vagidos naquele mundo novo.

Passaram-se mais dias e noites. Agora havia um templo, rústico, é verdade, mas um templo. Eram dias de novidade, eu andava peregrinando nos montes de Canaã pela boca dos sacerdotes. Eu inspirava homens a se declararem profetas. Costumes, dogmas e rituais nasceram.

Por um tempo as coisas andaram estranhas, havia muitos de nós e cada um andava como bem queria. Os sacerdotes se multiplicaram e o povo andava confuso com algumas outras ideias que desceram da nossa terra natal.

Num dia memorável, um velho e bom sacerdote, ainda me lembro da sua face serena e de suas mãos rápidas, limpou-nos de alguns conceitos, vestiu-nos de novas roupagens e foi apresentar-nos ao rei. Hilquias, este era seu nome, tomou-nos alegremente nos braços e entrou no palácio do rei Josias anunciando que achara o “livro da lei”. Achei suspeito esse anúncio, mas quem era eu para dizer alguma coisa?

O rei olhou para o rolo sem esboçar emoção. O pobre do sacerdote deixou cair os braços. Josias tomou o livro e leu. Levantou a sobrancelha direita, Hiquias engoliu o ar em seco.

“Até que é uma boa ideia”, disse o soberano, “reúna os outros sacerdotes”.

O grupo trabalhou durante algumas semanas. No fim o novo trabalho em cinco volumes foi apresentado ao rei. O soberano sorriu satisfeito e ordenou aos seus escribas que copiassem os rolos e que também procurassem expandir a coleção interpretando as crônicas do reino de acordo com a nova diretriz.

A multidão do povo se postou diante do tablado, o rei, a rainha e os nobres do reino estavam todos sentados ao redor. O Sumo Sacerdote Hilquias leu os cinco rolos durante aquele dia todo. Havia lágrimas em muitos olhos e o povo pela primeira vez sentia sua unidade enquanto nação escolhida e povo santo.

Eu transitava de coração em coração, de rolo em rolo. Aquele foi um dia muito feliz. No fim da semana estávamos no templo assistindo os rituais e sacrifícios. Hilquias estava radiante na sua nova função.

O tempo passou. Vi muitas coisas, guerras, epidemias e sedições no reino. Alguns novatos continuavam forçando o limite das fronteiras. Vez por outra eu ouvia falar de novos cultos e de antigas religiões que teimavam em continuar existindo nos costumes do povo. Esses costumes, na verdade memes concorrentes, tentaram se passar por membros do nosso grupo, alguns até se associaram conosco, foi a primeira vez que ouvi falar em sincretismo.

Os sacerdotes de Jerusalém não gostaram muito disso, pois havia outros grupos de homens que se diziam parte do sacerdócio santo. Alguns deixaram de levar ofertas ao Templo e passaram a fazer sacrifícios nos montes e em outros lugares sagrados fora de Jerusalém.

Nessa época os livros sagrados receberam a revelação sobre a origem do Templo, ele havia sido construído pelo grande e sábio rei Salomão. Isso criou algum problema, pois existiam dois tipos de relatos sobre esse rei, num ele era um homem piedoso e sábio, noutro fora um rei irresponsável e mulherengo. Ambas as tradições circulavam entre o povo. Os escribas tiveram muito trabalho em costurar as duas tradições e argumentar que eram períodos diferentes da vida de um mesmo homem.

Depois disso saiu um decreto do rei condicionando o culto em todo o reino às regras especiais descritas nos livros sagrados e determinando que o local oficial de culto fosse o Templo em Jerusalém. O decreto também determinava que todos os locais não oficiais fossem destruídos e que seus sacerdotes fossem destituídos. Alguns desses homens resistiram e pela primeira vez ouvi falar em guerra santa. Oráculos foram produzidos para justificar as matanças que se seguiram.

Vários reis se sucederam e as guerras perduraram por todo esse tempo. Alguns dos sacerdotes de Jerusalém escreveram histórias sobre um “reino do Norte” que já fora parte do povo santo. Os anciãos realmente se lembravam de que aquela terra fora uma só em tempos remotos. Os sacerdotes também escreveram sobre profetas antigos que falaram do fim desse outro reino e disseram que a razão eram os cultos paralelos. Falavam de profetas lutando contra sacerdotes maus e de fogo descendo do céu para destruir todos os idólatras. Todos os cultos rivais foram qualificados como “idolatria”, os sacerdotes argumentavam que a verdadeira divindade não era como as imagens dos outros povos, mas era um poder invisível e todo poderoso que escolhera os ancestrais do povo hebreu para habitarem toda aquela região. Uma ideia engenhosa, sem dúvida. Aliás, esses sacerdotes eram bem visionários, pois estenderam o território, ainda que apenas no texto, até quase meu local de gestação.

