segunda-feira, 25 de março de 2013

Morituri


A chuva cai devagar sobre a terra seca
Um cheiro de que gosto sobe no ar
Eu ouço as gotas grossas batendo no telhado
Criando uma canção bela e simples
Uma brisa úmida atinge minha face
Banindo de leve o ardor do verão
E o calor da febre que há dias não me deixa
A água escorre pelas paredes da casa
E forma um pequeno rio sob meus pés
Um rio que leva uma infortunada folha seca
Um rio que daqui a pouco não existirá
Um rio pequeno que nem mesmo é um rio
Um rio que não vai desaguar no mar
A febre deixou meus lábios secos
Mas agora eles estão molhados
Da chuva que o vento lança em mim
Criando uma forma de prazer
Simples como é simples o rio sob meus pés
A chuva parou, mas o cheiro da terra molhada
Ainda está em minhas narinas
Minha roupa molhada vai aos poucos secando
Como a terra úmida diante de mim
Como meu coração nesses dias sem fim
Que antecedem meu último suspirar
Minha vida é como esse pequeno rio
Correu por um tempo sob outros pés
Mas cessou, como eu hei de cessar
Como cessaram todos os outros que já se foram
A terra espera, seca, por sua água
A água, a pouca água que se fez em mim um rio
Que não vai, como o outro, para o mar
Da choupana em que estou eu vejo
Campos, animais e pessoas
Mas todos muito distantes
Porque meus olhos não são mais os mesmos
Assim como eles não são os mesmos
Que eu via nos meus anos de boa vista
Porque todos estamos mudados
Eles pela ótica de um moribundo
Eu por estar aos poucos me desligando
Do mundo que um dia ousei construir
Meu mundo foi morrendo, como o rio
Até se tornar uma carcaça seca
Vivendo num peito sem esperanças
Agitado por tosses e tremores
E por lembranças misteriosas de antigos desejos
Eu vou, como o rio, deixar meu lugar vazio
E como ele morre pela ausência de alguém que lembre
Eu deixo o mundo esquecido e sozinho.

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