Se tem uma coisa que se sabe quando se é uma ideia é que para sobreviver você tem que se adaptar. E foi isso que fiz, me adaptar a toda nova ideia que fizesse algum sucesso entre o povo. Esse é o meu segredo de longevidade, uns comem isso, outros tem tais e tais hábitos, eu troco de roupa.

Eram tempos difíceis aqueles, um novo e poderoso império surgira no norte e estava rapidamente assimilando todos os povos aparentados do Eufrates para baixo. Eles já haviam assimilado os povos que viviam na região norte de nossa nação e agora olhavam para a terra pobre mais ao sul, um ponto estratégico para estrangular o Egito.

Os reis daqueles tempos forma rápidos e logo se tornaram vassalos dos reis assírios, o que garantiu a sobrevida do pequeno reino de Judá e garantiu aos assírios o controle de uma região sem os custos de uma campanha bélica.

Tive muito trabalho naqueles dias, algumas pequenas ideias desceram do norte e exerceram certa influência sobre as formas de culto.

Havia um pouco de insatisfação com o sacerdócio e surgiram homens leigos dentre o povo fascinados com as antigas histórias de profetas. Esses novos profetas tiveram uma grande influência sobre o pensamento daqueles dias. Eles exerceram um grande poder sobre o povo, falavam de justiça social e diziam que um grande reino surgiria um dia, um reino eterno segundo o reino que fora prometido ao rei Davi, um antigo chefe tribal elevado à condição de rei messiânico pela tradição profética.

Os profetas começaram a se preocupar com a parte invisível da realidade, embora ainda não tivessem criado um sistema metafísico completo. A literatura de Nínive era popular por aqueles tempos e todo homem culto conhecia a escrita cuneiforme dos antigos sumérios, os primeiros a codificar a mensagem que se originou de mim.

Inicialmente os profetas foram perseguidos pelos sacerdotes, mas como a perseguição tinha um efeito diferente do que esperavam entre o povo, isto é, criava curiosidade e gerava mais profetas, resolveram fundir o que se criara até então com as novas tendências importadas do norte. Por essa época foi introduzida uma esperança profética na história de Moisés, o grande legislador israelita. O sacerdote e o profeta deram as mãos em Davi e Moisés, protótipos de uma ideia que seria muito poderosa em tempos de crise e por todo o futuro distante, a do Messias.

A Assíria caiu e um novo poder aparentado ascendeu ao trono oriental, os babilônios, membros de uma antiga tribo semita acadiana. Os Babilônios herdaram toda a cultura antiga dos sumérios e acadianos e deram-lhe tal brilho que jamais houve cidade como Babilônia naquele território depois disso. Toda a cultura afluía do norte e os reis babilônios exerciam seu poder por todo o mundo. Eles levaram adiante as ideias assírias de assimilação. Não é segredo que toda aquela região era ocupada por povos aparentados, assimilar e misturas todas essas culturas não era algo exatamente difícil.

A estratégia babilônica era muito simples, deportação em massa e reassentamento em locais em que o apelo tradicional pela terra não fosse tão forte. Os babilônios tinham uma ideia esquisita de universalismo, eles queriam que todos fossem babilônios!

Aí você já deve saber, novas ideias descendo, outras interpretações e interpolações surgindo e eu me adaptando!

O império babilônico se foi e surgiu o persa. Os persas tinham uma religião bem esquisita, mas suas ideias teológicas eram exatamente o que os pensadores judeus precisavam para melhorar seu sistema.O dualismo de Zoroastro desceu como uma luva sobre as mãos judaicas em busca de uma explicação para tanto mal no mundo do seu Deus excelso.

Pela primeira vez o mal tinha um nome, Satanás. Antes apenas uma espécie de servidor celestial para trabalhos pouco ortodoxos, levar pestes e acusar os homens. Deus já não criava o mal, apenas permitia para “provar os homens”. O mal vinha de Satanás.

Você sabe, mais profetas. Mas agora para chamar o povo de volta à sua antiga fé. Eles apelaram para laços de sangue, para promessas novas com cara de antigas e fizeram do rei-profeta o assunto central de sua pregação. O Messias reinaria não só sobre Israel, mas sobre todo o Mundo. Era o velho universalismo babilônico. Aliás, Babilônia permaneceu no imaginário profético como cidade de Satanás, daí para frente o meme foi usado a abusado nas alucinações escatológicas de todos os apocalipses.

Nesse tempo abandonei o aramaico e abracei o grego! Novas ideias correram para me abraçar, foi um esforço introduzir os heróis de Homero na antiga história e fazer deles filhos dos anjos, uma ideia que sobreviveu por séculos e que ainda fascina alguns sonhadores modernos.

Agora eu tinha firmado meu pé na escatologia, era necessário sempre reafirmar o fim de tudo e o julgamento iminente e dar alguma esperança ao povo oprimido por guerras e ideias religiosas extravagantes.

Comunidades de judeus se espalhavam pelo mundo todo incorporando elementos platônicos no judaísmo da diáspora. Nesses dias eu lutava para me manter em meio a muitas ideias diferentes, havia os que apelavam à lei, os que, inspirados por ideias do extremo oriente, se entregavam à ascese, os que eram adeptos de uma leitura legalista intransigente, os nacionalistas, os messiânicos...

Aliás, essa última “onda” me deu uma ideia, isto é, se uma ideia pode dizer que teve uma ideia, é claro.

Roma comandava por esses dias. E os romanos adoravam as ideias gregas. Ideias que já tinham entrado com força nos grupos judaicos, desses um despontava como o possível herdeiro do universalismo babilônico.

Eram comuns os pregadores itinerantes, mas havia um, Jesus da Galileia, que sabia interpretar as novas ideias de acordo com o modelo dos rabis. Ele era muito esperto, tinha ideias novas que casavam muitos bem com os conceitos proféticos dos antigos, o homem era um gênio, e melhor, um gênio sincero.

Ele reinterpretou todas as ideias antigas de um reino e um rei universais. Agora Rei e Reino eram celestes e todos os homens do mundo eram chamados a participar dele. Jesus era o Messias, mas um Messias espiritualizado que reinava sobre um reino invisível. Era a chance que eu esperava.

Como fora antes novamente as lideranças perseguiram a nova seita. Mataram o mestre, e isso foi perfeito para o que eu esperava.

Havia algumas seitas diferentes naqueles dias, mas todas elas com pontos em comum. O mestre Jesus foi reinterpretado e adaptado por esses outros sectários. Tudo convergiu para ele, eu via ali as sementes de uma nova religião e decidi sair de vez do judaísmo, agora eu iria ganhar Roma, o que significava ganhar o mundo!

Um dia no futuro um bigodudo iria falar de um "eterno retorno", se bem que um antigo sábio tímido já tinha feito o mesmo. As coisas sempre se repetem, sempre. Não há nada de novo sob o sol. Os herdeiros de Jesus, agora conhecidos como “cristãos”, saíram para ganhar o mundo. A grande ideia foi prometer a vida eterna a quem tombasse em “serviço”, uma ideal forte que estimulou multidões de mártires. Entrei no grupo mais promissor, o dos paulinistas. Essa vertente se tornou, mais tarde, a principal. Seu principal pensador foi Saulo, um judeu de Tarso que soube como ninguém casar o pensamento grego com as ideias judaicas fazendo suas próprias inserções e leituras variantes das tradições ligadas ao mestre nazareno. Foi uma aposta alta me unir a esse grupo, mas percebi seu escopo universalizante e seu potencial para ganhar todos os homens e culturas em vez de ficar relegado a um país pequeno e ilhado num mar de cultura grega.

Pensamentos sincretistas e tradições herméticas tomaram o cristianismo. Cristo (a palavra grega para “Messias”) foi divinizado e associado ao Logos dos filósofos. O culto de Mitra contribuiu com o sacrifício e o conceito de remissão.

As ideias platônicas, já presentes no pensamento cristão, oriundas do encontro com os gregos, tomaram força quando pagãos convertidos ao cristianismo utilizaram as ferramentas da filosofia grega para defender sua nova fé, foi a época dos grandes apologistas!

Foram dias de efervescência cultural. Ideias iam e vinham. Os mártires se multiplicavam com igual vigor.

É estranho como as coisas são feitas de idas e vindas, algumas tradições com as quais já tínhamos tido contato voltaram a exercer certa influência em nós e, o que é pior, criar linhas alternativas e, em alguns casos, concorrentes. Eu não me preocupei muito com isso, minha preocupação era estar sempre na linha principal ou na que melhores condições tivesse de sobreviver. Como fora nos tempos sacerdotais, houve uma guerra interna pela primazia. Eu só precisei escolher a facção certa. Minha lógica me dizia que o melhor grupo era  aquele que estava ao lado do poder, portanto meu lugar era Roma. Fui deixando as roupagens gregas e me revestindo de Cícero, Plauto e Virgílio.

O grande império dos romanos cindiu-se em dois, um latino e outro grego. Fiquei com os latinos, mas muitos achavam que com os gregos estavam melhor, uma escolha até certo ponto acertada, mas que não se mostraria a melhor quando mil anos se passassem sobre nós.

Invasores vieram do norte (sempre de lá!) e tomaram Roma, mas desta vez não houve sincretismo nem penetração de ideias religiosas, os conquistadores foram conquistados pela opulência romana. Exerceram certa influência, mas graças aos pensadores latinos, principalmente Agostinho de Hipona, pude me manter intacto. Alguns desses conquistadores eram arianos, uma vertente cristã que negava a plena divindade de Jesus, mas que no resto pouco divergia de nós. As duas tradições combateram por um tempo, mas nossa vertente passou adiante, pois o paganismo, principio basilar por trás da religião romana, tinha pouca tolerância ao monoteísmo extremo comum aos judeus e aos arianos. Um filho de Deus excelso, ele mesmo Deus, era muito mais atrativo. Obviamente isso levantava alguns problemas, mas os apologistas já vinham há séculos formulando hipóteses e propondo soluções criativas. Uma delas, a menos instintiva, o que impressiona, venceu. Era a doutrina da Trindade. Nela não só o Logos era divino, como havia também um terceiro participante da Divindade, o Espírito Santo. Isso resolveu uma montanha de problemas e ajudou a associar o cristianismo a uma série de tradições religiosas de várias partes do mundo conhecido que acreditavam numa divindade plural. Os hindus tinham a sua Trindade, assim como os egípcios e mesmo os gregos. Alguns viram nisto uma forma sutil de politeísmo, mas os cristãos, principalmente um padre chamado Atanásio, resolveram o problema afirmando que, embora houvesse três pessoas na divindade, Deus era um só. Estavam casados os princípios pagãos com o monoteísmo judeu. Isso aconteceu antes da queda de Roma e a discussão estava no seu auge quando os bárbaros desceram do norte.

O paganismo estava morrendo, mas muitas das suas ideias permaneceram conosco. Suas festas passaram a ser comemorações cristãs. A comemoração do solstício de inverno comemorada como “Dies Natalis Solis Invicti” passou a ser a festa do nascimento de Cristo, o Natal.

Depois da queda de Roma veio uma época que viria a ser conhecida como "Idade Média" num futuro distante. Roma caiu, mas suas instituições permaneceram vivas no seio da Igreja Cristã, o grande poder por mil anos! Na igreja casaram-se os poderes espirituais e seculares, o bispo de Roma, o Papa, era, para todos os efeitos, imperador do mundo. Isso exigiu novas interpretações e extensa formulação doutrinária, pois o cristianismo não tinha essa característica inicialmente. Jesus, na verdade, fez separação entre igreja e estado quando disse “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, coitado, se ele soubesse em que dariam suas ideias vanguardistas!

Quanto a mim, que posso dizer? Eu preciso sobreviver, escolhe o melhor lado para isso, não posso me dar ao luxo de fazer escolhas morais, embora, suprema ironia, moralidade seja o tema central das ideias religiosas!

Não houve mais grandes desafios para nossa vertente. Havia grupos pagãos espalhados por toda a Europa, mas eram tradições ágrafas, e nossas experiências mostraram que o poder estava em eternizar as ideias por meio da escrita. Nossa preocupação sempre foi manter nossa coleção de livros em ordem. Foi assim desde a Suméria. Com os judeus levamos isso quase à perfeição. Os cristão apenas levaram isso adiante. Quando Roma caiu já tínhamos uma coleção autorizada de escritos cristãos. Verdade é que muita coisa teve que ser deixada pelo caminho, outras tantas tiveram que receber novas redações e formas “mais claras” em traduções ”autorizadas”. Se tudo que em algum momento foi considerado inspirado tivesse sido incluído na coleção de escritos cristãos, teríamos uma Bíblia dez vezes maior hoje. Tivemos que fazer escolhas, cortes, interpolações. O grande problema é que não é tão simples assim corrigir o que foi escrito, pois muitos documentos variantes acabam surgindo do processo e sempre tem alguém que descobre uns manuscritos do período anterior que negam o texto do momento. No futuro até vai surgir uma “crítica textual” para fundir todas essas variantes num só texto, como se elas, originalmente, fossem parte comum de um documento único! Idiossincrasias do pensamento cristão!

Confesso que não gostei muito desse período latino, ele era muito severo, fechado, sisudo. Eu que já falara idiomas semíticos, que dançara ao redor de fogueiras nas bases do Sinai, que adorara o fogo junto aos edifícios de Susa, que estivera nos casamentos e celebrações religiosas judaicas me vi forçado a manter minha existência nos mosteiros ouvindo intermináveis ladainhas em latim eclesiástico!

Mas minha longa experiência não me deixou perder as esperanças, eu sabia que em algum momento os ponteiros do eterno variar dos ciclos iriam se mover. Eu sabia exatamente o que viria a seguir. Quando uma coisa se institucionaliza logo surgem vertentes leigas para questionar seu estado. Na época dos judeus o profetismo sucedeu o sacerdotalismo seco. Logo, eu imaginava, surgiriam os profetas!

Algumas das ideias perdidas pelo caminho, aquelas de forte inclinação gnóstica e doceta, e algumas monoteístas extremadas, encontraram um bom acolhimento num novo profeta que surgiu nas tendas da Arábia. Mohamed bebeu dessas fontes esquecidas por meio de algumas seitas cristãs remanescentes e do judaísmo da comunidade judaica de Meca. Ele soube readaptar aquela velha inserção que fora feita na história de Moisés, que em outra vertente fortaleceu a crença da vinda do messias, e nominou-se o “profeta semelhante a mim” da velha profecia. Mohamed não teve o problema da eterna dicotomia sagrado/ profano dos cristãos. No seu sistema não existia algo como a separação dos poderes espiritual e secular. Quando Mohamed morreu seus seguidores continuaram sua luta e levaram seu império às portas da Igreja Cristã. Uma frutífera civilização islâmica floresceu em lugares tão distintos quanto Bagdá, no Iraque, e Sevilha, na Espanha.

Isso me preocupou um pouco, pois se o islamismo ocupasse a Europa eu poderia acabar esquecido ou relegado a uma seita marginal! Exceto se eu conseguisse ser incorporado naquele sistema, algo bem complicado, pois muçulmanos desde cedo puseram suas crenças por escrito no seu Alcorão.

Uma pequena luz surgiu na Europa. Um profeta cristão surgiu pregando o retorno às origens gregas. Retorno aos conceitos presentes no texto bíblico sem as inserções tradicionais  introduzidas pela ramo majoritário do cristianismo romano. A comunidade dos Valdenses prosperou. Eu comecei a prestar mais atenção neles. Na época não parecia que tinham chance de se tornar algo mais que uma seita marginal, mas a ideia era poderosa. O latinismo tinha seu meio milênio de influência, mas o helenismo tinha raízes que remontavam à Babilônia.

Por essa época os cristãos começaram a se preocupar com a penetração islâmica, algumas cruzadas foram organizadas e a guerra religiosa se espalhou trazendo morte, mas também uma certa efervescência cultural com a chegada de novas ideias à Europa. Foram redescobertos antigos textos gregos de filosofia que estiveram sob a guarda dos árabes, também chegaram novos conceitos científicos e ferramentas matemáticas. De certa forma, foi meu primeiro contato com o mais poderoso inimigo que eu viria a enfrentar quase um milênio adiante, a ciência.

Houve também contato com comunidades cristãs e judaicas separadas há séculos, isso impulsionou o estudo das línguas originais das escrituras judaico-cristãs, o grego e o hebraico. Com esse novo conhecimento espalhando-se rapidamente pela Europa, o interesse pelo helenismo aumentou muito. Clássicos gregos conhecidos somente através de traduções latinas inundaram a Europa. Alguns textos, considerados perdidos, foram reencontrados.

O interesse pelos clássicos também influenciou alguns a buscar nos documentos gregos a essência original da doutrina cristã. Novos profetas pregando a reforma da Igreja surgiram. Eles queriam um retorno à pura doutrina escritural. Claro, como eu já expliquei antes, a história é cíclica. Na esteira do questionamento veio a resposta violenta. A guerra agora não era entre cristãos e muçulmanos, mas entre vertentes cristãs. A igreja se fechou, tudo o que era considerado ameaça ao seu poder foi perseguido, toda ideia diferente era heresia e a punição era a morte. Não morreram só pessoas de fé, mas muitos tipos de pensadores, desde filósofos e cientistas até ocultistas e visionários.

Nunca me agradou essa matança toda. Eu sei que ela era fruto de alguma ideia mais zelosa, mas eu nunca consegui identificar quem ela era. Da minha parte eu pouco me preocupava com sincretismo, como eu disse antes, sou uma ideia com capacidade ilimitada de mudança e adaptação. As únicas ideias que realmente me assustam são as científicas, pois elas tem um correlação muito forte com o que é observado no mundo e podem, a longo prazo, levar ao fim da religião. As ideias religiosas nascem com a curiosidade e das aspirações humanas, curiosamente parecido com o que ocorre com as ideias científicas. A diferença é que nós não temos correlação real com o que ocorre no mundo, uma ideia religiosa não parte do empirismo, ela é uma resposta mágica a um fato do mundo, mas nunca é uma explicação coerente. Dependemos muito da superstição e do medo. A ciência tem o poder de explicar o mundo e com isso banir o medo supersticioso das almas humanas. Além disso ela oferece saídas para os perigos de uma realidade hostil que vão muito além de orações e manifestações de arrependimento. Mas isso é história futura, voltemos à minha narrativa.

Eu já tinha uma certa ideia dos caminhos que deveria seguir, mas tive certeza quando soube que um monge agostiniano tinha questionado abertamente a igreja fixando, como era costume, quase uma centena de “teses” nas portas de Wittenberg. As ideias desse monge, Martin Lutero, concordavam com as ideias dos valdenses, ele também pregava um retorno às escrituras. A diferença é que ele era um membro respeitado do clero e contava com a simpatia de boa parte da nobreza europeia que estava cansada dos desmandos romanos. Não tive dúvidas, abandonei o catolicismo romano, me tornei protestante!

O Protestantismo deu um novo impulso à minha existência, ele era mais aberto, mais humano, mais alegre. Eu me deliciava com as longas pregações de Melanchthon e a ironia ácida das obras de Lutero. Entretanto havia algo que me preocupava muito com a nova vertente, sua amizade com os poderes seculares. Eu já sabia o que viria a seguir. Em pouco tempo surgiram novas seitas que trouxeram mais lutas e divisões. Lutero mesmo ensinava que cada cristão poderia livremente interpretar sua Bíblia, . Havia pequenos grupos de anabatistas nas terras protestantes. Os anabatistas pregavam o batismo de arrependimento. Eles se inspiraram em João Batista. Alguns eram pacifistas, outros negavam o poder e autoridade dos príncipes.

Eu sabia que para continuar existindo precisava manter minha condição adaptativa. Desde então decidi que não ficaria restrito a apenas um grupo, mas procuraria estender minha influência ao maior número de grupos possível.

A ideia exótica da sola scriptura e da livre interpretação criou uma enormidade de grupos e  vertentes cristãs. Alguns deles ressuscitaram ideias do passado remoto, pequenas sutilezas docetistas, arianas e maniqueístas. Alguns pregadores redescobriram Babilônia, vista agora como a Roma do poder papal. Foi um duro golpe no sacerdotalismo pelo profetismo latente que permeia a imaginação humana.

Novos ventos sopravam sobre a Europa. Missionários protestantes e católicos levavam a fé para o extremo oriente e para as novas terras do novo Mundo.

Ideias filosóficas, científicas e ocultistas pululavam. Grupos herméticos eram comuns em toda a Europa. Alguns estados protestantes eram reconhecidos por sua liberdade e para eles afluíam os melhores pensadores do Velho Mundo.

Eu a tudo prestava atenção, tentava a todo custo me antecipar ao próximo lance religioso. Soube que na Inglaterra surgira uma nova corrente mística. Encaminhei-me para lá nas tralhas de um comerciante alemão. Encontrei dois grupos bem marcados e que estavam sofrendo alguma perseguição da igreja estatal inglesa, dessa eu guardei a devida distância. Incorporei-me num grupo Quaker. Os Quakers eram muito estranhos, acreditavam numa manifestação mística do Espírito Santo quando estavam todos sentados em silêncio. Voltaire escreveu algo sobre eles nas suas Cartas Inglesas e eu aconselho que se alguém quiser saber mais do que digo que procure esses escritos.

Eu me mantive entre os quakers por um tempo, mas me assegurei de estar bem firme entre outras seitas protestantes. Mais alguns anos se passaram e um verdadeiro profeta surgiu na Inglaterra, um homem que influenciaria gerações de cristãos de todos os credos, seu nome era John Wesley. A vertente criada por Wesley era chamada de “Metodismo” devido à extrema disciplina com que os metodistas praticavam sua fé. Essa vertente cresceu, pois ensinava que havia uma espécie de ralação pessoal entre o crente e o divino. Quando Max Weber fala em “ascese intramundana” não consigo deixar de pensar nos wesleyanos, outra denominação dada ao grupo dos seguidores de Wesley. Eles eram “monges seculares” e seu mosteiro era o mundo todo.

As coisas não me pareciam muito boas no Velho Mundo. O secularismo dos filósofos naturalistas me preocupava. Resolvi emigrar. Tomei um navio em Londres e aportei na América. Uma vez lá, me misturei a comunidades puritanas e grupos de quakers. Havia praticamente só protestantes naquela parte da América, soube que os católicos se concentravam mais ao sul do continente e evitei esses locais.

A América do Norte era espiritualmente efervescente. Vi muitos movimentos nascerem e morrerem por ali. Um dos mais estranhos foi o iniciado por um protestante chamado Joseph Smith. Ele criou todo um novo sistema em cima das ideias cristãs, concebeu profetas no novo mundo a aumentou o número das escrituras sagradas. Ele restaurou algumas ideias perdidas desde a morte do paganismo e seus seguidores trataram de explicar isso de forma mais clara. Com eles o politeísmo foi restaurado no cristianismo. Outra ideia forte e que também foi uma forma de restauração (cristãos adoram reformas) foram os movimentos sabatistas que deram origem ao adventismo. Eles partiram de uma ideia escatologica, o retorno iminente de Cristo, e restauraram a observância da Lei Judaica. Como eu disse antes, essa religião é cheia de idas e vindas.

Os tempos passaram e pouco depois da virada do século XIX para o XX surgiu aquela que seria a ideia majoritária em todo o protestantismo daí para frente, o Pentecostalismo. Grupos de crentes místicos sempre existiram no Cristianismo, mas nem todos eles adotaram manifestações carismáticas como padrão de culto. Os pentecostais eram, inicialmente, crentes oriundos de diversas denominações cristãs que participaram do avivamento que acontecera na Rua Azuza, na igreja do reverendo Willian Seymour. Seymour nasceu batista, mas encontrou sua luz na igreja metodista. À partir da sua experiência particular ele criou sua própria versão de cristianismo verdadeiro. Para ele e seus seguidores, as manifestações descritas no Novo Testamento eram atuais e reais na vida de qualquer um que as aceitasse. Todo crente poderia curar e fazer profecias. Seu carro chefe eram as “Línguas estranhas”, um fenômeno conhecido pela Psicologia como “glossolalia”. Nessa manifestação o indivíduo acredita estar falando numa língua real, mas desconhecida para ele. Alguns acham que essas línguas são linguagens de outros povos, outros creem que são línguas mortas, alguns que são línguas de anjos e outros, ainda, que são linguagens especiais criadas por Deus para cada pessoa. Esse conceito passou a ser central na mensagem pentecostal. No decorrer do século XX muitas igrejas tradicionais aceitaram as manifestações pentecostais, ou pelo menos fizeram vista grossa, para não perder fiéis. O pentecostalismo, na sua ênfase ainda mais vigorosa que o Metodismo num relação direta do crente com Deus, é uma ideia poderosa. Hoje quase toda igreja tradicional tem sua variante pentecostal. Até os católicos, ferrenhos tradicionalistas, tem sua vertente carismática.

Eu não podia perder essa chance, afinal, os pentecostais eram o que eu sempre desejei, um grupo em que a superstição fosse o ápice da fé, eles são quase indestrutíveis aos poderes da ciência e serão os guerreiros da fé quando todos os demais estiverem capitulando!

Os pentecostais fizeram o que nenhum grupo, exceto os muçulmanos pela espada, fizera antes deles, se espalharam pelo globo com um fervor proselitista  ainda maior que o dos primeiros paulinistas. Eu finalmente havia encontrado o produto final da mensagem cristã! Um que resgatou os primeiros movimentos da mente animista ancestral. Um pentecostal vê milagres em toda parte, tudo é provisão ou vontade de Deus. São, em sua maioria, arminianos, mas comportam-se como os mais obcecados calvinistas!

Competem com basicamente toda vertente do pensamento humano. Combatem a ciência, a filosofia, as religiões não cristãs e todas as vertentes que não compartilham de seus pontos de vista. Adoram política, e isso não me agrada muito, mas não tem, até agora, interesse em fundar uma república pentecostal. E criam milagres que ajudam a manter sempre vida a onda de novos fiéis em suas igrejas. Os pentecostais veem milagres onde outros seres humanos veem apenas fatos corriqueiros, e explicam cada fato do mundo dessa forma. Não são como os católicos que sempre exigem provas de curas e outros feitos, para eles basta o testemunho, pois são incitados a nunca duvidar.

Durante um tempo as vertentes pentecostais, havia muitas, permaneceram na periferia do pensamento cristão, mas conforme foram conquistando fiéis e poder começaram a definir os rumos de toda a cristandade.

O pentecostalismo mostrou-se muito bom em sincretismo, as experiências pessoais passaram a ser cada vez mais bizarras, incluindo elementos encontrados em religiões africanas e conceitos presentes nas filosofias orientais. O interessante é que, para esses cristãos, tudo isso era não só bíblico como altamente aceitável e útil para uma vida cristã plena. Eu aproveitei ao máximo essa tendência incluindo eu mesmo algumas melhorias no sistema.

Quando um grupo religioso tem sucesso em arrebanhar novos seguidores é natural que as organizações por trás dele se tornem cada vez mais opulentas, isso aconteceu muitas vezes no passado e eu sabia que aconteceria novamente.

Eu pensava num forma de conciliar isso com a mensagem cristã, algo nada fácil, considerando a visão de Cristo e dos paulinistas sobre riquezas. Eu andava preocupado com isso, ficava muito tempo pensando numa solução. Um dia reparei numa conversa que dois pastores pentecostais estavam tendo. Um deles havia comprado um carro moderno e o outro estava preocupado com o que diriam os fiéis quando notassem isso, “afinal de contas”, argumentava o homem, “ a maior parte da nossa membresia é composta de gente humilde”. O segundo argumentou que ver a prosperidade como um mal não era algo realmente bíblico e que prosperidade era um dom de Deus. Entendi na hora o caminho que deveria seguir.

Uma nova vertente surgiu, na verdade uma melhoria do pentecostalismo clássico, era o “neo-pentecostalismo”, um movimento que incorporava tudo o que era ensinado pelos pregadores pentecostais com ênfase na prosperidade e na origem satânica dos males humanos. Esse grupo ensinava que assim como Abraão fora um homem próspero e Cristo fora tão rico que tivera, inclusive, um tesoureiro particular era necessário ao crente colher nessa vida os frutos da sua fé manifestados na benção material! Alcançar a benção era uma questão de sacrifício, ou seja, participar dos rituais e fazer doações às igrejas. Foi um sucesso! O pentecostalismo já ganhara o mundo, bastou ao neo-pentecostalismo seguir suas pegadas. Afinal de contas, ambos nasceram no maior império que já existira, os Estados Unidos da América.

Obviamente isso suscitou alguns problemas de ordem teológica com as outras vertentes, mas os teólogos da prosperidade apelaram para as emoções de seus membros, e mais, para a ambição deles! Finalmente duas aspirações juntas, ganhar o mundo e o céu ao mesmo tempo. Esse grupo conquistou pessoas com maior poder aquisitivo que os pentecostais, pois a sua mensagem caía como uma luva nas formas de ver o mundo das elites econômicas. Os neo-pentecostais trataram o Cristianismo como um produto e aplicaram toda a sua astúcia em tornar esse produto algo vendável utilizando ferramentas antes encontradas apenas no marketing e na propaganda. Eles também introduziram técnicas de sugestão hipnótica e criaram fetiches para melhorar a visualização dos fiéis. Vendiam correntes santas, água do rio Jordão, cruz santificada e tudo o mais que pudessem para arrancar uns cobres dos mais crédulos. Os neo-pentecostais transformaram o proselitismo numa arte agarrando seus discípulos pela cobiça.

Eles investiram em meios de comunicação, foram os primeiros a ter programas de televisão. Investiram na política e tinham suas próprias instituições teológicas.

Obviamente foram perseguidos, não como no passado, mas com a pena dos apologistas modernos. Claro que esses novos justinos e irineus não tiveram muito sucesso, pois a Teologia da Prosperidade não era apenas uma religião nova, mas era também a manifestação mais clara e eficaz do modo americano de ver a vida. E não se destrói tão facilmente uma visão, ainda mais quando essa visão tem seu poder maior no desejo humano de estar bem, de ser feliz aqui e agora.

Com o tempo os pentecostais deixaram de perseguir os neo-pentecostais e acabaram até por adotar muitas das suas práticas de sucesso a ponto de se tornarem indistinguíveis. As flechas apologéticas se voltaram em outras direções. Na luta contra a ciência, investiram no Criacionismo, a ideia exótica de que o mundo veio a existir exatamente da forma como é narrado no livro bíblico do Gênesis. Também iniciaram um luta intestina contra o modo secular de ver o mundo, os ateus eram um mal a ser combatido em todas as suas formas. Em nome da moralidade rejeitaram o "homossexualismo", o que, como é bem típico do cristianismo, ensejou a criação de igrejas específicas para homossexuais. O Cristianismo é assim, tudo nele que é combatido vira sucesso.

Às vezes me perco a imaginar como seria o mundo se os cristãos não tivessem sido perseguidos primeiro pelos judeus e depois pelos romanos. Talvez algumas tradições pagãs tivessem evoluído e o mundo hoje fosse ainda mais variado nesse quesito do que é. Talvez o Cristianismo fosse hoje apenas uma velha seita judaica relegada a grupos marginais e comunidades hippies. Quem sabe?

O fato é que depois de cinco mil anos de existência ainda não consegui um meio eficaz de saber ao certo o que o futuro me reserva. Alguns pensam que a educação tornará o homem imune às ideias religiosas. Eu não temo mais isso, a religião apela para o irracional humano, aquilo entranhado na sua alma e que não pode ser arrancado de lá.

Hoje eu vivo uma vida confortável, tenho todas as ideias do mundo ao meu lado, não preciso mais mudar porque incorporei tudo o que necessito para ter apelo. Os homens continuam sofrendo e sempre buscarão meios de amenizar esse sofrimento da forma mais fácil. Um homem vai ao médico e faz o tratamento prescrito, mas só se sente feliz quando um pastor impõe a mão sobre sua cabeça e diz que Deus o livrará desse mal. Eles conseguem fazer das conquistas médicas um negócio divino!

Apesar de tudo, tenho sentido cada vez mais saudades do meu passado distante. Às vezes pareço ouvir os instrumentos de corda antigos e as estranhas canções nômades entoadas sob a luz das estrelas ao redor de grandes fogueiras que brilhavam longe nas solidões dos desertos. Penso na marcha lenta dos camelos e no cinzel marcando a frieza da rocha. Acima de tudo, sinto falta dos deuses, semideuses e monstros mitológicos vivendo e morrendo em escrita cuneiforme nas tabuinhas de argila da Suméria...

Um comentário: